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O EMDIVIDAMENTO COMO FENÔMENO MACRO SOCIAL

CAPÍTULO 4 DR ALEGRIA

5.3 O EMDIVIDAMENTO COMO FENÔMENO MACRO SOCIAL

Para compreender o consumo e o endividamento no Brasil é preciso aproximar- se de suas especificidades tanto em sua estrutura como em suas conjunturas locais. Em sua estrutura: indivíduos que, na crise econômica dos anos 90, tiveram e têm o sentimento de terem sido abandonados pelas instituições públicas à mercê das empresas comerciais. Em suas conjunturas: o endividamento é fruto de um sem-número de contingências vitais. É aqui, nesta realidade dupla, mais que sua importância quantitativa, onde reside o principal significado deste desafio. Os processos engendram um tipo de individualização específico: que tende, neste registro, a acentuar fortemente as expressões individualistas. É sobre esta última dimensão que se concentra a noção da dívida que aqui mobilizamos. Na verdade, por mais importante que seja a responsabilidade individual, o endividamento é inseparável de movimentos macrossociais que escapam da vontade pessoal. O endividamento é também um problema que implica uma responsabilidade coletiva. Por um lado, a capacidade de economizar, que sempre foi baixa no Brasil, sobretudo entre os setores populares e em uma boa parte das classes médias; enquanto que, por outro lado, a tendência de crescimento aumentou de maneira sensível. Entre um e outro se coloca não somente a formidável expansão do crédito, senão também sua coincidência com um período evidente de euforia nacional alimentada por taxas importantes de crescimento econômico, envoltas em uma agressiva incitação comercial ao consumo, e um crescimento salarial. É este cruzamento de linhas que permite distinguir a existência do período histórico claramente contrastado pelo consumo: os anos 2000. Deste modo, para além das causas pessoais, é importante compreender o significado coletivo do endividamento, e a conversão deste em um verdadeiro motor de crescimento econômico. A cultura de consumo no Brasil é um híbrido entre dificuldades econômicas familiares e aumento coletivo de expectativas.

Não é o mesmo estar endividado por causa de uma doença do que por uma espiral consumista. O juízo moral nunca é o mesmo72. Nos anos 2000, a relação com o consumo e o crédito não se dissolve, esta relação agora está acompanhada por uma diversidade de estratégias de cuidado e autocuidado. O que permite, de maneira

72 Disponível em: <http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/05/o-lado-oculto-das-bcontas-de- hospitalb.html>. Acesso em: maio de 2015.

reflexiva, encarar as seduções de uma oferta cada vez mais agressiva de consumo e as facilidades de acesso ao crédito.

O principal resultado quanto aos fatores socioeconômicos de desestabilização é a expansão de uma visão das trajetórias pessoais sob as interferências sociais de diferentes modos. Turbulências passageiras, como ocorreu com Rafael (CP), vendedor de planos de saúde porta a porta, que no momento da entrevista comenta: “O meu emprego está em risco. [...] Tenho pensão para pagar, tenho filho para sustentar”. Ou seja, um processo marcado pela mobilidade social descendente. Como Wandi (CP) que já não estava aguentando mais o trabalho na construção civil e decidiu parar. “Fiquei um tempo parado. Aí eu peguei e pedi o desligamento da empresa. Aí surgiu a oportunidade de fazer o processo seletivo pra agente comunitário lá na UBS perto de casa”. O tempo que as pessoas “caem” e levam para “levantar-se” é fundamental. Como Marcia (CP) que foi demitida e logo em seguida conseguiu um emprego no mesmo ramo como secretária. “Eu saí no dia 2 de maio, no dia 20 eu já tava empregada nessa clínica que eu te falei. Eu fiquei mais ou menos vinte dias sem trabalhar. Eu só fiquei um pouco mais porque teve um feriado que fez com que eu voltasse a trabalhar a partir da segunda- feira”. Uma fase de declínio seguida por uma fase de recuperação de uma posição social. Porém, para além da realidade da mobilidade social, o que caracteriza a experiência da posição social é a sua inconsistência (ARAUJO; MARTUCCELLI, 2011). Marcia, também, tem uma história com os movimentos sociais de Heliópolis. A sua mãe criou uma das primeiras creches de Heliópolis e Marcia sempre trabalhou como dirigente social nas associações sociais da comunidade.

Essas experiências não são exclusivas das classes populares. As classes médias, como mostram os testemunhos recém-evocados, também são atingidas. Trata-se de um elemento decisivo para o raciocínio apresentado. Como Rosângela (CM), psicóloga, que com 17 anos de idade trabalhava em um consultório de dentista “…e eu tinha uma relação de muita confiança com essa dentista. E a faculdade de psicologia era até aquele momento pelo menos integral, e ai o que aconteceu foi que por conta dessa relação é tá… quando eu comecei a fazer faculdade ela não queria que eu saísse e ao mesmo tempo eu precisava de trabalho. Então ela conseguiu fazer um arranjo lá maluquíssimo que conseguia conciliar o trabalho com a faculdade. Então eu comecei a fazer faculdade nessa faculdade particular. E daí, eu fiz um ano de faculdade na UNIFRAN é… depois desse um ano o que aconteceu foram duas questões ao mesmo tempo, eu parei a faculdade por que minha mãe tinha ficado doente, ela tinha tido um AVC e descobriram

uma aneurisma. Enfim, foi uma coisa bem dramática e eu me tornei a cuidadora dela, então eu deixei a faculdade pra poder me dedicar aos cuidados dela né? E… ao mesmo tempo eu tava muito insatisfeita com a faculdade. Então eu tranquei a faculdade, depois de um tempo eu… minha mãe foi melhorando em alguns meses, mas ela se recuperou. E aí tinha duas questões assim, uma primeira foi que eu tava bastante insatisfeita com a faculdade, uma outra foi que eu tinha me tornado mãe da minha mãe e a gente não conseguia sair desse lugar, depois que ela se recuperou nem ela conseguia retomar seu lugar de mãe e nem eu conseguia…”.

A inconsistência da posição social dos indivíduos atravessa a grande maioria dos grupos sociais no país. No que diz respeito aos aspectos unicamente econômicos da inconsistência, esta se revela com efeitos mais graves entre as classes populares, mas a experiência é comum aos indivíduos pertencentes a outras classes sociais: “Eu nunca tinha chegado a essa situação. Nunca tinha chegado a esse ponto e achar que um dia ia cair num lugar como esse, né. Porque eu morei em lugares chiques, muito bacanas e nunca tinha ouvido falar de favela. Eu ouvia falar vilas, vilas disso, vilas daquilo, né. Mas favela mesmo, eu tinha na minha mente que favela de Heliópolis era um nome muito bonito. Eu entrei aqui assim. Achava que poderia ser uma cidade muito bonita”, diz Neguinha (CP).

Ainda nos casos em que o drama das experiências relatadas não está presente, há um ponto em comum de natureza transversal: a falta de dinheiro, pontual ou crônica. O tema é onipresente nas entrevistas em todas as classes sociais. Provavelmente porque esta situação às vezes está relacionada com o endividamento bancário, mas também aparece como um limite objetivo imposto pelos salários baixos ou a renda familiar. Além disso, a experiência, quando não é vivida em primeira pessoa, faz parte do imaginário coletivo. A memória de uma possível desestabilização econômica é um aspecto central, mas não único, para os indivíduos entrevistados.