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Em um contexto no qual o Estado se isenta progressivamente do seu papel de garantidor de direitos, o mercado é oferecido como uma instância substituta

para a cidadania. Tornar-se empreendedor cultural passar a significar a integração individual ao mercado. Essa integração é realizada de forma bastante desigual, principalmente se for levada em conta as especificidades dos interesses empresariais. Esses mecanismos de financiamento, por sua vez, frequentemente são colocados de forma insuspeita, sob a justificativa de uma gestão pública eficaz. A ausência do debate sobre as causas de desigualdades nas políticas culturais, contudo, remete a uma larga e difícil agenda cultural e política.

Nesse contexto, para que as políticas públicas culturais possam se contrapor à hegemonia neoliberal e seus efeitos de aprofundamento das desigualdades, de consolidação do mercado e do interesse privado, torna-se essencial uma reflexão acerca da partilha efetiva dos recursos e dos poderes, de forma a propiciar a participação política dos grupos tradicionalmente considerados objeto do desenvolvimento que devem tornar-se sujeito desse processo. Nessa dinâmica, embora as novas tecnologias engendrarem novas sociabilidades, alterando a correlação de forças no processo de comunicação, tão importante quanto considerar a complexidade da era digital é sustentar a existência de políticas públicas capazes de evitar monopólios.

Quando se analisa o mercado de música no Brasil, são observados diferentes arranjos sobre os quais pode ser identificado o emblema do artista “independente” na economia contemporânea, sendo as mais comuns aquela que exclui o capital internacional e a que define a independência a partir da autonomia econômica em relação ao Estado, ao adotar sistemas de financiamento alternativo que não as leis de incentivo público. Desses arranjos, contudo, qual pode ser tido como critério de política pública, no sentido de descentralizar a produção e a distribuição dos recursos culturais? O primeiro critério faz sentido em uma econômica estadunidense, tendo pouca relação com as distinções do mercado nacional. O segundo critério, por sua vez, e conforme enfatizado por muitos dos entrevistados, seria o ideal para um produto com grande apelo comercial, mas que não configura a realidade dos músicos independentes. Além disso, segundo Yuri Rabid (13/7/2014) “O independente vai significar ser sempre aquele à margem do dinheiro público? Mas que conveniente para as políticas públicas...”.

Excluindo o capital internacional, cumpre realizar as especificações do mercado nacional. Evidentemente é possível identificar grandes gravadoras nacionais, assim como pequenos e médios produtores que atuam de forma terceirizada, estabelecendo parcerias com gravadoras nacionais de grande porte e majors. E, finalmente, produtores autônomos, que realizam todos os processos de produção, distribuição e promoção. O pressuposto conceitual desta pesquisa parte dessa última definição por entender que apenas com prioridades de recursos para esse tipo novo de independência é possível realizar a descentralização dos recursos culturais, a partir de critérios claramente definidos.

Ao estabelecer uma tipologia tão detalhada para os independentes não se busca nublar o complexo universo das economias musicais contemporâneas e seus diversos arranjos, engessando uma realidade que é fluida. Mas, sim, apostar em uma redefinição de fronteiras e na criação de uma tipologia útil às políticas públicas. Porque se o independente não depende mais de um atravessador, ele continua dependendo de várias estruturas, sobretudo econômicas e políticas que se sobrepõem no atual modelo de indústrias culturais, rearranjando hierarquias. Nessa direção, é preciso revalorizar o Estado como suporte de políticas públicas culturais democráticas. As frentes do Estado na gestão nacional da cultural passam, então, pela atribuição de responsabilidades típicas, das quais se inclui o incentivo direito e de forma principal aos artistas que realizam todos os processos de trabalho de forma independente ou autônoma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da pesquisa realizada é possível concluir algumas premissas gerais. A primeira delas é que a atividade musical independente, apesar de apresentar particularidades analíticas, constitui um âmbito privilegiado para abordar os processos de reestruturações produtivas do capital e as configurações do trabalho artístico. A ideia de independência na música é fortemente ligada ao desenvolvimento dos processos produtivos e distributivos e as tecnologias da informação e da comunicação. Esses processos não são uma novidade. A historicidade da indústria fonográfica brasileira aponta os marcos do caminho que nas últimas décadas trouxe à tona o perfil de músico-mediador entre arte e técnica. São fortalecidas e diversificadas as cenas autônomas dos mais variados estilos musicais, sem que todas elas sejam consideradas independentes pela mídia e festivais especializados.

Na esteira do mercado e da economia fonográfica, duas grandes fases do movimento de reorganização da indústria da música brasileira, convivem ainda hoje. A primeira, entre 1980 e 1990, realiza a terceirização produtiva. Os músicos passam a atuar de forma autônoma em relação à produção, especificamente. Sob sua responsabilidade está a minimização dos riscos e custos assumidos pelas grandes gravadoras, assim como o papel de descobrir “talentos”. Intensificam-se os contratos apenas de distribuição com as majors, consolidando relações de complementariedade. A partir dos anos 2000 a mesma tecnologia que assegura a reorganização da produção traz a dificuldade de controle das grandes gravadoras na concentração da distribuição. Acentua-se um tipo de independência e/ou autonomia de toda a cadeia produtiva da música assente no tripé produção – distribuição – consumo/promoção.

A partir dessas constatações e no intuito de entender a vivência do trabalho artístico nesse contexto, foram definidas as características que uniram os músicos entrevistados: viver exclusivamente ou prioritariamente de música; realizar os processos de produção – distribuição – consumo/promoção de forma autônoma às gravadoras/distribuidoras, ou seja, sem intermediários; consagração em mídias e

festivais especializados que se denominam “independentes”. Mesmo com essa orientação de seleção observou-se uma grande variação na própria narrativa dos artistas quanto aos aspectos distintivos do que seria um músico independente hoje. São as principais: a) oposição às majors (independente de capital internacional); b) financiamento não estatal (independente de financiamento público); c) aura cult (independente de estética massiva ou de mídias tradicionais). O ponto de intersecção de todos eles se encontra, de forma geral, na autonomia econômica e na autogestão da carreira que desembocam no empresariamento de si mesmo.

A partir do segundo capítulo é possível analisar as ideias que configuraram o “gênio criador” para observar que os mecanismos que fazem aparecer ou celebrar “talentos” estão relacionados às estruturas familiares financeiras e/ou artísticas, assim como raça, gênero, idade, região e formação. Compreender interseccionalidades entre classe, raça e gênero no universo do trabalho artístico ajudou a entender as diferentes trajetórias narradas. Na amostra desta pesquisa, em termos de estratificação de classe, a maioria dos entrevistados se declararam privilegiados em termos econômicos e/ou estão inseridos em famílias de históricos artísticos. Dos 22 artistas, 15 são homens (dos quais três se declaram negros) e sete são mulheres (das quais quatro se declaram negras - três são mães). Têm, em sua maioria, menos de 40 anos, estão predominantemente em São Paulo e se inscrevem no ensino superior (completo ou incompleto), quase sempre relacionado à área musical ou artística em geral. Além disso, os resultados apontam para um baixo nível de filiação sindical e/ou de organizações políticas.

O fato da amostra desta pesquisa, assim estruturada, ser parte da “nova cena independente brasileira”, suscitaram muitas questões ao longo das entrevistas e reiteraram correlações entre classe, raça e gênero enquanto componentes de uma totalidade que definem espaços, posições e práticas sociais de homens e mulheres no mercado de trabalho artístico. Nas diferentes trajetórias alcançadas, uma condição aparece compartilhada por grande parte dos músicos: a dificuldade de construir uma identidade profissional e a procura de trabalho no campo artístico. Contudo, para os homens brancos e de família economicamente estáveis e/ou artística, a dificuldade em se assumir músico se presenta de forma mais sutil em suas narrativas. São os artistas negros que mais destacam a dificuldade em se assumir artista e de lidar com as inseguranças dessa profissão, porque são também

a maior parte da amostra que não vem de família privilegiada, ao mesmo tempo em que são os que mais contam com formação superior na área artística e fora dela.

Nesse contexto, Angela Davis (2016, p. 12) já afirmava “é preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa classe. E gênero informa a classe”. Nas narrativas das mulheres observaram-se os cruzamentos de uma dupla existência: ser mulher e ser artista. Assim, Alessandra Leão, por exemplo, quando se tornou mãe, interrompeu seu trabalho como cantora (seu marido, que também artista, continuou). Juçara Marçal, por sua vez, por ser mulher, artista, negra e não vir de família economicamente estável, aos 52 anos no momento da entrevista, constitui o emblema da intersecionalidade desta pesquisa. Sua trajetória é permeada pela negação da insegurança que representa a vida artística e a busca da estabilidade econômica, por meio de um alto grau de formação acadêmica.

Dessa maneira, embora seja constatada uma variação mais ou menos homogênea em termos de classe, formação, gênero, etnia, região e idade na caracterização do independente conforme categorizado pela mídia e festivais especializados (e seu atributo cult), heterogeneidades e dissidências também fazem parte de boa parte da amostra, de forma que o cruzamento desses dados revelam importantes aspectos do trabalho artístico. No caso desta pesquisa, o independente se dá por meio de um perfil jovem, de estrato de classe privilegiado, masculino, branco, geograficamente localizado e com nível de escolaridade elevada em relação ao restante da população. Quando se trata das trajetórias das famílias não privilegiadas, negras e/ou de artistas mulheres as dificuldades, percalços e descréditos da atividade artística se sobrepõem e se desdobram, demandando, frequentemente, mais trabalho e mais formação.

As condições estruturais que informam o retrato sociológico do artista expõem o movimento de emergência da cultura e de suas atividades, no contexto de uma “nova economia”, hipoteticamente centrada no imaterial. É possível perceber como a superestimação do poder da técnica comparece com força no debate contemporâneo do trabalho imaterial. Ainda que as teorizações neomarxistas sobre trabalho imaterial informem importantes dimensões da reestruturação produtiva e as mutabilidades do capitalismo contemporâneo, pouco acrescenta na análise das