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4. Panorama geral das reportagens

4.1. Estrutura macroargumentativa da reportagem

Entende-se por estrutura macroargumentativa a organização do texto considerando o título como palavra-chave, o subtítulo como tese e cada parágrafo como afirmação subsidiada por documentações (provas) que sustentam a tese proposta. Assim organizada, a reportagem aproxima-se do ensaio: não se trata de opiniões que deixam ao leitor a única opção de concordar ou não; a argumentação apóia-se em dados, argumentos de autoridade, fatos e estatísticas que dão suporte à linha argumentativa desenvolvida ao longo do texto. As provas não dependem - ou são apresentadas como se não dependessem - da opinião do autor, mas do seu conhecimento a respeito das informações apresentadas.

Quando se fala em linha argumentativa, subentende-se o ângulo de abordagem, ou seja, a perspectiva adotada em relação aos fatos informados e a sua respectiva defesa. No texto que se segue, por exemplo, a linha argumentativa sugere a concentração na indústria automobilística. Para mostrar como essa linha argumentativa se desenvolve, transcreve-se o tópico de cada parágrafo da reportagem a ser analisada. Esse encaminhamento objetiva indicar como os tópicos dos parágrafos (enumerados em ordinais) compõem-se de afirmativas que apontam para a tese anunciada no subtítulo. O desenvolvimento dos parágrafos compõe- se das documentações (provas) que sustentam a idéia indicada no tópico. Essa organização parece aproximar as reportagens da estrutura dissertativa, inibindo o seu caráter narrativo.

SÓ PARA OS MAIORES - Veja: 22-03-2000

A aliança entre GM e Fiat e a compra da Land Rover pela Ford aceleram a concentração na indústria automobilística

1": Dois dos grandes negócios intemacionais anunciados na semana passada (...) são parte de um mesmo movimento que está mudando radicalmente a face da indústria automobilística mundial. O setor está se concentrando. As marcas estão sendo agmpadas sob enormes guarda- chuvas que formam blocos gigantescos para poder sobreviver num ambiente cada vez mais competitivo, em que o consumo não tem crescido no ritmo esperado.

2": Há algum tempo as vendas globais estão perdendo fôlego. Entre as montadoras a competitividade se tomou um mantra. As fusões são o melhor caminho para ganhar escala e cortar custos.

3" : Quase três anos e muitas parcerias depois, o mercado parece acomodar-se em tomo de seis grandes montadoras.

4” : As parcerias têm dois objetivos. O primeiro é aumentar escala, ou seja, produzir mais carros com menos investimentos e atingir novos mercados.

5" : Juntas, GM e Fiat são donas de cerca de um terço do mercado nos Estados Unidos e um terço na Europa. Metade dos carros vendidos no Brasil é fabricada pelas duas marcas famosas. De cada dez automóveis vendidos no planeta, dois levam a logomarca de uma delas. 6" : A correria para se fimdir com o concorrente do mercado ao lado tem outra razão. A estratégia de produzir carros mundiais ao gosto médio do consumidor global esgotou-se. A onda agora é produzir veículos com a cara do freguês...

7": A urgência de gastar menos e ser mais eficiente na produção e no atendimento às necessidades de públicos diferentes fica clara quando se analisa o mercado mundial.

A estmtura argumentativa do texto anterior fundamenta a idéia de que o mercado automobilístico está se concentrando. Apresenta as razões por que isso acontece, ou então, por que não poderia ser diferente. Os dois parágrafos iniciais a ilustram bem. Ao lado da constatação (descrição de um caso particular - venda da Fiat para a GM), está implícita ao longo do texto uma idéia de natureza mais geral: “Quem quiser sobreviver no mercado global precisa ser grande e para isso deve fazer alianças”. Essa idéia também aparece em outras reportagens:

a) “O negócio marca a entrada do Brasil na era das superfusões de empresas, a característica mais significativa do capitalismo mundial. (...) O futuro vem acompanhado de uma competição darwinina. Só os maiores, mais fortes e mais eficientes sobrevivem” . (Veja, Nas asas da fiisão).

b) ‘Tusões e compras de empresas são um ajuste econômico mundial e estão sendo feitas para fortalecer companhias.” {Veja, Até pão de queijo).

c) “Unir forças com concorrentes tem se mostrado o caminho mais rápido para crescer. A própria MCI, criada em 1983, resulta de 65 fusões”. {Época, Ruído na competição).

A contribuição das informações inscritas nas descrições definidas a favor dessa idéia da necessária concentração na indústria pode ser observada a partir da expressão a aliança entre GM e Fiat, presente no subtítulo. Servem para ativar o gosto do leitor, para impressioná- lo, mas, ao mesmo tempo, podem estar a serviço da linha argumentativa do texto. Outra expressão que nomeasse o mesmo referente poderia ser utilizada, mas não geraria os mesmos efeitos. Contrapondo alguma expressão do tipo a parceria entre GM e Fiat, toma-se possível perceber o maior potencial argumentativo da primeira. As expressões grifadas na passagem seguinte evidenciam o que se está dizendo: “Há muitas outras fusões ou associações sendo negociadas. Não há outro caminho para as companhias que querem ser competitivas no mercado global. Para ganhar clientes, enfrentar concorrentes, reduzir custos e investir em novos produtos elas terão de fazer associações. Quem ficar nanico será empurrado para fora do jogo”. (Veja, O maior negócio do mundo).

O uso de a aliança impressiona o leitor. Remonta às características de aliança no seu sentido de “união decidida, firme e pactuai”: recorde-se a conotação bíblica da arca da aliança, do cálice como símbolo da aliança, da Tríplice Aliança (na guerra do Paraguai) e mesmo da aliança como símbolo do casamento. Através da descrição definida, é possível notar a “intensidade” com que a expressão se refere à união entre as duas empresas: “pacto, objetivos comuns a serem conquistados, ações a serem levadas às últimas conseqüências e rompimento só em último caso”. Essas informações estão inscritas nos sentidos da expressão a aliança que, ao indicar o referente (abstrato), ativa, ao mesmo tempo, um contexto que argumenta a favor dessa concentração na indústria automobilística. Época (20-03-00) aponta na mesma direção: dá o título “Aliança global” à reportagem que aborda o mesmo assunto. Traz como subtítulo: GM compra 20% da italiana Fiat, jó ia da fam ília Agnelli, e altera o cenário mundial”. Apresenta “documentos” em tomo da tese indicada e justifica os objetivos e as razões da venda. Embora de forma mais velada do que na reportagem anterior, insinua-se a necessidade da fiisão como meio de sobrevivência no mercado globalizado.

Se a reportagem fosse apenas a ampliação da notícia, provavelmente o texto se limitaria a incrementar a narração do fato básico - a venda, no caso - apresentando detalhes que os meios de circulação diária não puderam incluir, devido à exigüidade de tempo. Como intérprete do fato, no entanto, anuncia as causas da venda e as possíveis conseqüências. Poderia abordar o assunto sob diversos enfoques, apresentando prós e contras da transação realizada, para que o leitor, munido destas informações, formulasse opinião própria. Na medida em que, entretanto, propôs a tese de que o cenário mundial foi modificado, elabora o

texto no intuito de justificá-ia. É coerente nesse sentido: pelos dados que seleciona e da forma em que os apresenta, justifica a afirmativa de que o cenário mundial na área automobilística não é mais o mesmo. Se o texto não é claramente opinativo, pelo menos é argumentativo.

A opinião implícita, constituída ao longo do texto, sugere - ou mais que isso - que, somente através da fiisão com outra empresa, a Fiat continuará grande e conseguirá manter-se no mercado: “Agora, em um mercado globalizado, (a Fiat) foi forçada a conviver com quedas de até 45% nos lucro. Acabou cedendo ao aceno da GM para uma união estratégica. Juntas, podem disputar com vantagens a liderança no mercado sem fronteiras.” {Época, Aliança global). Não se apresenta um único dado, nem sequer se acena para alguma alternativa de a empresa continuar como era antes, modificando, por exemplo, estratégias administrativas internas ou algo semelhante. A conclusão que acaba prevalecendo é a de que a fusão seria a única saída. Quando se disse anteriormente que, por vezes, a reportagem parece dirigir-se a um auditório universal, tem-se aí um exemplo. Parece projetar, universalmente, uma única verdade, válida para todas as empresas: a lei do mercado aponta para a necessidade da fiasão como alternativa para a sobrevivência dos grandes conglomerados empresariais.

Constata-se que a reportagem apresenta determinada configuração argumentativa cuja tese é anunciada no subtítulo e confirmada ao longo do texto. Não opina - pelo menos não explicitamente - dizendo que o fato deveria, ou não, ter certo desdobramento, política ou economicamente mais, ou menos, correto; também não se restringe a apenas informa" (se é que isso é possível) ao leitor, trazendo-lhe conhecimentos que ele, supostamente, ainda não tem. Por isso, pelo menos em termos de sua macroestrutura, a reportagem pode ser considerada gênero híbrido, resultado da predominância informativa da notícia e do caráter argumentativo do ensaio ou comentário.

Em termos microestruturais (no nível das expressões referenciais) a interação entre informar e argumentar também parece configurar-se semelhantemente. Sobre, ou a partir de um conjunto de informações usadas para estabelecer a referência, organiza-se determinada linha argumentativa. Agora não se trata de tópicos fi*asais e justificativas. No nível de palavras ou sintagmas, a dimensão informativa projeta-se a partir do léxico selecionado, conforme visto mais acima em relação ao uso da expressão “aliança”. Tome-se, como exemplo, no subtítulo de Época, a palavra “jóia” - predicado atribuído á empresa italiana Fiat. Ao mesmo tempo em que o leitor, através da noção sugerida pelo termo (jóia), é informado sobre o surgimento e a característica familiar da empresa - dados que provavelmente até então desconhecia - pode ser levado a aceitar o fato de tratar-se de peça rara ou muito valiosa, que

teve de se subordinar às necessidades do mercado para continuar existindo. O fato de ser - ou ter sido - empresa familiar de certa forma desqualifica ou “envelhece” a Fiat diante da (suposta) impessoalidade e universalidade do mercado global.

Raciocínio semelhante pode ser desenvolvido a partir do sentido de “revolução”, palavra encontrada no 1° parágrafo desse mesmo texto: “Ãs 5 da manhã da segunda-feira 13, nos escritórios da fábrica de Lingotto, na periferia de Turim, na Itália, um homem de 79 anos anunciou uma revolução O texto dá a entender que não se trata de um movimento qualquer, corriqueiro. A palavra envolve a noção de transformação radical, por vezes violenta, de alguma estrutura - e a contrapõe à idade avançada de quem fez o anúncio, recorrendo, ainda aí, à antítese. Assim, pelo termo selecionado, o autor enfatiza - traz à presença do auditório (Perelman, 1999) - esse tipo de interpretação para a venda de parte de uma empresa e assim quer que o leitor a compreenda.

Mais uma vez, simultaneamente à informação, aparece a argumentação: o relato dos fatos tem sua importância diminuída por certa preocupação em persuadir o leitor de que esta transação comercial representa mudança radical, já apontada a partir do uso de “revolução” no subtítulo: a escolha das noções e dos atributos tem caráter argumentativo, segundo Perelman (1999). Esse caráter pode ser percebido quando se contrapõe à noção escolhida, outra que poderia figurar em seu lugar. Substituindo revolução por algo como uma das maiores vendas já realizadas na Itália ou a venda de 20% de sua empresa, o sentido já não seria o mesmo, apesar da referência à mesma realidade. Se o sentido não é o mesmo, também se ativam outros conceitos que modificam as suposições na memória do interlocutor, conforme Sperber e Wilson (1995).

O texto seguinte, a partir do título, já aponta para revolução no sentido de mudança brusca, radical, embora o referente desta vez seja outro. Qualificando-a como silenciosa, constrói uma antítese que, por seu efeito paradoxal, constitui-se de alta expressividade e, assim, ativa a curiosidade do leitor para descobrir do que se trata.

A REVOLUÇÃO SILENCIOSA - Época: 19-06-2000^

Na guerra para segurar funcionários, empresas oferecem bônus, ações, liberam gravata, aceitam horário livre e até pagam ginástica

1“: Desde o mês passado, o centro financeiro de São Paulo vive uma reviravolta. Funcionários de empresas intemacionais estão deixando a gravata em casa.

2": A briga por talentos não é nova, mas ganhou dimensão com a explosão do setor de alta Não foram transcritos os parágrafos cujos tópicos acrescentam informações já topicalizadas anteriormente.

tecnologia e a internet.

4": Por isso, mudar velhos paradigmas tomou-se palavra de ordem nas diretorias de recursos humanos.

6“: A migração para a internet ainda é alta. Afeta empresas, como a Johnson & Johnson, a Nestlé e a Gessy Lever, e instituições financeiras, como o Itaú.

8”; As stock options têm sido o principal tmnfo da internet na guerra de recrutamento porque podem trazer ganhos significativos.

10": A política de descontração no ambiente de trabalho surgiu há alguns anos, em Redmond, nos EUA, na sede da Microsoft. Lá, desenvolveu-se a idéia de que a produtividade anda com padrões de vestuário e comportamento menos rígidos.

12" : A guerra no mercado de trabalho beneficia diretamente as mulheres.

14": As mulheres também ganham destaque em ocupações até pouco tempo atrás exclusivamente masculinas.

16": Anos de experiência também voltam a contar.

Nesse texto, o sentido de revolução continua o mesmo do anterior, mas o referente deixa de sê-lo. Agora “revolução” se refere á mudança bmsca observada nas empresas - principalmente naquelas de alta tecnologia - em relação aos elementos citados no subtítulo. Observe-se que expressões como velhos paradigmas ou stock options denunciam prévia seleção do universo de leitores. Mediante estas e outras expressões, a reportagem segue uma linha argumentativa que aponta para “a supressão das características tradicionais das empresas e sua substituição por outras” como fatos suficientemente notáveis e transformadores para caracterizar uma revolução. O uso argumentativo desta expressão lembra o uso corrente de imagens na cultura popular e no dia-a-dia; “estou morto de fome”, “não foi um temporal, foi um dilúvio”, “o meia-esquerda foi um gigante em campo”. Trata-se de metáforas por exagero, estratégia que a reportagem de revista também utiliza para atrair a atenção dos leitores.

Expressões como a briga por talentos e a guerra no mercado de trabalho reforçam a idéia de que a competição entre as empresas para conseguir os melhores executivos é violenta. Se considerado o pressuposto de existência vinculado às descrições definidas, acrescenta-se que “a guerra” e “a briga” de fato existem. Expressões como “a procura por talentos” ou “a seleção no mercado de trabalho” não surtiriam os mesmos efeitos. Além de não impressionar tanto, não teriam tanta força para angariar a adesão do leitor. Mas trariam a mesma informação e fariam referência ao mesmo objeto. Por isso pode-se dizer que, nas expressões originais dos textos, predomina o uso argumentativo. Se no primeiro texto predominava “a grandiosidade e a aliança”, agora predomina o potencial argumentativo da “competição e da força”. Estes quatro traços ainda serão abordados com mais detalhes ao longo do estudo. Para facilitar a tarefa, é preciso, antes, distribuir as reportagens de acordo com os assuntos comuns

que predominam, objeto da próxima seção.