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CONSULTAS MÉDICAS A PARTIR DE R$ 65,00

CAPÍTULO 4 DR ALEGRIA

4.3. CONSULTAS MÉDICAS A PARTIR DE R$ 65,00

Afinal, como compreender dentro da chave dicotômica entre o mercado e o Estado a complexidade da frase “Consultas médicas de várias especialidades a partir de R$ 65”, faixa de um movimento social? A despeito da ação política de uma associação local às vésperas da eleição municipal em 2016, a análise do campo não permite afirmar, entretanto, que se trataria puramente de reflexo do “grande capital” reproduzido no tecido urbano e nas relações intersubjetivas de Heliópolis.

A ambiguidade da opção política de começar a campanha pelo tema da saúde é marcante, a ponto de, quando perguntado sobre o maior impacto da abertura de uma conta na vida de uma pessoa, Adão (CP), da Associação AGUAS, afirmou:Teve várias ligações, o pessoal tava ligando, interessante, porque assim... clínico e dermatologista ligava bastante porque não tem nos postos”.

Adão, fala do circuito econômico mundial no qual Heliópolis está inserido: “Essa é uma questão que por causa da crise brasileira e mundial, tá difícil a pessoa ter um dinheiro assim pra... mas aquela visão de que a favela, comunidade, as pessoas não tem dinheiro, isso aí é passado. Se você andar lá dentro você vai ver a situação que é, a quantidade de carros e a qualidade das casas é, vamos falar assim, de classe média. E as pessoas não tem acesso às coisas, as coisas não chega, agora tá chegando. Assim não dá pra pessoa sair daqui ir lá pra Moema pagar a consulta R$ 500, R$ 600. Agora quando chega uma proposta dessas, é lógico que vai dar certo. As pessoas querem, tem dinheiro pra isso. Tem que vir até as pessoas. Quando você chega com uma proposta que funciona, é lógico que tem funcionar também, né. Não têm, dinheiro, mas R$100... você pode dar um jeito e não vai tomar durante a semana, vai pagar a consulta, entendeu?! A mãe paga, a família empresta. A população não tem dinheiro mas às vezes tem uma reserva. “É porque é assim, se eu tenho cem reais (R$100) eu não vou no posto de saúde que vai marcar uma consulta pra daqui a seis meses e do outro lado da rua e vou lá, eu não vou esperar seis meses. Então por isso que o Dr. Consulta tá assim. O Dr. Alegria tá aí. Eu acho interessante porque vai pra terceira já, né. Ali (shopping) tem um movimento grande. Adão comenta que o shopping recém inaugurado em Heliópolis pode dar um bom movimento na clínica”.

E, assim, também ganha sentido o papel simbólico operado pela abertura das clínicas populares, em cujo discurso a palavra “autoestima” [de Heliópolis e dos moradores] aparece repetidamente. Provar que é possível ter clínicas médias particulares dentro de Heliópolis em si assume um papel de afirmar que, afinal, pode ou é “um bairro como qualquer outro”. Ao se chegar nessa dimensão, unem-se e interagem as várias esferas interpretativas, em que a figura do acesso a clínica médica particular assume um papel nas relações sociais intersubjetivas e inclusive as transforma, ora para o bem, ora para o mal.

Para a grande maioria, o Sistema Único de Saúde permanece distante das associações locais que, no caso aqui estudado, também mantinham parcerias com as clínicas médicas de baixo custo e os planos de saúde populares. Com isso, é possível

identificar também a percepção de que mais acesso é melhor do que menos acesso. Mas, diante da ambiguidade das informações coletadas, é preciso colocar em xeque se se trata mesmo de uma “inserção pelo consumo”, ou se é uma demanda por “ter o que outros já têm e sempre tiveram”. Apesar de parecer um mero jogo de palavras, a diferença é essencial. Não se trata de toda uma comunidade cujo objetivo primário é, para usar uma manifestação cultural em voga, consumir mais nos termos do “funk ostentação”. Se assim interpretássemos, estaria novamente recaindo em uma pré-noção que simplesmente não exigiria ir ao campo, vez que a conclusão “já estaria pronta”.

Pelo contrário, o que parece estar colocado é como, na vida e na experiência da grande maioria dos indivíduos entrevistados, moradores e do movimentos sociais que estão ali presentes, a lógica de que “mais direitos, mais acesso, mais consumo é melhor do que menos” refere-se não ao excesso consumista, mas a ter algo antes inacessível. Em certo sentido, não é um dilema de cidadania e, sim, da própria relação diária.

Disso decorreria, em certo sentido, que não seria possível simplesmente ignorar a dimensão das relações sociais de Heliópolis para tratá-la – mesmo da perspectiva de um empreendimento social na área da saúde com intuito lucrativo – como mero mercado consumidor em potencial.

Veja-se, por fim, o outro lado dos entrevistados sobre as relações entre os movimentos sociais e a clínica médica. Meados do segundo semestre de 2016, o Brasil está em um cenário político, econômico e social turbulento. A transformação da política local também sofre mudanças: Adão (CP), líder de Associação comenta, “nós estamos criando agora o MAIO. O MAIO é o movimento das Associações Independentes Organizadas. Nós vamos nos reunir sem ser nessa semana, na próxima. Nós estávamos com o projeto de levar oftalmologistas na comunidade em parceria com a Associação que a gente até ia montar pra fazer os exames”. Em uma das suas ações para candidato a vereador pelo PHS (Partido Humanista da Solidariedade), Adão foi responsável por espalhar faixas das consultas médicas a R$ 65 em parceria com uma clínica médica popular local, onde (5%) do valor pago pelas consultas ia para a entidade do próprio Adão.

“Heliópolis é um centro, é uma mina. Quem tem dinheiro pra investir aqui vai dar certo. Tudo que abriu aqui deu certo, não fecha, não tem por quê. É muita gente aí dentro. São mais de duzentas mil pessoas que moram aí dentro e tá querendo gastar dinheiro. Então é um lugar que chama a atenção. Na Estrada das Lágrimas as casas tão

tudo virando comércio. Do lado de cá (bairro Sacomã) há cinco anos não tinha uma loja. Não tinha nada. Então você vê que agora tem essas lojas de marca, Marisa, Casas Bahia, Magazine Luiza, banco. Então tá em ascensão”, afirma Adão.

Figura 11 - Faixa da Associação AGUAS em Favela de Heliópolis

Fonte: Fotografia tirada durante trabalho de campo, em junho de 2016

Na faixa vê-se o símbolo da Associação AGUAS com as inscrições Associação de Gestão Urbana e Ação Social – AGUAS – BRASIL, e com a seguinte frase: “É COM ALEGRIA QUE A ASSOCIAÇÃO AGUAS CONQUISTOU PARA A COMUNIDADE DE HELIÓPOLIS CONSULTAS MÉDICAS DE VÁRIAS ESPECIALIDADES A PARTIR DE R$ 65,00 - MAIS INFORMAÇÕES LIGUE: 4114-7903” [o preço das consultas está em vermelho].

Em entrevista com Adão, no dia 8 de novembro de 2016, ele responde sobre a sua iniciativa de fazer a parceria com a clínica médica popular. “Só pra gente entender a história das associações aqui, tem um trabalho grande na área da educação. Quando eles viram que esse montante de dinheiro entrava e a educação seria um caminho legal, eles abandonaram tudo que não dava dinheiro, habitação, saúde... abandonaram tudo”, diz Adão (CP). “Porque o foco é educação e têm vária CEIs [Centros de Educação Infantil], creches, né. Então, aí vem dinheiro, mais aí fica essa bagunceira, vai pra lá, vai pra cá, fecha aqui. Por isso que surgiu a AGUAS [Associação de Gestão Urbana e Ação

Social], por isso que surgiu as outras [associações independentes]. Nós estamos montando agora. Nós estamos criando agora o MAIO. O MAIO é o Movimento das Associações Independentes Organizadas”.

Como o próprio entrevistado aponta, a educação tem traçado uma fronteira importante em Heliópolis, entre os indivíduos e os movimentos sociais do local. Porém isto não é novo; o que aparece como novidade é o peso que tem tomado no estabelecimento desta fronteira para as outras Associações Sociais e as suas ações sociais. Trata-se de uma margem que se sobrepõe a uma divisão de classe, mas que opera dentro de uma mesma classe social como um mecanismo ativo de distinção. Para além da posição social a partir do qual se anuncia esta atitude, o importante é a distância que se estabelece graças a ela para a tomada de iniciativas em outros setores como a saúde.

As diversas conquistas sociais de Heliópolis parecem colocá-la como uma possível “favela modelo”, contudo, por trás desse aparente “desenvolvimento”, questões sociais essenciais ainda se fazem presentes no mesmo espaço. Diversos convênios e parcerias com organizações públicas e algumas empresas privadas são estabelecidos, para a efetivação de projetos sociais locais. “Então é assim, acho que tudo que vem de novo cria um impacto. Você não tá acostumado. Será que funciona? Vamos testar, vai funcionar. Não tinha, agora vamos ver se funciona”. E fala sobre o Dr. Consulta: “é uma pena que a iniciativa deles que foi legal, eles cresceram muito e eu não entendi por que que eles foram pra Silva Bueno (bairro Ipiranga). Sendo que aqui tem espaço pra eles crescerem mais que na Silva Bueno, né. Mas saiu daqui perdeu a referência, eu acho. Perdeu porque já tinha uma carteira cheia de cliente, né. Mas foi uma mudança muito repentina”, diz Adão. E continua sobre a disposição das faixas: “São os pontos que a gente acha que tem mais movimento.

Onde aparecem as faixas em Heliópolis? Em primeiro lugar, as ruas de maior movimentação de carros e pessoas são todas fortemente permeadas por pequenos comércios das mais variadas especialidades. “São os pontos que a gente acha que tem mais movimento. Eram seis faixas que tinha. Uma já caiu por causa do vento. Acho que são quatro ou cinco. Tinha uma também lá na Delamare, quando você entra na favela pela Delamare”.

Se nessa relação às clínicas médicas se adaptam às específicas formas da tradição comercial de Heliópolis, vale voltarmos à compreensão, agora mais detalhada, sobre o que trazem consigo.