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O desenvolvimento das tecnologias da informação ao longo do tempo, além de reconfigurar o binômio entre arte e técnica, reajusta a comunicação entre artista e público. A internet e as redes sociais possibilitam hoje uma interação mais direta entre o músico e “seu público”, conforme informa Marcelo Segreto (14/4/2015). Nesse contexto, a fala dos entrevistados abordam tanto o artista que vai atrás do seu público, quanto o público que “vai atrás do seu artista”, explica Felipe Cordeiro (14/4/2015). Segundo o músico, os artistas que têm a internet como principal meio de comunicação acabam encontrando um jogo de interação e feedback do público muito “sincero e gratificante”. Felipe explica que “na época das gravadoras o artista era um cara genial, aquele maluco que vivia fazendo loucura no camarim, no palco”. Hoje, o músico responde pela sua obra, pelo que faz, pelo que posta, pelo que sai no jornal. Nos termos dele, “a conversa é direta!”.

O cara que vai ouvir o teu trabalho ele vai estar em contato com a obra daquele artista mesmo. Ele pensou a capa, ele pensou a comunicação, sabe? Antigamente era tudo montado, a roupa do cara era montada, a capa do disco, o papo... Hoje é tudo muito franco. Acho que essa franqueza é característica de nossa época. [...] Antigamente o artista era mistificado... Não que o cara não fosse bom, mas o cara tinha 15 produtores!!! Tinha milhões de reais investidos... (CORDEIRO, 14/4/2015)

Nas páginas dos artistas entrevistados encontram-se muitos exemplos dessa interação direta, como pedido de informações de horários, preços e locais de shows, avaliação de videoclipes e/ou músicas e demandas de apresentações. Nesse sentido, a internet funciona tanto como instrumental de alcance de um público determinado, quanto da intensidade das relações. Isso foi dito pelo músico Caio Lima. Para ele a internet age de forma muito mais intensiva do que expansiva. O músico conta que a resposta do público sobre a Rua é muito importante para a banda, até mesmo do ponto de vista da produção. No caso da Rua, a banda pediu para os ouvintes que tirassem fotos de situações despertadas a partir da audição do disco. Isso gerou tantas fotos e interações que a banda produziu um livro. “Era outra forma de atingir não só quem tava sabendo daquela rede, daquele circuito, mas aqui fora também. Os livros se esgotaram rapidamente”, conta Caio (LIMA, 4/3/2016).

No universo do consumo/recepção da música considerada independente hoje é importante destacar o caráter cult, também chamado de indie e hipster, que ronda esse tipo de produção. O termo indie (abreviação de independente) entrou em uso no início da década de 1980, quando músicos e produtores passaram a agir de forma autônoma às grandes gravadoras, principalmente no Reino Unido e nos Estados Unidos. Hoje o termo se aplica à indústria cultural de forma geral e faz referência a um estilo que busca a popularidade restrita. Já o termo hipster é frequentemente utilizado para se referir a um grupo de pessoas pertencentes a um contexto social da classe média urbana. A cultura hipster é marcada pela música considerada indie e estilos de vida considerados “alternativos”, na medida em que busca pouca popularidade e muita originalidade. Mas qual o fator ilusório presente no ambiente da circulação dessas mercadorias?

Embora os termos indie e hipster signifiquem muito mais a cristalização de um estereótipo massificado e mediado para entender, categorizar e “marketizar” um tipo de consumidor, importa ressaltar que a ideia do independente é fortemente relacionada a essas tags. Missionário José atesta essa premissa ao afirma que o independente não interage com o público do sertanejo, com o tecnobrega ou com o funk carioca, por exemplo. “A gente fala muito pra pessoas de classe média com alguma escolaridade que vive em um determinado nicho dentro da realidade do Brasil. É um pedaço do mercado que acredita que não lida com o mercado” (LIMA, 2/9/2015). Com mesmo raciocínio, Luísa Maita faz menção “a música que o povo

consome” para fazer distinção da sua. É preciso frisar, contudo, que a pretensa superioridade da música considerada independente não é uma regra observada nas entrevistas, mas passa por alguns entrevistados, em sua minoria.

Nesse contexto da lógica da diferenciação percebem-se os “gostos” como marcadores de distinção, associados ao nível de instrução e origem social, constituindo modos de práticas sociais. Trata-se dos gostos enquanto disposição adquirida para diferenciar, estabelecer ou marcar diferenças por uma operação de distinção. É assim que a arte e o consumo artístico estão predispostos a desempenhar uma função social de legitimação das diferenças sociais. Nesse sentido, Bourdieu (2008, p. 99) se pergunta sobre os usos sociais aos quais se presta cada tipo de arte, ao trazer, por exemplo, benefícios simbólicos e distinção para um grupo seletivo de pessoas, estruturando um estilo de vida característico. O autor recorre ao princípio unificador ou gerador das práticas, o habitus de classe, como forma de explicar um conjunto de agentes situados em condições homogêneas de existência, “impondo condicionamentos homogêneos e produzindo sistemas de disposições homogêneas, próprias a engendrar práticas semelhantes” (BOURDIEU, 2008, p. 97).

O habitus enquanto capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida. No público considerado cult, indie e/ou hipster é preciso destacar o poder propriamente de constituir, instituir e impor, uma categoria particular de sinais. É o que Bourdieu (2008, p. 100) chama de capital cultural e que está frequentemente ligado ao capital econômico, impelindo um grupo de pessoas para a maximização dos rendimentos distintivos e ao consumo ascético. Nesse contexto, destaca-se a presença e o efeito de homologias (BOURDIEU, 2008, p. 102), que são os interesses específicos de distinção, os quais podem ser totalmente desinteressantes para outros públicos.

As diferentes frações de classe dominante distinguem-se precisamente no aspecto em que participam da classe considerada em seu conjunto, ou seja, pela espécie de capital que se encontra na origem de seu privilégio e por suas maneiras diferentes de diferir do

comum e de afirmar sua distinção que lhe são correlatas (BOURDIEU, 2008, p. 240).

Nesse sentido, o consumo dos produtos ditos cults, indies e/ou hipster, além de cumprir um papel de distinção, são acessíveis, sobretudo, a uma parcela de consumidores que executam a função de descobridores desse tipo de arte de vanguarda. Ao mesmo tempo em que consome, o público cult também cumpre o papel de instância de consagração. São esses fatores combinados que fazem com que os fenômenos musicais autônomos massivos e populares (o tecnobrega paraense, o arrocha na Bahia ou o funk carioca, por exemplo) não sejam categorizados como parte de uma “cena independente” pelas mídias e festivais especializados. O que está em jogo na conceituação do “independente”, portanto, é um conjunto de posições e tomadas de posições pelos agentes de um determinado universo simbólico que busca a distinção, relacionados, sobretudo, a uma fração de classe dominante e privilegiada, em razão de um capital cultural específico, que também é econômico.

V VIVER DE MÚSICA

No contexto das atividades culturais, o empreendedorismo é reconhecido como a forma mais apropriada de encarar os desafios do “trabalho criativo” hoje. A partir das configurações do mercado e da economia cultural contemporânea, multiplicam-se os artigos, encontros, feiras, rodadas de negócios e manuais com dicas “valiosas” para quem pretende viver de música, que vão desde a importância do network até o estudo do planejamento e da realização da carreira. Para entender “como viver de música” e seus significados no mundo trabalho, este capítulo aborda o engendramento de comportamentos e práticas ditas empreendedoras, presentes nos discursos dos músicos entrevistados, e suas relações com as facetas da precarização analisadas no Capítulo III.

Dos artistas que compõem a amostra desta pesquisa todos os 22 artistas afirmam “viver de música”, pois seus rendimentos vêm exclusivamente ou prioritariamente da música, ao mesmo tempo em que confirmam o caráter flexível, contínuo, informal e pulverizado de suas atividades. O empreendedorismo cultural é reafirmado nas narrativas em suas ambiguidades fundamentais, tanto no aspecto positivo da autonomia e liberdade artística, quanto no aspecto negativo das consequências da intermitência, polivalência e intensidade do trabalho. As análises desses discursos ajudam a compor as condições de trabalho do músico independente ou autônomo que, geralmente, presta seus serviços a mais de uma banda, gravando, ensaiando e tocando com outros artistas. Suas principais fontes de renda vêm dos shows, mas eles também compõem suas receitas por meio da produção de trilhas sonoras, jingles, festas e atividades de docência (exemplos mais citados). O objetivo deste capítulo é analisar as condições concretas do trabalho artístico independente traduzidas no “viver de música”.