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O jogo, no que concerne ao confronto dinâmico de forças antagônicas, aplicado como recurso metodológico na criação cênica em dança, implicou uma abordagem atenta ao embate recíproco de motivações opostas, o que vem a corresponder ao sentido de ação dramática: “ação, desencadeada por uma vontade, que tem em mira um determinado objetivo, colide com: a) interesses; b) paixões; portanto, vontades opostas. Esta colisão é o conflito. E desta colisão algo nascerá.” (PALLOTTINI, 1988, p. 11). Sob essa perspectiva, a situação proposta

em cada jogo constituiu a condição para o desenvolvimento do conflito, que progride pela busca de sua resolução.

Da situação imaginária sugerida, emerge o choque de interesses que nutre de conteúdos subliminares o menor gesto, olhar, a menor alteração da respiração, tornando-os signos de uma comunicação sutil dirigida às sensações, emoções e múltiplas interpretações. Da energia gerada pela presença física dos corpos em cena, em sua forma, dinâmica e intensidade dos gestos, derivam os significados da obra. O conflito, nesse ponto, é um elemento propulsor, cuja função é promover a geração de estímulos e respostas que regem o desempenho dos intérpretes em cada jogo, mas não constitui, como no drama, um argumento para uma narrativa linear, atrelada ao encadeamento de causas e efeitos. Resulta, portanto, que não se pretende guardar o sentido para o término da encenação, mas o sentido se dispõe ao longo dela.

Dessa forma, as experiências de encenação desenvolvidas na pesquisa procuraram propiciar a imersão do espectador no universo do corpo dançante que enuncia e reflete um “eu” mergulhado em um mundo imaginário. Isso implica, conseqüentemente, transformação e possibilidade de criação de um “outro”, diferente, portanto, das tendências que sugerem que, em cena, o intérprete encarne a si mesmo e não represente nada nem ninguém, para ser percebido como entidade real. Essa configuração, contudo, não exige uma busca pela caracterização física ou a definição de um perfil psicológico. As personagens surgem com base em qualidades distintas de energia e tensão, em decorrência do papel que assumem na resolução do conflito que rege todas as suas ações.

Trilhando caminhos distintos, mas refletindo uma mesma visão, compartilho da procura de alguns criadores pelo corpo autêntico, não neutralizado por técnicas que tendem a uniformizar o corpo dançante. Um corpo que se expressa não como imagem ou reprodução de algo, mas que vivencia seus estados ou, em minha pesquisa, os dramatiza: expressa a vontade de acessar as manifestações mais profundas do impulso vital, de despertar o sopro de vida, a voz interior, objetivando-a em ação. Essa disponibilidade é possível em corpos não condicionados e portadores de uma liberdade expressiva, preparados e acionados em suas possibilidades mentais, físicas e afetivas, de forma a permitir o afloramento da intuição criativa: o corpo dramático, matizado por traços de subjetividade pertinentes ao drama.

Assim, sem pretender aprisionar a dança a uma “teatralidade que se conforma ao modelo de substituição e deslocamento do objeto real em direção a sua representação” (RIBEIRO, 1994, p. 37), idealizei uma poética em que cada gesto se revele imbuído de significado, sem que isso determine um propósito de significar algo específico. A ação gerada

não intenciona comunicar uma idéia restrita e exclusiva, mas ela não se realiza na ausência de intenção interna, da vontade e do objetivo que lhe dêem razão de existência. O corpo dramático é sensível aos impulsos que mobilizam suas forças, sem pretender torná-los legíveis ou comunicá-los; o sentido advém de sua totalidade. Almejo, dessa forma, uma presença que se afirma por sua corporeidade, que escapa da representação para liberar toda a sua intensidade. Essa presença pretende atingir, diretamente, o espectador por canais de sensibilidade, lançando-o ao imaginário e induzindo-o a não acionar mecanismos racionais pelo desejo de entendimento ou pelo sentimento de compreensão que lhe é natural.

A produção de sentido nasce, assim, de uma abordagem temática que traz um conflito. Do tema são extraídos os estímulos que tanto podem sugerir situações de jogo como nutrir os intérpretes, induzindo-os ao mergulho no imaginário e no sensível. Esse envolvimento implica a transformação do seu estado corporal, potencializando a emergência do corpo dramático, tornando-os aptos para a experiência criativa. O entrelaçamento desses fatores em laboratórios de improvisação estruturados em jogos engaja os intérpretes na resolução imediata dos impasses que a situação lhe impõe. Isso constitui a circunstância detonadora da ação dramática e permite o entendimento de como essa proposição experimental se situa em um campo de convergência da dança e do teatro.

Se ação dramática e conflito constituem, no teatro, elementos essenciais ao drama, aqui também são fundamentais à gênese de uma dança que emerge do corpo dramático em jogo. Os gestos ganham correspondência às palavras que, segundo Szondi (2002, p. 34), “são pronunciadas a partir da situação e persistem nela”, de forma que as personagens dramáticas agem por si sem interferência externa, sua ação é originária e se dá no presente. O diálogo dramático, pode-se dizer, encontra equivalente nas relações corporais que surgem no jogo. Essas relações acham os meios para evoluir no empenho recíproco dos intérpretes em dar solução aos sucessivos obstáculos, “fornecendo elementos para que os interlocutores [...] tenham influência ativa uns sobre ao outros” (PALLOTTINI, 1988, p.17).

Tal idéia de envolvimento mútuo na solução de um problema constitui, igualmente, o fundamento básico do sistema de Jogos teatrais concebido por Viola Spolin. Criados como estratégias didáticas para o desenvolvimento expressivo, os Jogos teatrais são estruturas destinadas a despertar a espontaneidade, proporcionar a auto-descoberta e o desprendimento artístico por meio de exercícios de improvisação. Visam tanto promover a ruptura de comportamentos mecânicos, quanto eliminar a imitação caricata e a tendência ao emocionalismo na atuação, equívocos comumente observados em interpretações imaturas e

atribuídos, por Spolin, à assimilação imprópria de técnicas teatrais exteriores à experiência individual.

Em sua metodologia de ensino, Spolin (1992) orienta o intérprete a se concentrar na solução de um problema, oferecendo um objetivo definido para seu desempenho e propondo uma abordagem diferenciada para a compreensão do conflito. Em sua concepção, a resposta para cada problema está prefigurada em cada um deles, não havendo um modo certo ou errado de solucioná-los, o que elimina as expectativas na atuação e convida à liberdade de opção e à auto-descoberta. Esse recurso minimiza o risco do aluno iniciante se envolver com uma suposta situação de crise, sugestionado pela idéia de nutrir um conflito, e se perder em reações emotivas sem proveito para a improvisação. No entendimento de Spolin, na progressão do aprendizado, essa proposição, aos poucos, vai sendo substituída pelo sentido do jogo, que implica o desenvolvimento de processos gerados por oposições e, por conseqüência, o sentido de conflito dramático é absorvido sem tornar-se um suporte para o mero extravasamento emocional.

O sistema de Jogos teatrais pressupõe interdependência, interação e relacionamento coletivo, e é aplicado segundo alguns fundamentos básicos. Em princípio, o jogo propõe um problema a ser solucionado, com o qual cada indivíduo deve se envolver. O ponto de concentração para o qual se dirige a ação constitui o Foco, que delimita, orienta e favorece o envolvimento e o relacionamento na solução do problema. Essa concentração canaliza a energia criativa e oferece uma orientação clara para a ação, agindo como uma força estabilizadora, possibilitando despertar a intuição e liberar a espontaneidade, tornando-se veículo para uma experiência orgânica. A forma como um problema é solucionado deve surgir das relações em cena, sem prévio planejamento, respeitando-se o caráter imprevisível do jogo. Apenas as regras do jogo devem ser estabelecidas de antemão por meio de um acordo grupal, delimitadas pela estrutura dramática definida por: onde (lugar e/ou ambiente), quem (personagem e/ou relação) e o quê (atividade).

Como foi exposto, Spolin entende que, no início do processo de aprendizagem, o conflito induz ao envolvimento direto dos jogadores entre si. Isso tende a afastá-los do problema objetivado, o que não favorece ao desenvolvimento da improvisação que se dispersa em emocionalismo e verborragia, sem produzir ação dramática. A introdução do conflito é recomendada apenas quando os jogadores compreendem como criar relações por meio do Foco, o que “torna possível tensão e liberação objetivas (ação física) e, ao mesmo tempo, produz improvisação de cena” (KOUDELA, 1998, p. 61).

Em minha experiência, o conflito está presente desde o início do processo criativo, diretamente associado aos princípios de movimento que regem a ação, como em situações de reter e escapar, de investir e desviar, de perseguir e fugir, de subir e cair e tantas outras. O conflito subjaz a todo jogo, no antagonismo de forças oscilantes entre um ponto de equilíbrio, havendo sempre adversidade ou oposição requerendo uma solução, sem que esse embate se reduza aos aspectos psicológicos ou emocionais da relação entre os intérpretes. Existe um ponto objetivo correspondente ao Foco, que norteia o intérprete e o faz persistir na expressão física concisa que alia a emoção à percepção do todo à sua volta, não lhe permitindo que se perca no desenvolvimento de firulas ou de movimentos sem finalidade. A disponibilidade de responder ao acaso é condição essencial para o desenvolvimento do jogo, ficando claro aos intérpretes que é inútil pré-conceber suas atitudes. A delimitação imposta pela regra é o que determina as possibilidades de acaso. Sem regras, não haveria parâmetros claros que permitissem a interação e a cena se dissolveria no vasto campo do indeterminismo.

Vê-se que minhas elaborações se apóiam e se identificam com muitas das noções que permeiam o pensamento de Spolin. A autora atribui a potencialidade expressiva para atuar à capacidade individual de experienciar e diz: “experienciar é penetrar no ambiente, é envolver- se total e organicamente com ele. Isso significa envolvimento em todos os níveis: intelectual, físico e intuitivo” (SPOLIN, 1992, p. 3), concepção comum ao sentido integrado proposto pela idéia de corpo dramático. A autora evidencia o conhecimento intuitivo como vital para a aprendizagem, identificando-o quando uma resposta a uma experiência se realiza além de um plano intelectual constrito, requerendo para tal um ambiente apropriado, uma disposição para a livre experiência e uma atividade que evoque a espontaneidade, circunstâncias objetivadas em seu sistema de improvisação.

Spolin aborda a espontaneidade, considerando-a como a expressão de liberdade frente à realidade, momento em que a exploramos e agimos em conformidade a ela, em que “as nossas mínimas partes funcionam como um todo orgânico. É o momento de descoberta, de experiência, de expressão criativa” (SPOLIN, 1992, p. 4). Em sua concepção, essa liberdade para atuar e nos inter-relacionar envolve-nos com o mundo dos fenômenos em constante transformação, tornando possível o contato direto com o ambiente, experiência que em sua crença nos conduz à autoconsciência e à auto-expressão. A propósito disso, trago à baila as palavras de Koudela (1998, p. 51) sobre a noção de espontaneidade apresentada por Spolin:

A ação espontânea exige uma integração entre os níveis físico, emocional e cerebral. Em oposição a uma abordagem intelectual ou psicológica, o processo de Jogos Teatrais busca o surgimento do gesto espontâneo na atuação, a partir da “corporificação”.

O sentido de “corporificação” proposto por Spolin é o fundamento dos jogos de iniciação focados no objetivo de tornar real um objeto imaginário. Isso sugere uma comunicação física direta para se criar a realidade teatral, eliminando os processos de identificação subjetivos que podem resultar em verbalização improdutiva, dando lugar à atuação que surge da relação de jogo em função do momento presente. Dessa forma “[...] é estabelecida uma diferença entre “mostrar” e “contar”, ou entre “tornar real” e “fazer de conta”, [...] entre gesto narrativo (mímica) e ação no palco” (KOUDELA, 1998, p. 52). O gesto “contado” é referente a algo passado, é narrativo, simula uma situação já vivida. O gesto “mostrado” é uma ação vivenciada no instante em que é transmitida e invoca uma presença, que escapa ao fingimento e evidencia a comunicabilidade física do corpo.

Isso se relaciona com a oposição que estabeleço, em meu trabalho, entre movimento autêntico, pertinente ao autor a quem se atribui, e o movimento artificial, assimilado de referências alheias. Entendo como gesto artificial aquele que, por não ter razão de ser ou motivação interna, torna-se um adorno. A artificialidade é por mim identificada como algo que se apreende de fora e limita a apreciação à sua forma exterior, preponderantemente plástica, enquanto a autenticidade e a verdade têm ligação efetiva com a integridade orgânica do corpo dramático.

Vimos que a perspectiva de aprendizado vislumbrada por Spolin na formulação do sistema de Jogos teatrais é baseada no pressuposto de que a energia liberada para a resolução do problema proposto, orientada pelo Foco e dentro do limite de regras estabelecidas, faz eclodir a espontaneidade, estado em que o indivíduo encontra-se integrado em sua totalidade. Conforme preconiza Spolin (1992, p. 5):

O objetivo no qual o jogador deve constantemente concentrar e para o qual toda a ação deve ser dirigida provoca espontaneidade. Nessa espontaneidade, a liberdade pessoal é liberada, e a pessoa como um todo é física, intelectual e intuitivamente despertada. Isto causa estimulação suficiente para que o aluno transcenda a si mesmo – ele é libertado para penetrar no ambiente, explorar, aventurar e enfrentar sem medo todos os perigos [...]. Todas as partes do indivíduo funcionam juntas como uma unidade de trabalho, como um pequeno todo orgânico dentro de um todo orgânico maior que é a estrutura do jogo. Dessa experiência integrada, surge o indivíduo total dentro do ambiente total.

É perceptível a correspondência que se pode estabelecer entre a expressão somática pretendida pelo corpo dramático e o sentido de experienciar, para os quais convergem as noções de liberdade, espontaneidade, intuição, auto-descoberta e presença viva no aqui e agora, de forma a permitir que o novo, o desconhecido e o inesperado se aproximem.

Spolin encontrou, nesse sistema, um meio eficiente para sanar as dificuldades de atuação e favorecer a aprendizagem do uso da linguagem e das convenções de palco. Desenvolvido a partir de oficinas de trabalho com crianças e adolescentes, o sistema foi amplamente aplicado tanto no contexto educacional, dirigido a todos os que desejavam se expressar através do teatro, como no treinamento de atores profissionais. Evidencia-se, em seus livros, que o sistema de Jogos teatrais foi criado, a priori, como um recurso para o desenvolvimento e o desprendimento da atuação, servindo ao processo de crescimento do desempenho do intérprete, sem uma preocupação especificamente voltada ao produto artístico. Ainda que, em sua fase de formulação, tenha sido aplicado, experimentalmente, em companhias profissionais de teatro de improvisação, em momento algum seu texto incita à experiência de criação de espetáculos construídos sobre estruturas de jogos de improvisação. O texto da autora deixa entrever a preocupação em oferecer uma orientação que quebre velhos modelos de representação sem, contudo, pretender romper com padrões de encenação estabelecidos.

Creio, portanto, que essa investigação apontou para a emergência de outro aspecto de teatralidade coreográfica, na medida em que recorreu a fundamentos e procedimentos comuns ao fazer teatral para gerar outra possibilidade de construção de uma dança, fundada na resolução de conflitos, contemplando o aspecto imponderável e inusitado do jogo.

Passo, a seguir, a descrever a experiência de criação do espetáculo De touros e homens, que descortinou a possibilidade de pôr em prática a idéia de fundamentar a criação em dança no jogo, rompendo com as amarras da composição coreográfica e de sua interpretação mecânica.