• Nenhum resultado encontrado

2. Fundamentação teórica

2.2. Semântica e pragmática

Um estudo dedicado às descrições definidas requer discutir o estatuto destas expressões no âmbito da semântica e da pragmática. Não pretende resolver a questão dos limites entre uma disciplina e outra.^° Segundo Leech (1983), a primeira responderia à pergunta “O que x significa?” e a última, “O que você quis dizer com x?”. Assim, o significado em pragmática estaria vinculado ao falante ou usuário da linguagem, enquanto em semântica seria uma propriedade das expressões lingüísticas, abstraída de qualquer referência aos interlocutores ou à situação. Mas o autor reconhece a dificuldade em realizar tal recorte. Prefere antes, compreender complementarmente as duas disciplinas; “Uma avaliação do

Se XY tem uma força argumentativa superior àquela de X, e de mesma orientação, Y é um modificador realizante”. (Ducrot, 1995, p. 147). Se a orientação for contrária, seria derrealizante.

significado na linguagem deve (a) ser fiel aos fatos tal qual os observamos, e (b) ser tão simples e generalizável quanto possível. (...) Se abordarmos o significado a partir de um ponto de vista que combine semântica e pragmática, o resultado pode ser uma explanação satisfatória em termos desses dois critérios”. (Leech, 1983, p.07).

Levinson (1983), no capítulo introdutório do seu livro, apresenta diversos conceitos e definições dadas à pragmática ao longo do tempo e aborda suas limitações e vantagens. Diz que “as mais promissoras são as definições que equacionam pragmática com ‘significado menos semântica’, ou com uma teoria de compreensão da linguagem que leva o contexto em consideração, a fim de complementar a contribuição que a semântica traz ao significado”, (p. 32). A questão é que a pragmática parece vincular-se à amplitude ou restrição que uma teoria semântica se coloca. Como disciplina mais recente que tenta encontrar seu espaço, parece confinar-se a essa dependência. Assim, é pertinente a preocupação de Leech (1983) com a necessidade de encontrar uma teoria que permita colocar a pragmática, ao lado de fonologia, sintaxe e semântica, numa teoria geral da gramática.

Originalmente, a referência (e, por extensão, as descrições definidas) teve seu estudo restrito à semântica (formal), principalmente com a filosofia analítica e o positivismo lógico. Embora necessária, essa perspectiva semântica não parecia suficiente. Donnellan (1971), admitindo que as descrições definidas são semanticamente ambíguas, aponta como responsável por essa ambigüidade, o uso referencial ou atributivo que delas se faz. É um indicativo de preocupação de ordem pragmática, principalmente se esta for compreendida como estudo da linguagem em relação aos usuários ou, pelo menos, em relação ao uso.

Não se trata de estabelecer que o significado de uma expressão seja função do seu uso; trata-se, antes, de levar em consideração o uso das expressões quando se pretende dar conta do seu significado. Lyons (1987) postula a possibilidade de um significado inerente: “determinado pelo seu uso característico” (p. 160). Ou ainda:

Até certo ponto, a referência potencial de expressões é determinada, não apenas pelo seu significado inerente e por fatores contextuais tais como os pressupostos compartilhados pelo falante e seu interlocutor, mas também por regras gramaticais, por um lado, e convenções ou tendências estilísticas, por outro, funcionando dentro de sentenças e por extensões mais longas de texto ou discurso, (p. 161).

O autor não descarta o aspecto gramatical no estudo do significado; ao contrário, aponta para uma abordagem que inclui aspectos de estilo. Nessa ordem de raciocínio, pode-se

começar a entender as descrições definidas; seu uso característico é a indicação de um referente no discurso, mas isso não impede que elas também veiculem informação e dêem pistas sobre as escolhas (lingüísticas) empreendidas pelo autor a fim de controlar, na medida do possível, a interpretação do seu enunciado; dimensão argumentativa.

Rouchota (1994) dá apoio a essa compreensão; “o conteúdo descritivo de uma descrição definida referencialmente interpretada é raramente um simples meio de assegurar a referência; ela desempenha um papel importante na interpretação do enunciado que a contém por estruturar parte do contexto em que se tenciona interpretá-lo”, (p.463). Entende-se por conteúdo descritivo de uma expressão a sua relação de referência com um estado de coisas, ou seja, com o referente que ela identifica. Vista sob a perspectiva da produção do enunciado, o autor aponta para o alcance da descrição definida além do seu significado lingüístico (descritivo); aquele que se atribui à expressão referencial, teoricamente abstraído de sua utilização numa situação comunicativa concreta.

Transparece, entre os diversos autores, a dificuldade de abordar as descrições definidas apenas em termos previstos pela semântica formal (Cann, 1993) ou da Gramática de Montague (1964). O próprio Frege (1978) já percebera essa dificuldade na relação entre as expressões lingüísticas e ao que elas referem; “Certamente deveria corresponder, a cada expressão, que pertença a uma totalidade perfeita de sinais, um sentido determinado, mas, fi^eqüentemente, as linguagens naturais não satisfazem a esta exigência e deve-se ficar satisfeito se a mesma palavra tiver sempre o mesmo sentido num mesmo contexto”, (p.63).

Essa dificuldade dá origem e continua perpassando o que, nos termos de Strawson (1970)^^ constitui uma “batalha homérica” entre duas teorias predominantes que disputam espaço pela explicação do significado; uma delas (semântica) gira em tomo dos conceitos de sentença e significado lingüístico e outra, (pragmática) dos conceitos de enunciado e significado do enunciador. O ponto discordante entre as duas correntes relaciona-se á possibilidade de restringir o estudo do significado a cada uma delas e, como conseqüência, admitir a existência de dois tipos de significado ou então, da possibilidade de explicar um em fimção do outro, mas prevendo a determinação ou a prioridade de uma delas. Diante disso, a questão é se um estudo que pretende abordar o uso das descrições definidas deva situar-se, necessariamente, de um lado ou outro, até por questão de coerência teórica.

Toma-se como referência a tradução dos textos de Davidson e Strawson publicada em Dascal (1982), cujos originais são, respectivamente, de 1967 e 1970.

“O sentido preciso da discussão entre Davidson e Strawson é a possibilidade teórica de uma semântica desligada de considerações de ordem pragmática”. (Dascal, 1982, p.24). Davidson favorece a possibilidade de abordar o significado nos termos da convenção-T (Tarski, 1972): fornecer o significado de uma sentença é o mesmo que indicar suas condições de verdade. Condiciona, entretanto, a verdade à relação entre uma sentença, uma pessoa e um instante; “Eu estou cansado’ é verdadeira enquanto potencialmente enunciada por p e m t se e somente se p estiver cansado em t ”. (Davidson, 1982, p. 173). Essa relativização - o esforço teórico apontando a possibilidade de dar tratamento lógico à sentença de acordo com a situação - se não é indicativo de aproximação com a pragmática, pelo menos indica ampliação da semântica.

Teóricos da intenção comunicativa - (Austin (1962), Searle (1969), Grice (1975) - questionam a possibilidade de restringir a noção de condições de verdade sem referência à função comunicativa: “O que um enunciador significa através de seu enunciado é especificado, evidentemente, através da especificação da intenção complexa com que ele produz o enunciado”. (Strawson, 1982, p. 194). Se, por um lado, Strawson critica Davidson por relacionar o significado ao conceito de verdade (por se tratar de um conceito amplo, filosoficamente controverso), não parece dar-se conta de que compreender a intenção do enunciador é igualmente complicado, principalmente por se tratar de uma noção que só pode ser observada indiretamente. Searle (1983) busca dar tratamento mais completo à intencionalidade. Compreende-a, entretanto, num sentido amplo em que a intenção é apenas uma das suas manifestações, ao lado de crenças, desejos, admirações, medos etc.: “Intencionalidade é aquela propriedade de muitos estados mentais e eventos pela qual eles são direcionados a ou são a respeito de objetos ou estados de coisas no mundo. (...) Intencionalidade é direcionamento”, (p.01-03). O fato de um enunciador dirigir-se a algum interlocutor sempre viria, portanto, carregado de alguma intenção, mesmo que essa intenção fosse apenas dizer (ou não) algo por falta de qualquer outra coisa ou necessidade.

A questão da intencionalidade ganha aspectos particulares no caso do jornalismo. É função do jornalista trafegar informações referenciais, reportadas à realidade: ele é pago para isso. Admitindo-se que existam jornalistas não corruptos e não militantes de causas transcendentes, o interesse consiste em transmitir informação, sem qualquer pretensão de resposta: nada a fazer se um tufao matou milhares de pessoas na índia - e esta é uma notícia importante. Nem mesmo a credibilidade de uma notícia importa, necessariamente, embora seja a credibilidade ponto de partida para o êxito do veículo. Assim, segundo dados do

MACA (1987, p.33), 31% da população adulta brasileira não acreditava, em 1981, que o homem tivesse ido à lua treze anos antes: nenhum jornalista sentiu-se particularmente culpado ou contrariou-se com isso. Apenas terá observado que não foi por falta de informação.

Conciliar os dois lados dessa “batalha homérica” entre os teóricos da intenção comunicativa e os teóricos da semântica formal seria objetivo pretensioso; parece, entretanto que, se o fenômeno em estudo aponta para a necessidade de ser abordado numa ótica interativa entre as duas correntes, não se pode enquadrá-lo em uma delas. Seria, mais uma vez, subordinar o dado à metodologia. Ducrot (1987), ao rever seu posicionamento sobre a anterioridade do componente Hngüístico sobre o retórico, já apontara nessa direção. O estudo do significado revela uma dupla característica: de um lado é determinado pelo sistema lingüístico e, de outro, pela situação comunicativa.

Pretende-se, por isso, argumentar a favor da abordagem das descrições definidas na concorrência simultânea de fatores semânticos e pragmáticos: o estatuto dessas expressões melhor se compreende em termos de interação entre as condições de verdade do enunciado (semântica) e a intenção comunicativa (pragmática) de quem o profere. Abordar o estudo das descrições definidas na interface entre as duas correntes, portanto, não seria questão de comodidade e nem de “embaralhamento” teórico-metodológico; muito menos a de assumir uma posição (diplomática) conciliadora que apague as diferenças; é um posicionamento que admite a possibilidade de descrever determinado fenômeno da linguagem - o uso das descrições definidas - partindo do princípio de “aplicar” simultaneamente as duas teorias ao mesmo fato para que ele seja melhor compreendido. É posicionamento controvertido sob o aspecto filosófico ou teórico, mas é ponto de partida adequado para a descrição de um fenômeno lingüístico de dupla face.

Levinson (1983), ao comentar os estatutos da pragmática e da semântica, também já apontara para essa possibilidade de abordagem híbrida do significado:

Do que até agora sabemos sobre a natureza do significado, uma abordagem híbrida ou modular parece inescapável: resta a esperança de que, com dois componentes, um semântico e outro pragmático trabalhando in tandem, cada um pode ser organizado em linhas relativamente homogêneas e sistemáticas. Tal teoria híbrida será quase certamente mais simples e mais amparada em princípios do que uma simples teoria semântica, amorfa e heterogênea. (Levinson, 1983, p. 15)

Não se trata de estabelecer uma teoria nesses termos. Acredita-se na possibilidade de dar conta do uso referencial das descrições definidas, amparando-se, simultaneamante, nas

duas disciplinas - na sua interface: onde elas se tocam e não onde mais se afastam. Além disso, pode-se vincular a dimensão informativa às condições de verdade e a argumentativa aos aspectos comunicativos. Trata-se de uma divisão apenas didática, porque, na comunicação efetiva, mesmo o uso referencial das descrições definidas se processa ao longo de um espectro em que uma das extremidades é ocupada pela relevância da informação e a outra, pela dimensão argumentativa, projetando determinado ponto de vista sobre o referente em causa.

Imagina-se a referência como um ponteiro que oscila entre a informação contida na descrição definida e a interferência que essa informação pode provocar nas representações do interlocutor. Em outras palavras, a referência seria uma linha imaginária que apresenta, numa das extremidades, a informação e, na outra, a argumentação. Ao longo dessa trajetória, as duas dimensões se movimentam e se digladiam em termos de predomínio: quando uma se sobressai, a outra se apaga na mesma proporção. Enquanto a dimensão informativa apresenta conhecimentos para relacionar as expressões referenciais a um estado de coisas, a dimensão argumentativa relaciona as expressões a versões ou sentidos atribuídos a um estado de coisas, com a finalidade de interferir nas representações do interlocutor. Compreende-se intenção num sentido mais próximo ao seu significado na linguagem comum; “uso da linguagem com finalidade de”. Dentro da margem de escolha que a língua permite, o autor têm direito de optar - no caso das descrições definidas - pela combinação mais adequada para indicar o referente, informando sobre determinado acontecimento e, ao mesmo tempo, levar o interlocutor a crer em uma versão dos acontecimentos.