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A ideia do artista, e especialmente do músico, e seu modo de existência não se dá de forma homogênea em todas as formas históricas. Coli (2006) pesquisa especialmente o trabalho musical em suas origens pré-capitalistas e analisa essa atividade a partir de um ponto de vista moral e social. Segundo a autora (COLI, 2006, p. 51), do ponto de vista moral, a profissão do artista era vista como uma forma de degradação: o músico era visto como um saltimbanco. Essa dimensão da degradação faz recordar a metáfora da Cigarra e a formiga, na qual o papel da formiga está relacionado diretamente a um tipo de trabalho manual e o da cigarra, a uma espécie de diversão. Do ponto de vista social, o músico estava ligado a uma imagem pouco recomendada, próxima a do vagabundo. O conceito de trabalho na história do pensamento ocidental apresenta-se fundamentalmente centrado em dois aspectos: fadiga e necessidade. O caráter denotativo da arte apontaria para uma moral adversa, que levaria ao ócio. Em outros termos, o não-trabalho no âmbito da arte incluiria dentro de si o conteúdo do ócio.

Considerações sobre o artista na Antiguidade Clássica e na Idade Média apontam para a sua oposição ao artesão, junto com a perspectiva de inspiração ou intuição divina. Subjacente à apresentação das formas pelas quais a arte e os artistas foram acolhidos nas cortes do Ocidente europeu, o historiador da arte Martin Warnke (2001) explica o valor especial atribuído às obras de arte e à ideia de capacidade superior dos criadores. O autor (WARNKE, 2001, p. 45) elucida que, após a metade do século XIII, as relações, sobretudo entre artistas plásticos e as cortes, assumem formas definidas e específicas. Na medida em que os reis da Europa ocidental vão consolidando sua soberania, emerge a necessidade de suas representações pictórias. A participação das artes na manifestação da aura do príncipe e a proximidade privilegiada do artista com relação ao soberano produziu e consolidou a impressão de uma extraordinária forma de atividade superior, nutrida por bênçãos especiais e dotada de uma competência universal.

Segundo Warnke (2001, p. 24) os dados históricos fornecem algumas características básicas do posto do artista na corte. O pintor, por exemplo, estava situado no círculo de serviços do bem-estar do soberano: seu ocupante recebia um título, um pagamento fixo, presentes especiais e podia exercer autoridade sobre os outros empregados. Nesse mesmo contexto, Coli (2006, p. 103) elucida que o mercenarismo, para o músico, representava uma atividade doméstica e restrita à satisfação da corte. A pesquisadora afirma que o contrato de trabalho de Bach, por exemplo, era idêntico ao de um doméstico da corte, cujo ofício caracterizava-se por uma forma de servidão. Esse caráter, contudo, não se realizou sem a resistência dos artistas em executar exatamente o que lhe era solicitado pela corte (COLI, 2006, p. 112).

O Renascimento imprime uma boa aceleração à figura profissional dos artistas que encontram alguns espaços mais amplos e reconhecidos, desvinculados das exigências eclesiásticas. Intensifica-se uma transição entre o mecenas individual para o mercenário empresarial no trabalho artístico. Os contornos da racionalidade burguesa sugerem a autonomia do artista em relação às estruturas tradicionais, preparando o terreno para o nascimento ideológico do gênio, a título de justificativa do papel do artista nessa nova sociedade que possibilita certa mobilidade social.

O cientista social José Carlos Durand (1989) explica que no Brasil as artes não eram vistam com bons olhos pelos clãs oligárquicos, cujo ensino durante o Império era endereçado principalmente aos filhos de artesãos, dos pequenos comerciantes e ex-escravizados. O fato da música ter sido executada nesse período por negros e mulatos em uma sociedade escravocrata também informa o sentido de uma ideologia da banalização social das atividades artísticas na sociedade brasileira. Não raro encontra-se no país uma ideologia da atividade artística como sinônimo de negação do trabalho e de um prazer depreciativo no limite da desvalorização da atividade humana.

A emergência da modernidade soma várias influências ligadas ao romantismo, ao pensamento cartesiano racional e ao iluminismo, enquanto movimento pela busca do sujeito autônomo, prevalecendo sobre dogmas e crenças. É nesse período que a noção de individualização do artista e a figura do gênio criador se tornam efetivas. Tais noções partem da premissa de que a inspiração não é tida como algo que vem do ente exterior, mas sim de dentro do próprio artista, que passa a ser valorizado por suas capacidades criativas subjetivas. Com o sujeito econômico burguês surge também o sujeito artista, desdobrado no gênio. Juliana Coli (2006) explica esse movimento no âmbito da música nas seguintes palavras:

A ética depreciativa e adversa da atividade musical contribui, inicialmente, pra a afirmação da ideia do ócio e transforma-se, posteriormente, em uma refinada ideologia capitalista legitimada pela ‘indústria do tempo livre’, segundo a qual toda a atividade lúdica parece neutralizar o complexo processo de valorização do capital. O significado moral da depreciação do músico transforma-se em um valor ideológico de inversão da realidade do capital, ao mesmo tempo em que a evolução histórico-social serve como base econômica dessa ideologia (COLI, 2006, p. 53).

O resultado analítico dessa construção histórica que relaciona a atividade artística, grosso modo, à genialidade, ao lazer, ao prazer e ao ócio, reforça a ideia do artista com capacidades naturais. Nesse sentido, a arte é inspiração pura. Diferente do ofício, ela é irracional, somente suscetível de revelação e não de compreensão. Interior, gratuita, mágica, iluminada, a arte se abre a alguns

privilegiados que comungam através dos séculos um mundo de valores. Sua via de acesso é a intuição e o inconsciente. A dificuldade de se entender os artistas como trabalhadores deriva, desde então, da ideologia romântica da criação como algo fora do mundo e, sobretudo, fora do mercado.

Assim, as análises tendem a privilegiar a obra do artista enquanto criação estética, em prejuízo do processo de trabalho que a elaborou. Nesse sentido, o sociólogo francês Pierre-Michel Menger (2005, p. 15) explica que:

É com a celebração dos valores da inspiração, do dom, do gênio, da intuição, da criatividade que triunfou, na era romântica, o individualismo artístico, entendido simultaneamente como o princípio e o resultado da concorrência entre os artistas na sua procura sistemática de originalidade estética, e como o produto da concepção, então muito difundida, segundo a qual o artista é o indivíduo por excelência, a pessoa realizada na essência da sua humanidade.

Na ótica que acentua o artista enquanto trabalhador, Menger (2005) realiza uma análise sociológica da arte na perspectiva da categoria trabalho. A questão que se coloca é a dos mecanismos que fazem aparecer ou celebrar talentos. Colocar a questão dos talentos sobre os quais as atividades artísticas se manifestam é igualmente interrogar-se sobre as condições necessárias à revelação destes talentos e os modelos de organização da sociedade que daí derivam. Analisar tais processos da profissionalização artística é descobrir como o artista é, ao mesmo tempo, trabalhador e mestre da desmultiplicação de si, saltimbanco e também homem de métier, impaciente face a todo o limite e igualmente hábil a inventar soluções inéditas para gerir os riscos aos quais se expõe (MENGER, 2005, p. 23).