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De fato, silenciosa ou ruidosa a revolta germina. [...] já não há adesão aos princípios de fachada que deixaram de ter qualquer vinculação com a realidade da vida. Esta rebelião, ao mesmo tempo sorrateira e eficaz, significa, com certeza, que está chegando ao fim um ciclo, o que foi inaugurado com a consagração do bem como valor absoluto (MAFFESOLLI, 2004, p.13).

Lembro-me ainda como esse trecho do livro A parte do Diabo (2004), de Maffesolli, publicado no Jornal do Brasil, causou-me tremenda curiosidade. Senti um pressentimento de que eu encontraria estranha afinidade. Estranha porque apesar de ter algumas referências sobre o escritor, até então, não conhecia suas publicações e tão pouco tinha um interesse especial por estudos sociológicos.

De fato, o trecho não abrange a complexa visão exposta no texto, mas, de certa forma, sintetiza o espírito provocador do autor que serviu de ignição para a criação de Jogos temporários e Húmus. Hoje, percebo que essas obras foram semeadas no mesmo terreno de inquietações do qual brotaram, sem que eu percebesse, outras criações pertinentes a um ciclo artístico iniciado em 1995, por isso a empatia imediata com o livro de Maffesolli.

Refiro-me a um território fértil para inúmeros pensadores, filósofos, artistas, poetas e criadores, do qual foram extraídas múltiplas e diferentes expressões da percepção da existência: o antagonismo primordial expresso pelo ciclo da vida e da morte.

Ao mergulhar nas páginas do livro, o desejo de uma compreensão vívida e profunda da morte como um elemento estruturante imbricado à vida recomeçou a borbulhar, insistentemente, em mim, como uma reação química. As idéias e imagens do livro se associavam tanto a experiências passadas, quanto pareciam corresponder a anseios ainda incompreensíveis, latentes e utópicos, que me mobilizavam em direção à investigação criativa.

Nesse sentido, vale reiterar que o exercício criativo é, e sempre foi, para mim, um valioso instrumento e meio de construção e percepção de si no mundo. O autor nos desperta para um olhar mais ampliado e sensível do cotidiano do tempo atual. Dirige nossa atenção para uma realidade submersa no dia a dia e alicerçada em valores que promovem outra forma de viver: um viver sem recusas. Refere-se a um conhecimento tácito incorporado que aceita a

vida sem recusar nada do que ela oferece, até mesmo as imperfeições, o mal em todas as suas modulações e dentre elas, a morte irreparável.

Refere-se à falácia do ideal de uma sociedade perfeita, preconizado na era moderna, e que hoje se vê, cada vez mais, insustentável diante de outra consciência arcaica que ressurge e admite o que não pode ser negado: a presença do mal como um elemento fecundo na natureza, nas organizações sociais e no mais íntimo do ser humano. Cataclismos, disfunções climáticas e catástrofes ambientais, a violência de que a vida animal é tão pródiga, rebeliões, anarquia, alienação, conflitos, sofrimento, todas as dores e tragédias, até mesmo a crueldade infantil, exemplos não faltam.

Se, inicialmente, me senti confusa com sua abordagem, aparentemente, pessimista, aos poucos, ela se revelou esclarecedora. De pronto, deparei-me frente a frente com a real impossibilidade de aceitar a fome e a pobreza, de não repudiar a violência exacerbada, os abusos contra a natureza, a desigualdade ou a injustiça, pelo desejo de uma sociedade mais humana que ofereça condições dignas de sobrevivência para todos. Logo, compreendi que Maffesolli não defende um conformismo passivo diante dos males da vida, tão pouco incita uma apologia do mal, porém expõe fundamentos de uma sabedoria que se exprime pela aceitação do mal pelo o que ele é, ou seja, um elemento estrutural do dado mundano.

A partir disso, o autor discorre sobre o sentido primordial das polaridades em permanente reversibilidade, das contradições, das antíteses. Trata de um sentimento trágico da vida, que bem traduz a presença de um mal inelutável, do hedonismo difuso que surge como resposta a essa consciência e como sua mais alta expressão encontra-se nas manifestações de excessos e de gastos presentes nas festas e celebrações coletivas. Enfim, contextualiza a pós- modernidade em contraposição ao pensamento prometeísta moderno com espírito de Dioniso, declarado pelo o autor como o rei clandestino da época.

Esses foram os aspectos extraídos da abordagem de Maffesolli que destaco como os mais significativos para essa pesquisa, e avalio que tais conceitos contribuíram para estimular a experimentação artística. Uma vez absorvidos, atuaram de forma indireta e oculta na percepção intuitiva acessada nos laboratórios criativos, fomentando o imaginário e gerando uma disposição investigativa. Também suscitaram outras reflexões que me reportaram à análise da minha última fase como criadora, cuja qual me fez perceber que em minha trajetória persistiram, além da obstinada busca de uma poética singular de movimento, traços de uma permanente indagação sobre a intrínseca presença da morte na existência.

Entre as criações mais significativas, Reta do fim do fim (1995) trazia a dolorosa experiência de superação da perda recompensada pelo que resulta em seu oposto: o ganho pelo crescimento e o aprendizado. A satisfação era invocada e projetada para o alto, para o sublime, o divino transcendente.

Movimentos do desejo (1997) expõe o prazer encarnado, o erotismo como antídoto à consciência da morte inexorável. A satisfação está no corpo, no divino imanente. O espetáculo, valendo-se do que é permitido à expressão artística, rompe as barreiras do privado e coloca em cena o que deveria permanecer íntimo: o prazer sem medo ou sem pudores, vivido com alegria e despojamento. Havia, nessa proposta, certa imaturidade ou mesmo ingenuidade, tratando-se de um tema que suscita controvérsia e sobre o qual recaem diversos tabus. Não faltaram “guardiões” da moral para apontar como obscenas as imagens plenas de vigor e vitalidade, regadas ao ritmo de rock, em contraste com as circunspectas criações da dança contemporânea.

Apenas anos depois, mergulhei em busca de uma compreensão mais profunda do sentido do antagonismo existencial. A Série Touros (2001-2003) traz uma leitura particular do significado mitológico das touradas e dos signos encontrados na relação touro/toureiro, homem e animal. Foca o olhar do touro e do toureiro diante da perspectiva eminente da morte, a importância do instinto e de suas imagens primordiais para a compreensão do animal humano.

Olhos de touro (2002), trabalho resultante da pesquisa de mestrado, apresenta a interseção dessas duas naturezas distintas que coexistem em uma única criatura monstruosa e devoradora, o Minotauro, personagem híbrida, metade homem, metade touro, que sintetiza toda a dimensão do tema. O monstro é a metáfora do completamente outro, que existe à espreita de cada um. Imitar o monstro desperta o animal no humano, fazendo-o retornar ao mito.

Nessa obra, o uno assume, definitivamente, a multiplicidade dos perfis explorados, na medida em que nele convergem o humano, o animal e a morte. A partir disso, o trabalho aprofunda suas raízes no vácuo da inteireza humana, no vazio obscuro de nosso inconsciente primitivo e primordial. Faz surgir a animalidade angustiante da ambivalência humana. Animalidade inquietante, fervilhamento que, conforme Maffesolli, está na origem da animação vital - sinergia da bestialidade e da humanidade. É nessa profundidade que se abriga o mal. Reconhecê-lo é falar do interior de si mesmo e do interior do mundo, e, desse modo, reconciliar-se com a alteridade. Nas palavras do autor:

Daí a necessidade de descer as profundezas da vida. De vincular-se a esse abismo negro, o da animalidade que dorme em cada um, da crueldade também, do prazer e do desejo, coisas que não deixam de fascinar, mas que costumam ser compartimentadas, e são toleradas apenas nas obras de ficção (MAFFESOLLI, 2004, P. 37).

De touros e homens (2003) traz o jogo de oposições e contrastes exposto na tourada, pelo qual, com destreza e virtuosismo, o toureiro desenvolve sua movimentação, seduzindo-o e conduzindo-o à morte trágica. Ressalta aspectos contraditórios da relação do homem com o outro e com o mundo: a razão e a sensibilidade em oposição à violência e à força bruta; a fúria contraposta ao medo; o ato premeditado e o impulso inconsciente. Revela comportamentos de subserviência ou submissão em contraposição às atitudes de domínio e comando, como também de cumplicidade e igualdade, ou ainda de dependência, de confronto, de atração e outros. Uma das fontes de inspiração para a criação do espetáculo foi o filme Matador (1986), de Pedro Almodóvar, em que o sacrifício ritual da espada que penetra a carne se funde à imagem da cópula no êxtase do gozo e ao negrume da sombra observada no eclipse, que nada mais é do que a morte temporária da luz do sol obscurecida pelo alinhamento dos astros, metáfora da convergência e fusão dos contrários gerando um vazio equivalente à escuridão primordial.

Expus, aqui, as raízes das motivações que me levaram a encontrar, nessa obra de Maffesolli, idéias afins que se tornaram referências na concepção dos espetáculos Jogos temporários (2006), ainda de forma inconsciente e subliminar e, mais profundamente, em Húmus (2006).

Se o primeiro questiona a nossa compreensão da finitude, o segundo finalmente a celebra. Jogos temporários se funda na idéia de que, diante da provisoriedade da vida, o homem pretende dilatar cada momento vivido num esforço contínuo de deter a impermanência, sem perceber que a existência perdura pelo deixar de ser, pelo eterno devir. Ao empenho em perpetuar a experiência de vida, interpõe-se toda sorte de fatores que alteram seu curso e que nos explicitam “que o para sempre, sempre acaba” (RUSSO, 1994). Sem compreender o sentido da efemeridade, o homem trava embates, e acaba por ver, em sua cegueira, as transformações como obstáculos, adversidades que, supostamente, impedem-no de traçar seu percurso e cumprir seu destino.

Húmus se inspira na compreensão da natureza contraditória e ambígua da vida, que encontra na força das celebrações coletivas uma forma de reintegrar o mal, a sombra, a dor, o azar, a morte e tudo o que tememos à consciência de nossa existência. Investiga a estreita

relação entre jogo, ritual e festa, onde as noções de matéria e espírito, razão e pulsão, realidade e ilusão se polarizam e se contrapõem.

Tanto um, quanto outro foram, para mim, exercícios de vida e criação que corroboraram, significativamente, para o aprofundamento de uma compreensão sutil e imponderável, que certamente permanecerá carente de definições precisas. Como dantes, prevalece a única certeza irrevogável de que, em algum momento desse percurso iniciático, chegará o tempo em que passarei pela experiência de viver a morte para obter outra compreensão da minha participação na perpetuação da existência.