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Capítulo 1 Conhecimento de plantas alimentícias em cinco comunidades da

1. Introdução

4.2. Consumo de plantas e regime hidrológico

A análise realizada por Escalonamento Multidimensional Não Métrico (NMDS), que avalia o consumo familiar de vegetais nas diferentes estações hidrológicas do rio Purus, mostrou um forte padrão diferenciando o consumo de plantas na estação seca e na cheia, principalmente quando analisadas as comunidades individualmente (Figura 24). A composição da dieta das famílias foi significativamente diferente entre as estações (np-MANOVA, F = 4,99, p = 0,001).

Figura 24. Consumo familiar de vegetais por comunidade participante na RDS Piagaçu-Purus

e de forma geral em diferentes estações hidrológicas do rio Purus. Os pontos nos gráficos representam as famílias entrevistadas em cada comunidade. Os pontos vermelhos são referentes ao consumo familiar de vegetais na estação seca e os azuis na estação cheia. As linhas conectam os pontos de cada estação ao centroide. A distância entre os pontos representa graficamente a dissimilaridade (índice de Bray-Curtis) encontrada entre o consumo de vegetais nas diferentes famílias entrevistadas.

Avaliando o consumo entre as famílias de todas as comunidades (Figura 24, “Geral”), é visível que o consumo de vegetais na estação cheia é mais amplo, mais diversificado, em relação à seca, quando o consumo entre as famílias é mais similar. Da mesma forma, observa-se uma sobreposição em ambas as estações, o que demonstra a existência de uma alimentação básica, que não se altera entre as estações, mas que, na estação cheia torna-se mais diversa, enquanto na seca ainda é restrita e não diferencia-se muito desta alimentação básica.

Considerando a procedência dos vegetais consumidos por todas as comunidades nas diferentes estações, é possível observar uma inversão no padrão da estação cheia para a seca. Na estação cheia, o consumo de plantas oriundas da produção agrícola local, da extração das florestas, dos sítios e compras internas (Produção ou Extração) é maior do que o consumo de plantas oriundas do mercado externo (Compra Externa).

Por outro lado, na estação seca, a compra externa de plantas é maior do que o consumo da produção local (Figura 25).

Figura 25. Procedência dos vegetais consumidos mencionadas pelas cinco comunidades da

RDS Piagaçu-Purus participantes em cada estação hidrológic do rio Purus. Porcentagem dos vegetais consumidos oriundos de extração ou produção (compra interna, doação, sítio, roçado e horta) e compra externa (itens não produzidos pelas comunidades) relativa às estações hidrológicas do rio Purus.

Comparando o consumo alimentar em cidades do médio Solimões nos períodos de cheia e vazante, Costa (2015) discute que alimentos industrializados trazidos de Manaus ou outras regiões do país são mais consumidos na época da cheia e produtos regionais e de produção local são mais consumidos na vazante. Esta sazonalidade pode ser explicada pela maior disponibilidade de pescado na vazante, como também pela possibilidade de cultivo na várzea durante este período. No período de cheia, os custos com alimentação de uma forma geral são maiores, devido à escassez de produtos regionais e maior consumo de produtos externos.

Com os dados coletados neste trabalho, é possível acrescentar a esta discussão que, o consumo de vegetais tende a ser maior no período da cheia do rio, não somente pela frutificação das espécies mais consumidas como o açaí, uixi e piquiá como também pelo maior acesso aos igapós e várzeas, onde os frutos estão disponíveis e a coleta é facilitada, como também observado por Fernandes (2012). Na estação seca, porém, com acesso dificultado às áreas alagáveis, o consumo de frutas das matas diminui, e aumenta-se a compra de vegetais nas vendas.

40 % 42 % 44 % 46 % 48 % 50 % 52 % 54 % 56 % Cheia Seca P o rc en tag em d e v eg etais co n su m id o s

Procedência dos vegetais consumidos em cada estação

Compra Externa Produção ou Extração

Além do acesso às florestas, outro fator de influência é a época de plantio nas áreas agrícolas. Por se tratar de comunidades localizadas em áreas de várzea ou próximas às várzeas, o plantio ocorre, em parte, na época da seca do rio, e a colheita na época de enchente. Sendo assim, é consequente que no período da cheia do rio haja maior fartura de vegetais para o consumo, inclusive de farinha (Murrieta e Dufor 2004). Neste contexto, é interessante salientar que o período de cheia do rio é considerado, como observado nas vivências em campo, como um período de escassez ou de difícil obtenção de alimento.

Mesmo que haja maior fartura de vegetais, o pescado é menos farto do que na estação seca, e isto leva a discussão do que é considerado “comida” pelas comunidades. Segundo Murrieta (2001), em comunidades ribeirinhas, alimentos como temperos, verduras, itens de consumo ocasional, ou mesmo produtos mais relevantes do consumo diário como arroz, feijão, carne de gado e massas são relegados à categoria de “não comida”. Assim, “comida” são os itens centrais da dieta das famílias: pescado e farinha de mandioca. A falta, ou mesmo escassez, desta combinação é acompanhada pela percepção de fome, ainda que por vezes a mandioca seja considerada “comida de pobre”, não possuindo o status do arroz, comprado externamente.

Dentre 71 espécies mencionadas nos recordatórios 24 horas, 61 foram consumidas na estação cheia, 49 na seca, sendo 39 espécies em comum em ambas as estações. Estes números mostram que mesmo o consumo de vegetais sendo esporádico e sazonal dentro do contexto alimentar, a maior parte das plantas consumidas são as mesmas, tanto na estação cheia quanto na seca. Estas plantas consumidas em ambas as estações são principalmente cultivadas e fazem parte da alimentação básica. Apesar de serem as mesmas plantas consumidas, a sua quantidade é variável em cada estação, tendo em vista, principalmente, a disponibilidade sazonal agrícola. As plantas exclusivas de cada estação são a menor parte do consumo, e se destacam em número as consumidas na estação cheia, as quais são espécies encontradas tanto em sítios, roçados, e extraída das florestas inundadas e matas de terra-firme. Por outro lado, das espécies consumidas exclusivamente na seca do rio, não constam qualquer extração da mata, são, sobretudo plantas cultivadas oriundas de comércio ou dos roçados (Tabela 7).

Tabela 7. Lista do total de plantas consumidas mencionadas pelas cinco comunidades da RDS

Piagaçu-Purus participantes de acordo com a hidrologia do rio Purus e a respectiva procedência mais citada. Nomes populares referidos no Apêndice A.

No que diz respeito à dieta básica, em todas as comunidades participantes, o consumo diário de vegetais gira, em média, em torno de 10 plantas (Tabela 8). Se analisarmos as 10 plantas mais consumidas em cada estação, é possível observar a monotonia alimentar da dieta básica, composta principalmente pela mandioca, banana e temperos. As 10 plantas mais consumidas representam 78,40% do total do consumo vegetal da estação cheia e 74,10% do total da estação seca.

Compra

externa Sítio Roçado e Horta Doação

Compra

Interna Extração

Cheia e seca

(N=39)

abacaxi bacuri banana fruta-pão castanha

alho caju jerimum limão

arroz cupuaçu mandioca canela jenipapo feijão-de-praia cebola-de-

cabeça goiaba alfavaca coloral goiaba-

araçá cariru feijão inga-açu cebola-de-palha melancia inga-cipó cheiro-verde

milho manga chicória

pimentão couve

pimenta- do-reino

pimenta (ardosa e cheirosa)

pupunha cará (branco e

roxo)

tomate maxixe

maracujá

Cheia

(N=22)

batata cacau morango-do-

roçado açaí

araçá- vermelho

carambola macaxeira araumari

coco mamão ata

ingá feijão-de-metro castanha-

de-cutia

jambo uva-do-roçado preciosa

laranja sapatinho papo-de- mutum uxirana biribá Seca (N=10) batata-

portuguesa amora cacaurana abacate

cominho feijão-coração-

de-galinha apuruí

repolho capim-santo

Tabela 8. Média e desvio padrão do total de plantas consumidas pelos entrevistados nas

comunidades e seus respectivos tipos de acesso. N = número de entrevistados.

Tipo 1 Acesso constante Tipo 2 Acesso ocasional Tipo 3 Acesso irregular Cuiuanã (N=70) Itapuru (N=70) Uixi (N=44) Uauaçu (N=31) Fortaleza (N=34) 12,13 (3,78) 11,01 (3,08) 10,11 (3,84) 12,10 (3,99) 11,62 (1,39)

A diferença entre a lista de 10 plantas mais consumidas na cheia e na seca é a chicória e o tomate, sendo a primeira presente na lista da cheia e o segundo na lista da seca. Como mencionado, apesar de serem as mesmas plantas consumidas, a quantidade deste consumo é variável entre as estações, como é o caso claramente da banana e da pimenta-do-reino (Figuras 26 e 27). A procedência destes itens mais consumidos é notadamente de compra externa às comunidades.

Figura 26. Dez plantas mais consumidas na estação cheia mencionadas pelas cinco comunidades da RDS Piagaçu-Purus participantes. Procedência das dez plantas mais consumidas nas estações de cheia do rio Purus em relação ao total de plantas consumidas em cada estação. Produção (roçado, hortas, doação); Compra Interna (itens produzidos na comunidade e comercializados internamente); Compra Externa (itens produzidos externamente à comunidade, comercializados principalmente nas cidades próximas e nas vendas locais).

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Dez plantas mais consumidas na estação cheia

Produção ou Compra Interna Compra Externa

Figura 27. Dez plantas mais consumidas na estação seca mencionadas pelas cinco

comunidades da RDS Piagaçu-Purus participantes. Procedência das dez plantas mais consumidas nas estações de seca do rio Purus em relação ao total de plantas consumidas em cada estação. Produção (roçado, hortas, doação); Compra Interna (itens produzidos na comunidade e comercializados internamente); Compra Externa (itens produzidos externamente à comunidade, comercializados principalmente nas cidades próximas e nas vendas locais)

A predominância de compra externa nos itens vegetais básicos da alimentação é preocupante para a soberania alimentar destas comunidades, e reitera-se a importância do aumento da produção agroecológica para o autoconsumo, como fator indispensável tanto para a autonomia como para diversificação alimentar (Khatounian 2001; Fernandes 2012; Siliprandi 2015). O Instituto Piagaçu anteriormente proporcionou cursos e levantamentos de roçados e áreas de manejo junto às comunidades da região, debatendo assuntos como a diversificação dos plantios e a redução do uso do fogo. Estas iniciativas foram positivas e bem recebidas pelos moradores. Faz-se importante a continuidade de iniciativas como esta, no sentido de proporcionar trocas entre as práticas e conhecimentos agrícolas dos moradores das diferentes comunidades.

Do consumo total do item vegetal mais importante no cotidiano das comunidades, a mandioca, na estação cheia, 77,06% é proveniente de produção interna e apenas 22,94% de compra externa. Na estação seca, do consumo total de mandioca, 58,19% é proveniente de produção interna e 41,81% de compra externa. Em ambos os casos o consumo da produção interna é superior, porém na estação seca, a compra da mandioca chega a quase o dobro em relação à estação cheia. Adams et al. (2005) apontam para a instabilidade agrícola da mandioca como o aspecto mais sensível da (in)segurança alimentar de comunidades ribeirinhas de várzea em Santarém (PA). Da

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Dez plantas mais consumidas na estação seca

Produção ou Compra Interna Compra Externa

mesma forma Silva et al. (2017) constatam que comunidades de várzea, sujeitas às intempéries das enchentes na agricultura, são maiores consumidoras de produtos industrializados. Portanto, esta flutuação na produção nas diferentes estações hidrológicas merece atenção de ações e políticas públicas voltadas para a segurança e soberania alimentar na região.