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2. Fundamentação teórica

2.5. Retórica

Um estudo que pretende discutir a dimensão argumentativa das descrições definidas não poderia passar ao largo da retórica. No sentido mais divulgado ou aceito entre o público, retórica tende a significar mero jogo de palavras com o fim de ilustrar, de demonstrar pompa ou rebuscamento de linguagem, que não leva à ação alguma. O que sobra da antiga retórica^ ^ confina-se aos recursos estilísticos e figuras de linguagem nos livros de gramática e literatura. Ao invés de escrever (ou falar) bem, passa a significar escrever (ou falar) bonito. E não é essa compreensão que interessa ao estudo em causa. Toma-se como base teórica a nova retórica - Perehnan (1999).

O objeto da retórica antiga se concentrava na arte de falar em público de modo a persuadi-lo sobre alguma idéia, geralmente defendida por um orador eloqüente. Buscava-se a

“A retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão”. (Aristóteles, Arte retórica e arte poética, p.33)

adesão dos espíritos à tese proposta. Perelman (1999) mantém essa preocupação da retórica antiga com o auditório, mas centraliza sua nova retórica no texto escrito: “Enquanto o discurso é concebido em fimção direta do auditório, a ausência material de leitores pode levar o escritor a crer que está sozinho no mundo, conquanto, na verdade, seu texto seja sempre condicionado, consciente ou inconscientemente, por aqueles a quem pretende dirigir-se”, (p.07). A reportagem impressa situa-se nessa relação entre um orador (repórter), discurso (o texto) e auditório (público leitor). Mesmo que não se pretenda, acima de tudo, argumentativa, na medida em que descreve uma realidade a partir de determinada perspectiva, supõe que o leitor admitirá a veracidade das informações, preocupa-se em “buscar a adesão dos espíritos”. Não se trata de texto opinativo em que ao leitor apenas se daria a oportunidade de concordar ou não. Trata-se antes de apresentar a versão (versões) de um determinado fato. De acordo com Lage (1998), “a relação entre tópico e documentação é a mesma que vai da versão ao fato; na vida real, é muitas vezes possível selecionar fatos exemplares e estatísticas capazes de sustentar versões contraditórias” (p. 101).

Se, por exemplo, a proposta de uma reportagem é apresentar visão positiva da globalização e defender que a fusão das grandes empresas é uma de suas características, colocará como tópico a idéia de que a economia mundial caminha a passos largos para a concentração do capital e só as maiores empresas têm condições de sobreviver. Como documentação, apresentará fatos como a fusão da Brahma e Antárctica, da Time Warner com a AOL, da GM com a Chrysler, por exemplo. Ou ainda de uma fábrica de queijo em Minas que se uniu a uma grande empresa internacional e elevou seus lucros. Poderá resumir isso através de uma descrição definida do tipo a inexorável era das grandes fusões. Ficaria difícil negar o potencial argumentativo desse tipo de expressão referencial ou, pelo menos, do potencial argumentativo com que contribui para o enunciado de que fazem parte. Se a reportagem objetivasse outro ângulo de abordagem, poderia escolher como tópico os problemas que essa concentração de renda pode gerar; desemprego em grande escala, padronização de produtos, ingerência política, exclusão dos países ainda não industrializados ou subdesenvolvidos, entre outros.

Pelo menos em tese, a reportagem deveria incluir os dois tópicos num mesmo texto para que o leitor tirasse suas próprias conclusões, o que nem sempre acontece. Todavia, se escolhe um, dois ou mais ângulos de abordagem, não debca de caracterizar sua dimensão argumentativa; os tópicos e as documentações selecionados visam a adesão do leitor à versão apresentada. São convincentes, cada qual, ainda que contraditórios.

Para que o orador se faça ouvir, ou para que o repórter atinja seus leitores - afinal, a revista precisa ser lida - deve encontrar meios de tomar seu discurso interessante. Lage (1998) diz que as pessoas se interessam por informações sobre fatos a partir da combinação de um elenco geral de categorias: proximidade, atualidade/oportunidade, empatia, ineditismo, intensidade (p. 176 a 203). Sobre esta última, diz que “em termos gerais, episódios que envolvem grandezas maiores têm maior capacidade de despertar interesse” (p. 197). Isso explica por que transações como a venda do Banespa ao Santander, do Banestado ao Itaú, ou a criação da Ambev mereceram destaque entre as reportagens sobre a economia brasileira no período da presente pesquisa. “Para que uma argumentação se desenvolva, é preciso, de fato, que aquelas a quem ela se destina lhe prestem alguma atenção”. (Perelman, 1999, p.20).

Se os retóricos antigos dividiam o discurso em três gêneros - deliberativo, judiciário e epidíctico - é porque reconheciam a importância que atribuíam a seu auditório, mesmo que este não se pudesse pronunciar. Hoje em dia, os avanços da comunicação permitem certo grau de interação entre o leitor e a revista; mas, ainda assim, o controle sobre o que vai (e como vai) ser publicado não é acessado pelo interlocutor. Mesmo na seção de cartas, a revista se reserva o direito de “adaptá-las” às possibilidades de publicação. O que resta ao leitor é não ler o texto ou, então, não acreditar nele. Mesmo assim, não se pode negar à reportagem o princípio, objetivo ou intenção de constituir ou promover uma discussão^^ em que diferentes perspectivas de um mesmo fato sejam analisadas e colocadas à disposição do leitor para que ele tenha elementos e informações em que pautar suas crenças, convicções e até mesmo, decisões. Algumas reportagens são, nesse aspecto, unilaterais e admitem contestação; outras, pretendem incluir opiniões, afirmando e contrapondo atitudes ou posturas. Em alguns casos, a reportagem parece aproveitar-se das atitudes do senso comum que “admite a existência de verdades indiscutidas e indiscutíveis, admite que certas regras estejam ‘fora de discussão’ e que certas sugestões não merecem discussão” (Perelman, 1999, p.63). É o que parece acontecer, por exemplo, na década de 1990, com o discurso da globalização.

Por que um estudo do uso das descrições definidas na reportagem atribui tamanha importância à retórica? Porque, ao pretender abordar estas expressões referenciais com maior abrangência, convém dar conta não só do aspecto definido, mas também das noções expressas pelo substantivo e das qualificações expressas pelo adjetivo. E a nova retórica de Perelman (1999) oferece subsídios para tanto. Embora se dedique à abordagem de argumentos

De acordo com Perelman (1999, p.42), a discussão é apresentada como mna busca sincera da verdade, enquanto, no debate, cada um se preocupa sobretudo com o triunfo de sua própria tese.

completos - esquemas argumentativos ou silogismos - também possibilita a análise do papel dos argumentos - agora como unidades sintáticas que acompanham os predicados. Nesta última compreensão situam-se as expressões referenciais - argumentos que acompanham o predicado no papel de sujeito ou objeto. Na escolha dos dados que vão constituir as premissas da argumentação - esquema argumentativo para persuadir um auditório - as descrições definidas interferem com a referência e com a informação que seu sentido veicula ao indicar a referência. Esse duplo sentido de argumento interage.

Fazendo referência aos efeitos argumentativos do artigo definido, Perelman (1999) dá como exemplo os experimentos em química: “experimenta-se em corpos particulares e tiram- se daí afirmações concernentes a ‘o cloro’, ‘o fósforo’; o artigo definido permite tratar as amostras como representantes de uma espécie” (p. 184). Entre os pontos de partida da argumentação - as premissas minimamente aceitas como objeto de acordo entre o orador e o auditório - aparecem os lugares de qualidade: “no limite, o lugar da qualidade redunda na valorização do único que, assim como o normal, é um dos pivôs da argumentação. (..) O único é original, distingue-se, por isso é digno de nota e agrada mesmo á multidão” (p. 101-102). Se considerado o pressuposto de unicidade veiculado nas descrições definidas (conforme Russel), mesmo que se trate da unidade, parece que o artigo definido pode ser inserido nessa compreensão de valorização do único.

Se um repórter escrever; 21) “O ministro da Fazenda é o responsável pelo quadro de estabilidade que o pais atravessa”, singulariza o referente - Pedro Malan (em 2000/2001, pelo menos). Mas também valoriza “o único, o raro, o excepcional” na medida em que predica a esse único sujeito o sucesso do quadro econômico. Não se faz referência aos outros ministros que, por exemplo, contribuem com o controle de gastos em suas áreas, ou a outros setores do govemo e à própria população que, senão à custa do emprego, do salário ou dos impostos que paga, tem sua participação no sucesso do plano.

Talvez mais que o único, o pressuposto de existência (por mais controverso que seja) acarreta papel argumentativo na medida em que se situa entre os lugares do existente: “afirmam a superioridade do que existe, do que é atual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o impossível”. (Perelman, 1999, p. 106). No exemplo anterior, o artigo definido em “o quadro de estabilidade que o país atravessa” dá a entender que esse quadro existe, é real, é atual. A argumentação se constrói a partir do pressuposto indicado pelo artigo e, mesmo que assim não queira, o enunciado encaminha para esse tipo de leitura: tenta persuadir, assim, o leitor sobre o estatuto de “fato” que a descrição definida procura impor.

Caso o leitor pudesse contrargumentar, apresentaria dados contrários e a expressão perderia tal estatuto:

Só estamos em presença de um fato, do ponto de vista argumentativo, se podemos postular a seu respeito um acordo universal, não controverso. Mas, por conseguinte, a nenhum enunciado é assegurada a fruição definitiva desse estatuto, pois o acordo sempre é suscetível de ser questionado e uma das partes poderá recusar a qualidade de fato ao que afirma seu adversário. (Perelman, 1999, p.76)

Para um estudo que pretende abordar não somente o aspecto definido das descrições, a configuração dessas expressões desempenha algum papel. Assim como há descrições complexas em que o substantivo é acompanhado por um ou mais modificadores, também há aquelas que se formam sem modificador. É o caso de o govemo ou a revolução, por exemplo. Notem-se as implicações do afastamento entre os conceitos de “govemo” apUcado usuabnente ao Executivo, quando os três segmentos - Executivo, Legislativo e Judiciário - em teoria, formam o poder do Estado. Note-se também o sentido argumentativo das nomeações “o golpe”, “a revolução” e “o movimento militar” (de 1964). Deslocando a atenção agora não mais sobre o artigo, mas sobre o substantivo, entra-se no que a nova retórica compreende como escolha dos dados e sua adaptação com vistas à argumentação. E, na escolha e apresentação dos dados, não é possível

qualificar sem escolher, ao mesmo tempo, a classificação à qual se concederá a preeminência. Tal “escolha” raramente é desprovida de intenção argumentativa. Com efeito, as classes são caracterizadas não só por características comuns aos seus membros, mas ainda, e às vezes sobretudo, pela atitude adotada a seu respeito, pela maneira de julgá-las e tratá-las”. (Perelman, 1999, p. 144).

No enunciado: 22) A briga por talentos não é nova, mas ganhou dimensão com a explosão do setor de alta tecnologia e a internet., {Época, A revolução silenciosa), caracterizar (ou classificar) a ação de empresas na busca por melhores fimcionários como “briga” significa inserir no enunciado uma compreensão de “vale tudo”: passar rasteira, agredir, agarrar, dermbar, vencer de qualquer jeito... A expressão informa sobre o que está se passando no mundo da tecnologia, mas, ao mesmo tempo, encaminha o raciocínio do leitor: a noção de “briga” ativa um contexto de experiências que reforçam e especificam o clima de disputa. Além disso, pressupõe-se a existência da briga: ela é apresentada como um fato - o

pressuposto de existência indicado pelo artigo definido. Expressões como “a disputa” ou “a busca” atenuariam essa força argumentativa.

Raciocínio semelhante pode ser desenvolvido em relação à descrição definida a explosão. Além do pressuposto de existência indicado pelo artigo definido - a explosão, de fato, existe - a força argumentativa aponta para movimento rápido, brusco e violento. É possível que, comparado a outros países, o surgimento de empresas de alta tecnologia não seja tão “explosivo” assim. Substituindo a explosão por a expansão, toma-se possível observar a força argumentativa acentuada da primeira.

Quando a descrição definida se compõe com o auxílio de modificadores (geralmente adjetivos ou orações adjetivas), a informação e a argumentação parecem acentuar-se sobre as qualificações que valorizam a apresentação de certos aspectos dos dados; O epíteto “resulta da seleção visível de uma qualidade que se enfatiza e que deve completar nosso conhecimento do objeto”. (Perelman, 1999, p. 143). Observe-se o seguinte enunciado:

23) Primeiro, porque os superexecutivos, como os artistas famosos e os craques de futebol, fazem a diferença e, em geral, justificam o salário aumentando os lucros da companhia.

(Veja, Poucos com muito).

Através dos diversos sentidos implicados na noção de superexecutivos ativam-se determinadas suposições do leitor: o que é “super” está acima do comum, acima da média e, portanto, é destacado de alguma forma na sociedade, através da fama, da sensualidade, do poder ou do dinheiro. A ativação de alguns desses links é ativada pelas descrições definidas inseridas no aposto: “os artistas fam osos” e “os craques de fu te b o r. Produzem, junto com as noções anteriores, o efeito contextual de reforçar uma crença que, provavelmente, o leitor já assumia: “quem está acima da média merece ser reconhecido e bem pago”. A informação apontada pelo modificador é, por isso, relevante. O leitor poderia confi-ontar o significado da descrição definida com e sem a presença dele: o artista / o artista famoso, o craque / o craque de futebol No Brasil, por exemplo, o vôlei não tem a mesma importância que o fiitebol. Por isso, a restrição imposta pelo modificador toma-se argumentativamente significativa. Se o enunciado estivesse inserido na cultura americana, por exemplo, o autor provavelmente teria escolhido algo como “o craque do basquete” ou “o craque do beisebol”.

As intenções informativa e comunicativa acrescenta-se a intenção argumentativa: manifestação ostensiva de que a informação deve ser processada em determinado contexto, restringindo-se assim o leque de possibilidades interpretativas. Observa-se que a escolha do

modificador, além de denunciar o aspecto que o autor enfatiza, contribui para o efeito da presença; “O que está presente na consciência adquire uma importância que a prática e a teoria da argumentação devem levar em conta. (Perelman, 1999, p. 132).

Quando o modificador está intercalado entre o artigo definido e o substantivo, sua presença destaca o potencial argumentativo - talvez por ser incomum essa estrutura em português, embora necessária no modelo americano originário {Time, Newsweek etc.). Observe-se o enunciado seguinte;

2A) Mas ao vender seu banco, o habitualmente discreto Bozano acendeu a polêmica sobre a crescente desnacionalização do sistema bancário brasileiro. {Epoca, Júlio comprou, viu e ...).

Ao falar das técnicas argumentativas, Perelman (1999) diz que “a construção da pessoa humana, que se vincula aos atos, é ligada a uma distinção entre o que se considera importante, natural, próprio do ser de quem se fala, e o que se considera transitório, manifestação exterior do sujeito” (p.334). Na descrição definida - o habitualmente discreto Bozano- observa-se a preocupação em separar o que é transitório do que não é. Dando ênfase à caracteristica “discreta” de Bozano acentua-se, através da antítese, suposições como “pessoas discretas, normalmente, não provocam grandes polêmicas”. O efeito argumentativo resultante pode ser, aproximadamente, a suposição; “se quem é discreto provoca polêmicas, imagine-se quem não o é”. Acrescente-se que a antítese é uma figura comum na retórica jornalística. Essa relação paradoxal é a base do fa it divers - conforme Barthes (1964)

A escolha do qualificativo revela o posicionamento do autor a respeito do referente. No enunciado em causa, “Bozano” é apresentado como “habitualmente discreto”. Mas o que é discreto para o repórter pode não sê-lo para o leitor. A inserção de um modificador qualificativo parece revelar a atitude do autor em relação ao referente; constitui-se, muito menos, em recurso restritivo para facilitar a sua identificação. A presença do modificador seria, portanto, duplamente informativa; além de informar sobre o referente, informa sobre quem o qualifica - pressupõe uma identificação ética entre o leitor e o repórter.