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2. Fundamentação teórica

2.3. Contexto

Uma abordagem, nos termos em que se viu, não permitiria adotar uma compreensão restrita de semântica lingüística; “o estudo do significado abstraído daqueles aspectos que derivam da intenção dos falantes, dos seus estados psicológicos e dos aspectos socioculturais do contexto em que os enunciados se realizam.” (Cann, 1993, p.Ol). É preciso, portanto, dar conta de reenquadrar na abordagem pretendida todo o material que essa noção restrita deixa de lado. E aí, emerge a controvertida noção de contexto. vMém da própria definição, duas questões: (a) qual é a amplitude do contexto?, (b) ele se inscreveria no componente semântico ou pragmático?

Não se vai aqui fazer uma revisão de toda a literatura na área, nem apresentar definição própria. Pretende-se analisar algumas definições para chegar àquela que favoreça o estudo das descrições definidas e que se coadune com a linha teórica que vem sendo

traçada. É o que acontece com diversos autores. Cada um deles procura definir uma compreensão de contexto que se aplique à teoria que defende. Assim, Leech (1983) diz que considera contexto “qualquer conhecimento assumido como compartilhado entre um falante e um interlocutor e que contribui para a interpretação pelo interlocutor do que o falante quer dizer através de um certo enunciado” (p. 13); a ênfase recai no conhecimento compartilhado entre os interlocutores.

Levinson (1983), no prefácio do seu livro, também faz delimitações em relação ao que compreende por contexto, já que inscreve claramente sua obra na tradição filosófico- lingüística; “inclui somente alguns dos parâmetros básicos do contexto de enunciação, incluindo a identidade, papel e lugar dos participantes, suposições sobre o que os participantes sabem ou assumem, o lugar do enunciado dentro de uma seqüência de turnos de fala, e assim por diante.” (p. 10). Admite que há outros fatores de ordem social e cultural que também são considerados contextuais, mas não se limita a eles dado que não se inscrevem na linha teórica ou nos objetivos de seu livro.

Lyons (1987), em seu livro básico de lingüística^^, não fala de contexto de forma geral; limita-se a dizer o que se inclui no contexto de enunciação; “as crenças e atitudes de determinadas pessoas, referência a determinadas entidades do ambiente, convenções de etiqueta vigorando entre determinados grupos, e assim por diante.” (p. 159). Em sua obra sobre semântica (1977)^^ faz uma abordagem mais completa e aponta alguns conhecimentos que o usuário da linguagem precisa dominar acima e abaixo das regras do sistema lingüístico e da denotação das palavras para que possa produzir e interpretar enunciados; a) o prestígio social; b) a localização no tempo/espaço; c) a formalidade; d) o meio (canal) de comunicação; e) o objeto (assunto) do discurso; f) o registro adequado ao objeto, (p. 574 a 585).

Van Dijk (1998) define o contexto como “o conjunto estruturado de todas as propriedades de situação social que são possivehnente relevantes para a produção, as estruturas, interpretação e fiinções do texto e da fala”. O autor considera como dimensões do contexto o domínio (por exemplo, a lei, a política, a educação), o gênero (conversação, bate- papo, encontro, lição etc.), a intenção (de informar, convencer etc.), o propósito (aprovar uma lei ou ensinar uma habilidade), data, lugar, circunstâncias e objetos relevantes (quadro-negro, telefone etc.), níveis de participação e papéis sociais ou profissionais etc. (p.211-227).

LYONS, J. (1987). Lingua(gem) e Lingüística. Rio de Janeiro. Editora Guanabara. “ ________. (1977). Semantics. Cambridge. CUP. (V.2).

Com as abordagens destes quatro autores já é possível ter idéia do quanto é difícil e talvez do quanto a comunidade lingüística ainda está longe de chegar a alguma compreensão consensual a respeito do que o contexto pode, deve ou pretende abranger^"*. Mas isso não significa que a teoria lingüística se encontre num impasse. É ponto comum que o contexto se refere a alguma situação comunicativa, diz respeito ao que os falantes assumem além do conhecimento do sistema lingüístico e ao que é necessário para a continuidade do discurso.

As três primeiras versões parecem privilegiar uma noção estática de contexto, ou seja, consideram-no previamente dado e assumido na interlocução. Essa compreensão, entretanto, não parece suficiente para os objetivos do presente estudo. Não aponta com maior ênfase (ou pelo menos não registra) a possibilidade de que o contexto pode alterar-se enquanto o discurso acontece ou, então, de que o próprio discurso interfira na mudança ou criação do contexto. Por isso a necessidade de buscar apoio em alguma compreensão mais dinâmica, como a apontada por Van Dijk, por exemplo.

Moura (1999) diz: “A pragmática envolve a atribuição de certas crenças ao interlocutor, que delimitam o contexto da interpretação. Os contextos que não dependem dessa atribuição de crenças não são pragmáticos, mas definidos no componente semântico, em função da dinâmica do discurso”, (p.76). O autor admite dois tipos de contexto, ou pelo menos um contexto que, simultaneamente, se constrói a partir de proposições provenientes do componente semântico e pragmático: “Um contexto abrange assim, como vimos, não apenas proposições introduzidas pelo conteúdo semântico das sentenças, mas também proposições introduzidas por inferência pragmática.” (p.91). Para o autor, é fiindamental a noção de mudança de contexto motivada pela enunciação de uma nova sentença já que esta pode tomar incompatíveis os contextos até então aceitos, (p.83). Também ele restringe a noção de contexto que interessa a sua teoria: “estou considerando o contexto aqui como eqüivalendo às informações compartilhadas (analisadas como um conjunto de proposições) que permitem a interpretação de uma sentença”, (p.83).

Rouchota (1994) também considera o contexto como conjunto de crenças. Mas faz uma ressalva: “o que é cmcial para o modo de interpretar as descrições indefinidas em diferentes contextos não é o que o falante acredita, mas quais das suas crenças ele pretende comunicar”, (p.455). Dado que o autor se apóia na teoria da relevância (Sperber e Wilson, 1995), para a qual a noção de intenção comunicativa é fundamental, compreende-se este seu posicionamento. Rouchota também pode ser enquadrado entre os autores que encaminham

compreensão mais dinâmica do contexto. Assim como Moura (1999) atribui a mudança de contexto à nova sentença enunciada, aquele autor o faz em relação às descrições (in)definidas. São elas que criam os diferentes contextos a partir dos quais o enunciado deve ser interpretado: “é fácil saber por que modificar a descrição indefinida usada num enunciado afeta seu significado. Diferentes descrições dão acesso a diferentes conceitos. Diferentes conceitos têm diferentes entradas enciclopédicas e assim contribuem para a criação de um contexto num modo diferente”, (p.464).

Em termos gerais, isso quer dizer que o sentido da descrição contribui para o significado do enunciado: assim acontece porque o conteúdo descritivo (aquele expresso nas declarações e que tem a ver com as condições de verdade) da descrição faz “disparar” um conjunto de possibilidades interpretativas que o ouvinte recupera da sua memória e, dentre as quais, precisa considerar aquela que deve merecer relevância.

Sugerimos até aqui que a mudança de contexto por processos inferenciais em geral, e para a compreensão em particular, é parcialmente determinada num dado momento pelos conteúdos do mecanismo dedutivo, aqueles da memória geral de curto prazo, aqueles da memória enciclopédica e da informação que pode ser imediatamente inferida do contexto físico. Esses fatores determinam, não um contexto simples, mas um conjunto de contextos possíveis. O que determina a seleção de um contexto particular dentro desse conjunto de possibilidades? Nossa resposta é que a seleção de um contexto particular é determinada pela procura da relevância. (Sperber e Wüson, 1995, p. 141).

Na perspectiva dos autores, não é o contexto que é dado, ou melhor, não é o contexto que é o ponto de partida para a compreensão. Ao contrário, o interlocutor parte do princípio de que a asserção a ser processada é relevante e aciona o contexto compatível com tal princípio. É uma inversão de prioridade. Considerando a presunção da relevância do enunciado a ser processado, o contexto é acionado a partir de três fontes: a memória enciclopédica, a memória de curto prazo e o ambiente fisico. Nesse sentido, sua definição de contexto pode ser compreendida como um conjunto desses três fatores, com amplo espaço para os aspectos cognitivos envolvidos. Para fins de formalização dos efeitos contextuais, os autores presumem (ainda não há evidência empírica de que seja assim) que os conhecimentos estejam armazenados na memória sob a forma de proposições. Assumem uma visão que enfatiza aspectos cognitivos do contexto:

um contexto é um constructo psicológico, um subconjunto das suposições do ouvinte sobre o mundo. São estas suposições, naturalmente, ao invés do real estado do mundo, que afetam a interpretação de um enunciado. Um contexto, neste sentido, não é limitado à informação sobre o ambiente físico imediato ou aos enunciados imediatamente anteriores; expectativas sobre o futuro, hipóteses científicas ou crenças religiosas, lembranças de anedotas, suposições culturais gerais, crenças a respeito do estado mental do falante, podem todos desempenhar algum papel na interpretação. (Sperber e Wilson,

1995, p.l5).

Se tomados em bloco, os três últimos autores, tal como Van Dijk, orientam-se por uma compreensão mais dinâmica do contexto. Partem da possibilidade de que o contexto não seja fixo; modifica-se à medida que o discurso avança. E essa compreensão é mais pertinente para análise do papel das descrições definidas, por se tratar de expressões que podem ser compostas através de um léxico diferente para indicar um mesmo referente. Essa mudança vai gerar novos contextos, dentro dos quais o enunciado de que as descrições fazem parte deve ser interpretado. Além disso, esses autores, embora sob aspectos diferentes, situam a relação entre o conteúdo descritivo e o contextual na interface semântico/pragmática. Podem, assim, dar suporte a um estudo que pretende abordar as descrições definidas nos seus múltiplos aspectos - referir, informar e argumentar - sem restringir um ou outro a uma única disciplina.