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OS LIMITES DO INDIVÍDUO NEOLIBERAL

CAPÍTULO 4 DR ALEGRIA

5.4. OS LIMITES DO INDIVÍDUO NEOLIBERAL

O consumo é uma das práticas sociais mais submetidas ao controle no mundo de hoje e, ao mesmo tempo, é uma das mais surpreendentes condutas de iniciativa individual, um controle que passa por um jogo de sedução permanente. Monitoram-se as condutas satisfazendo-as, ou, melhor dito, a coerção passa pela sedução. Nessa medida, a reprodução do sistema econômico se apoia sobre a iniciativa, alguns dirão a

liberdade, dos indivíduos e não sobre sua supressão. Aqui reside o verdadeiro paradoxo do consumo: como indicou Zygmunt Bauman (2008a), o momento da compra transmite um sentimento de liberdade que contrasta fortemente com o que habitualmente se experimenta em outras atividades sociais. O indivíduo escolhe. Naturalmente, “sua” escolha opera em meio a um universo controlado e no meio de um pequeno número de produtos (e preços...), mas isso não impede aos indivíduos experimentar um momento de liberdade, mesmo que paradoxal. O consumo é, portanto, um importante exemplo das possíveis iniciativas sempre em meio a situações assimétricas: a face ativa de uma condição passiva de dominação. Obviamente, nesta batalha, o poder dos grandes grupos econômicos e a proliferação de estratégias de marketing não podem ser subestimadas, porém esta expansão de controle não é nem ilimitada nem todo-poderosa.

Conta quem, majoritariamente a partir de um pensamento crítico advindo dos trabalhos pioneiros da escola de Frankfurt, pode ler o consumo como uma manifestação suplementar de alienação, na qual os indivíduos seriam incapazes de entrever as molas do sistema de dominação. Em seus relatos, nossos entrevistados revelam que não ignoram em absolto esta realidade. Deve-se admitir, é verdade, que a maior parte deles desconhece a complexidade crescente das técnicas de controle às quais são submetidos quando consomem, mas isso não impede que desenvolvam uma atitude, se não crítica, pelo menos de sigilo frente ao consumo. É justo reconhecer que cedem às suas exigências, mas o fazem porque encontram no consumo ou uma dose de satisfação pessoal e um âmbito de realização ou uma via que para muitos faz a integração para sustentar a vida corrente. Uma atitude que, se por um lado legitima a partir da prática o modelo econômico, somente o faz através de uma consciência ambivalente, como a célebre imagem da Odisseia por Adorno e Horkheimer (1985), que tampa os ouvidos com cera para não escutar o canto das sereia ou, como na conhecida estratégia de Ulisses que se prende ao mastro para poder resistir, mas sem se privar do canto das sereias.

Se no país se instalou uma cultura de mercado, e atrás dela a cultura da sociedade de consumo, os limites são evidentes. A falta de dinheiro, crônica. Nesse sentido o consumo interno tem se expandido, mas sem eliminar as frustrações. De fato, o modelo seduz, mas não satisfaz. O consumo é temido em suas capacidades de inclusão excessiva quando fagocita a decisão pessoal, mas o consumo é ainda mais temido em suas capacidades de exclusão quando os indivíduos se veem privados dele.

Com respeito ao consumo, articulam-se, deste modo, um conjunto de experiências de frustração diversas (limites econômicos, endividamentos...) e satisfações reais (participação e inclusão...). Tanto uma como a outra dobram o caminho plural da ambivalência e da dialética, entre a responsabilidade individual e a crítica coletiva. Tanto uma como a outra revelam, por parâmetros distintos, os limites do indivíduo neoliberal. Se no âmbito político os parâmetros do indivíduo neoliberal são antes de mais nada visíveis sem impor uma narrativa hegemônica, no âmbito econômico os parâmetros são particularmente manifestos na incapacidade dos indivíduos para responder a todos os excessos de expectativas que empurrou as pessoas a construir individualmente suas próprias proteções, mais ou menos frágeis ou pragmáticas.

A primeira crítica ao sistema a partir de seu caráter capitalista é que é um modelo econômico orientado basicamente para a geração de benefício, e através dele, produtor de problemas sociais. Esta crítica, que se inscreve em um pensamento de esquerda, questiona as desigualdades sociais e econômicas. Sobre as desigualdades no atendimento dos planos de saúde popular, Gevaneide (CP), balconista, diz, “...agora eu sou pobre, trabalhadora. Eu tô comparando isso com a questão do capital, essa coisa da desigualdade permanece em todos os cantos mesmo a empresa sendo excelente”.

É o capitalismo e as exigências que se impõem uns aos outros. É uma sociedade que é inteiramente capitalista, como afirma Ana C (CP), “...infelizmente, se é individual, individualiza o tempo inteiro, nada pelo coletivo. Sempre por conta do capitalismo, mesmo, né. Essa coisa que convoca a gente o tempo inteiro a buscar o mais, não pensar nessa questão do outro, né”.

Este pode ser considerado um exemplo típico da combinação entre modernidade e atraso, tão comum nos marcos do capitalismo dependente, de forma a preservar a perpetuação dos privilégios, e atenuar os choques advindos das rápidas mudanças vindas de fora – no caso, a tendência ao desenvolvimento das relações capitalistas no período da ditadura. No fundo, a predominância da lógica de negócios era tal que nos anos 80, Madel Luz apontava que o dito “estatismo” era um espantalho, pois a polarização “liberalismo privatista” versus “estatismo privatizante” eram lados distintos da mesma moeda (1986, p. 128).

Nesse ponto em específico, o sistema capitalista conseguiu desarticular um ethos coletivo atomizando a sociedade e produzindo indivíduos passivos. É como expressa Carolina (CP): “Então, se a gente não parar um pouquinho pra refazer os nossos valores, né. Voltar lá atrás e de repente pensar de um outro jeito. Não se deixar na verdade se

conduzir pelo movimento como você fala, pelo que a mídia fala, pelo que acontece no mundo, né. Então eu acho que é por conta disso. Aí é meio que automático, o povo vai, segue a dança conforme ela tá, entendeu? E não para. Você não se permite a pensar, pera aí será que é certo isso, ou tá tudo certo, vamo caminhar. É isso, eu preciso correr atrás porque eu preciso ter, eu preciso ter, eu preciso ter, porque é isso que manda. Você viu agora o que passou na televisão do fundo de garantia. E aí o objetivo do governo é o povo consumir, não é assim? Olha como que é o negócio. Olha que prática! Pra economia não virar. E sabe, aí você vai acompanhando é isso, é bem isso, eu não sei...”. Nesta leitura, a dimensão do tempo foi o principal motivo73.

A partir da ditadura, a política econômica foi mobilizada em função dos interesses das empresas transnacionais e da viabilização da modernização dos padrões de consumo típica de seu padrão tecnológico importado74. Isso deixa de ser uma experiência histórica clara e se converte em um estado de ânimo, uma atitude generalizada, uma realidade que permite à lógica mercantil “tutelar” a sociedade em seu conjunto. Um sistema, um universo mental que indica uma origem das mudanças de rumo.

Entre o mercado e o consumo, inúmeras intermediárias que somente reforçam sua ambiguidade na interpretação da vida social.

Ao final das contas, a relação entre as percepções individuais e intersubjetivas e o acesso a saúde particular constituem uma relação complexa, ambígua e cheia de imperfeições. Certamente o acesso não se trata de uma solução idílica e utópica para os problemas sociais de Heliópolis nem de mero reflexo do neoliberalismo no espaço urbano. É um tema sobre o qual todas as pessoas entrevistadas tinham comentários a tecer (nem que fosse, ao menos, para falar de seus padrões individuais de consumo).

Sem embargo, é preciso dar continuidade para procurar ainda compreender o que é mesmo o acesso cada vez mais frequente aos serviços de saúde e seu papel em

73 Acredito que isso amplie a teoria social crítica, ou o que o sociólogo Hartmut Rosa (2016) analisa por

meio das consequências da aceleração, que até o momento não apresentariam uma solução para a perda da credibilidade do projeto da Modernidade, uma vez que a aceleração social teria sucumbido e instrumentalizado a possibilidade de autonomia prometida.

74 “Considerando o sistema industrial como um todo, percebemos que as grandes empresas controlam as

atividades que se baseiam principalmente no progresso técnico (as atividades nas quais o fluxo de novos produtos é intenso, a saber, a produção de bens de consumo duráveis e equipamentos em geral). O Estado tem uma importante participação nas indústrias produtoras de bens intermediários, e os capitalistas locais controlam uma boa parte das indústrias produtoras de bens de consumo não duráveis. (...) Entretanto, é importante enfatizar que o dinamismo do sistema repousa sobre a intensidade de transmissão de progresso técnico, na forma em que é visualizado pelas grandes empresas controladas do centro” (FURTADO, 1974, p. 105).

Heliópolis, sobretudo em um contexto de crise econômica e de possíveis mudanças macroeconômicas, bem como de preponderância progressiva da financeirização do capital na economia global contemporânea (MENDES, 2012). Heliópolis é uma peça deste arranjo global, mas não se resume a ele. É preciso ver “o outro lado da moeda”. Entender a inserção do indivíduo na assistência médica privada pela perspectiva da individualização, afinal, é entender um pouco como vivem as pessoas, suas aspirações, e o que fazem quando não têm acesso aos serviços que necessitam.

QUARTA PARTE - A RECONFIGURAÇÃO DOS SERVIÇOS DE

SAÚDE

CAPÍTULO 6 – ENTRE A UBS E A CLÍNICA MÉDICA POPULAR

Figura 15 - Placa da UBS/AMA na Avenida Estrada das Lágrimas

Fonte: Fotografia tirada durante trabalho de campo, em junho de 2016.

No contexto da transição à democracia, a natureza das interações sociais, todas elas descritas em torno da luta pela saúde é interpretada em uma luta rememorada pelos moradores de Heliópolis: o posto de saúde na Avenida Estrada das Lágrimas. A Unidade Básica de Saúde Sacomã, oficialmente fundada pelo governo do Estado de São Paulo no começo dos anos 90 é o símbolo da luta pela saúde em um período de intensa mobilização política pela moradia nas periferias de São Paulo. “Esse posto de saúde que nós temos aqui, ele simplesmente não era no lugar que ele está hoje. Ele era perto da Igreja Santa Edwiges. Onde é a creche Paulo Freire, era a UBS Sacomã. Que era o [posto] mais próximo daqui de Heliópolis. Tinha ele e tinha um outro que era lá no Arapuá, que eram os mais próximos. Aí depois construíram um posto no Jardim Secler. Que era uma divisão até uns tempos atrás. A divisão da favela era assim. Ela indica com o dedo na mesa a área de abrangências dos equipamentos de saúde a partir da casa das Damas da Associação. Daqui do meu equipamento pra lá era o posto Secler. No meu caso os meus vizinhos tinham que consultar no Secler. Daqui para baixo era no posto Sacomã. Mas lá pra baixo tem uma UBS perto da - “95” - [rua], que só atende o povo de

lá. Então existia esse posto do Sacomã que pegava até aqui. E do - “Copa” - [Copa Rio é uma região próxima a associação de Cleide] até o São João Clímaco era a UBS Secler”.

Mudou a vida, porque resignificou conflitos e experiências pessoais, mas também, porque enfrentou situações que transformam a sensibilidade a respeito do mundo. “Em 1980 nós brigamos pelo posto de salúde”. Sobre a luta pela saúde Manoel fala de quando a UBS Sacomã era na creche Paulo Freire. “Rapaz tudo passava por mim. Todas as pessoas passavam por mim. Aí nóis ia lá brigar pelo posto de saúde. Nóis brigamos pelo Gonzaguinha para a saúde ser lá. E lá onde é o posto era para ser uma escola de primeiro e segundo grau. Aí quando Jânio Quadros tava saindo, ai sobrou um dinheiro. Ele mandou perguntar pra nóis. “‘Fala praquele o homem loco lá... que tem um dinheiro pra voltar pro caixa e pra empregar na educação’. Manoel disse: “eu quero o Gonzaguinha”. Ele comenta que a professora Maria Ruth Sampaio também estava na negociação. Manoel comenta sobre o João Yunes, secretário da saúde do governo Montoro: “Foi uma briga para conseguir verba para esse posto de saúde. Quando tava tudo certo com o Gonzaguinha, aí o Jânio pediu o Gonzaguinha”. A negociação entre os militantes sobre o espaço do Gonzaguinha foi um dos primeiros movimentos de aproximação com o poder público. Antes de ser um posto de saúde ali no Gonzaguinha havia um pronto socorro. “Tudo exigência nossa”. Ai trocou o Jânio começou fazer o Gonzaguinha, a creche e botou o posto de saúde pra cima com o governador Quércia”, afirma Manoel (CP). É em sua relação com este acontecimento que os antigos líderes comunitários desenvolvem uma identidade, apesar de tudo.