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2. Fundamentação teórica

2.1.1. Relação linguagem/realidade

Para falar sobre as coisas no mundo, o homem utiliza a linguagem, isto é, utiliza palavras ou combinações de palavras para se referir aos objetos. É a relação de referência; uma palavra ou expressão designando um objeto da realidade ou de um mundo possível - conceito que se deve a Leibniz. Nas línguas naturais, entretanto, essa relação não é simples; nem sempre existe uma palavra para cada objeto; a mesma palavra pode referir-se a diferentes objetos ou ainda, palavras diferentes podem fazer referência ao mesmo objeto. Essa questão

® Utiliza-se objeto como termo técnico que encobre qualquer imi dos referentes, independente da sua natureza, Não se entra no mérito filosófico do conceito.

tem ocupado os lingüistas e tem sido causa de controvérsias: cada autor explica esta relação de modo diferente. Camap (1956) analisa a questão num capítulo inteiro de seu livro como \he method o f ncme-relation. (p.96).

Além disso, implicada na relação de referência, apresenta-se a questão filosófica sobre a natureza da realidade. Grosso modo, para os realistas ela existe independentemente do pensamento humano; para os idealistas, é a projeção das representações humanas. Jackendofif (1995) fala em mundo real e mundo projetado: “a informação que a linguagem transmite, o sentido das expressões lingüísticas, consiste de expressões da estmtura conceptual. Sobre o que a informação é - a referência das expressões lingüísticas - não é o mundo real, como na maioria das teorias semânticas, mas o mundo projetado” (p.36). Ao analisar as limitações teóricas dos partidários da cognição objetiva, aos quais contrapõe sua proposta de cognição experiencial, Lakoff, (1988) diz que, mesmo assim, as duas teorias apresentam alguns pontos em comum. Um deles diz respeito à “aceitação de um mundo real, ao mesmo tempo um mundo exterior aos seres humanos bem como da realidade experiencial humana”, (p. 123).

Não se nega a existência da realidade, dos objetos que nela existem; apenas a relação das expressões da linguagem com esses objetos não é direta. Sobre o que a informação é - a referência das expressões lingüísticas - não é o mundo real, mas o mundo tal como constmído pelo usuário da linguagem:

Para os semanticistas que adotam a abordagem representacional, nossa habilidade para falar a respeito do mundo depende dos nossos modelos mentais dele.(...) Teorias do significado podem ser consideradas representacionais quando sua ênfase está no modo como as nossas asserções sobre a realidade são influenciadas pelas estmturas conceptuais convencionalizadas em nossa linguagem. (Saeed, 1997, p.24-25).

Não caberia aqui estender-se demasiadamente sobre essa questão reconhecidamente controversa e, muito menos, tentar resolvê-la (os filósofos ocupam-se disso). Parece suficiente admitir que, entre outras, a diferença entre a perspectiva representacional e as abordagens formais é que estas têm como um de seus pressupostos uma linguagem composta por um conjunto de símbolos e fórmulas abstratos que passam a receber significado na sua relação com os objetos no mundo - os referentes. O significado passa a ser uma fiinção que relaciona um símbolo a um objeto. Aquelas, além de não postularem esse tipo de linguagem, admitem que as expressões lingüísticas se ligam às representações que os usuários da linguagem constmíram (ou vêm constmindo) sobre a realidade. Mas não parecem negar a existência

objetiva da realidade. Se assim não fosse, como ou a partir de que se construiriam as representações?

Suponha-se que determinado pesquisador das águas marinhas descobriu um animal até então desconhecido. O animal estava lá - já existia - antes do contato do pesquisador e antes que ele lhe atribuísse determinado nome. Se o nome foi dado conforme a representação do pesquisador sobre animal semelhante, não invalida a questão de que, objetivamente, aquele animal já existia a priori. Pode-se dizer que a representação do “novo” animal é posterior a sua descoberta. Provavelmente ele se incorporará em algum modelo mental do pesquisador que tenha relação (analógica) com o animal descoberto.

A questão fundamental continua sendo a relação das expressões lingüísticas com os objetos - referência - e não a perspectiva ontológica da realidade. Portanto, um estudo, mesmo de base representacional, continua sendo referencialista. Muda a relação das expressões lingüísticas com os objetos no mundo: ela passa a ser intermediada pelas representações e a referência constitui-se na relação entre as expressões lingüísticas e a representação que os usuários da linguagem têm sobre estes objetos. O próprio Frege (1978) já apontava nessa direção quando disse que não trataria das representações: “A referência de um nome próprio é o próprio objeto que por seu intermédio designamos; a representação que dele temos é inteiramente subjetiva; entre uma e outra está o sentido que, na verdade, não é tão subjetivo quanto a representação, mas que também não é o próprio objeto.” (p.65). Como seu objetivo era uma linguagem isenta de ambigüidades, em que a cada nome correspondesse apenas um único e sempre o mesmo objeto, admite que “devido á associação incerta das representações com as palavras, pode haver, para alguém, uma diferença que para outro não se dê.” (p.66)

Mesmo um estudo de base representacional pode tomar como ponto de partida a filosofia analítica ou o positivismo lógico. De acordo com Marcondes (1998), a questão fundamental destas correntes é “como um juízo, algo que afirmo ou nego sobre a realidade, pode ter significado e como podemos estabelecer critérios de verdade e falsidade desses juízos” (p.261). Não parece que se possa fiagir muito da relação (verdadeira ou falsa) da linguagem com determinado estado de coisas e, mais especificamente, de uma expressão referencial com algum objeto. Admitem-se, portanto, os referentes como objetos da realidade, existentes por si mesmos, embora cada ser humano os represente mentalmente de acordo com sua experiência e a eles se refira através de diferentes expressões da linguagem. A relação de sentido “estabelece um novo nível entre as palavras e o mundo; um nível de representação

mental. Assim, diz-se que um nome recebe sua habilidade de denotar porque é associado com algo na mente do falante ou ouvinte.” (Saeed, 1997, p.32).

À medida que as pessoas fazem diferentes representações de um mesmo objeto, utilizam expressões diferentes para indicá-lo. Isso permite explicar uma certa faixa de indeterminação na linguagem e, ao mesmo tempo, entender por que, apesar disso, as pessoas conseguem comunicar-se. Frege apontava essa relação entre o sentido de uma expressão e o seu referente: “A conexão regular entre o sinal, seu sentido e sua referência, é de tal modo que ao sinal corresponde um sentido determinado e ao sentido, por sua vez, corresponde uma referência determinada, enquanto que a uma referência (a um objeto) não deve pertencer apenas um único sinal.” (1978, p.63).

Nessa perspectiva, o exercício da linguagem não se resume apenas a etiquetar objetos, estabelecendo uma relação de um para um entre o nome próprio^ e o objeto, como pretendiam as linguagens formais. É uma relação mais complexa. Uma passagem de Johnson-Laird (1988) pode ser esclarecedora nesse sentido: “Os lógicos, de várias formas, somente relacionaram a linguagem a modelos; psicólogos somente a relacionaram consigo mesma. A verdadeira tarefa, entretanto, é mostrar como a linguagem se relaciona com o mundo através da ação da mente”, (p. 115). O autor, portanto, pressupõe a realidade (o mundo), mas não estabelece uma relação direta entre esta e a linguagem. Dadas as diferentes representações e a própria dinâmica delas, diz que a compreensão é um processo de construção de modelos mentais: “um modelo pode servir como uma amostra representativa, ou exemplo prototípico, dos potencialmente infinitos conjuntos de modelos que satisfazem um discurso: o modelo pode ser revisto de forma a satisfazer uma informação posterior que seja consistente”. (Johnson-Laird, 1988, p. 115).

Admitindo esta relação entre as expressões lingüísticas e a realidade mantém-se, ainda, uma postura teoricamente referencialista: a realidade existe, embora os objetos e as entidades referidos através da linguagem sejam percebidos como modelos, como “análogos estruturais do mundo” (Johnson-Laird, 1983). Mesmo que dois seres humanos não percebam a realidade exatamente da mesma forma, dado que possuem experiências diferentes, não se quer dizer que ela seja apenas construção lingüística. Ou então, que “o referente de um discurso não é a realidade, mas aquilo que o discurso seleciona ou institui como realidade”. (Koch e Fávero,

1984, p. 15).

’ De acordo com Frege (1978); “lugares, instantes, intervalos de tempo são, sob o poato de vista lógico, considerados objetos; portanto, a designação lingüística de um lugar determinado, de um instante determinado ou de um intervalo de tempo determinado deve ser considerada um nome próprio’', (p.77)

Para Johnson-Laird, um modelo mental representa a referência de uma sentença. Parece possível, contudo, abordar as expressões referenciais na mesma perspectiva teórica. Da mesma forma que o valor-verdade de uma asserção pode ser avaliado pela comparação entre um “estado de coisas” e sua representação, a compreensão de uma expressão referencial se realiza pela comparação entre o objeto e sua representação. Uma asserção do tipo “Empurrei a mesa para o canto da sala ”, parece exigir que se tenha, antes, uma representação (modelo) de mesa ou de canto da sala. Não se trata das condições necessárias e suficientes, mas conforme a definição mais acima, como um exemplo prototípico de diversos modelos que satisfaçam o referente de mesa. (três, quatro ou mais pernas, quadrada, redonda, oval, alta baixa, pintada ou não etc.). Pela experiência, o usuário da linguagem não armazena uma imagem para cada mesa específica; constrói uma representação de mesa (modelo mental) que pode ser referida através da mesma expressão referencial - “a mesa”. Se, por exemplo, tomar contato com algo que não conhecia - uma “mesa com tampa de vidro”, por exemplo - poderá revisar o modelo, incorporando a informação nova ao modelo já existente: a informação nova (com tampa de \ãdro) interage com a informação já existente no modelo mental de mesa, acrescentando-lhe mais este elemento.

Além disso, a teoria dos modelos mentais também permite dar conta de “estados de coisas” que, muitas vezes são descritos por conceitos: “o modelo mental de um conceito deve ser capaz de representar tanto o essencial como a amplitude desse conceito. (...) É uma representação interna de informações que corresponde, analogamente, ao estado de coisas que estiver sendo representada, seja qual for ele”. (Moreira, 1997, p.03). Outra vantagem que os modelos mentais apresentam é a possibilidade de representar tanto objetos fisicos quanto abstratos. Johnson-Laird (1988) propõe uma tipologia informal e tentativa para eles: modelos físicos representariam o mundo fisico; modelos conceituais, coisas mais abstratas.

A reportagem sobre economia apresenta expressões referenciais do tipo o sistema financeiro nacional, cujo referente (abstrato) não se encontra com facilidade no mundo fisico: existem os bancos, as financeiras, as administradoras de cartões e outras instituições oficiais. Mas não há como estabelecer uma relação direta entre a descrição definida e um referente específico, discreto. O leitor da reportagem, entretanto, através da sua experiência (transações, compra e venda, empréstimos, leituras, conversas...) formará ou terá formado uma representação - um modelo mental - de “sistema financeiro nacional”. Esta representação - que não tem exigências de exatidão ou de contornos precisos - permite-lhe estabelecer a relação entre a expressão referencial (linguagem) com uma realidade representada (modelo

mental). Sabe, por isso, a que objeto está se atribuindo o predicado está em crise num enunciado como; 4) O sistema financeiro nacional está em crise. Pela característica de constante revisão dos modelos mentais, poderá integrar no mesmo modelo a referência da expressão o sistema econômico do país, por exemplo.

Nesse ponto, a teoria dos modelos mentais pode ser relacionada à teoria da relevância (Sperber e Wilson, 1995); a informação nova interage com a informação já existente na memória do interlocutor e produz efeitos contextuais: a) reforço ou apagamento de suposições já existentes corresponderia à revisão de modelos mentais; b) geração de novas suposições, á criação de novo modelo. Embora a hipótese da teoria da relevância seja a de que o conhecimento seja processado a partir de proposições e a da teoria dos modelos, a partir de representações analógicas, o princípio de processamento das informações não parece muito diferente numa e noutra. Por isso, não se toma inconsistente ou contraditório um estudo da dimensão informativa das expressões referenciais pautado em ambas as teorias.