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Capítulo 4. Porto 2001 e depois | Os primeiros anos do Remix Ensemble

4.1. Contexto político

Analisar uma qualquer sorte de meio artístico — a que correspondem quadros perce- tivos, simbolizações, mundividências (que, por sua vez, vêm a consubstanciar dadas práticas culturais) — é, claro está, tarefa que se não cumpre isolando-o das demais dinâmicas sociais, como se de um domínio autossuficiente se tratasse. Com o que se impõe — de novo remetendo para a ideia de fenómeno social total —, que comecemos por articular quanto é narrado com a conjuntura económica, social e política de que forma também parte. Indagar sociologicamente o trajeto do Remix Ensemble implica, por isso, que se torne a um tempo excecional da nossa história recente, inscrevendo o seu aparecimento naquela que foi uma fase particular do desen- volvimento cultural do país, em termos gerais, e, mais especificamente, da cidade do Porto. «Politicamente — lembrava um dos membros fundadores do ensemble (M13) —, houve uma conjugação de fatores que fez com que se [apostasse] num grupo de música contemporânea como nunca tinha sido feito antes» — «facto, que, só por si, já marcou a história da música em Portugal».

Ao nível estatal, se a década de governação social-democrata fora «marcada por um certo 'liberalismo cultural' e pela abertura de Portugal à Europa» — e, por essa via, de novas oportunidades de financiamento para a cultura, sobretudo no que às infraestruturas diz respeito —, «o momento que se lhe seguiu foi de viragem», com a institucionalização do Ministério da Cultura, em 1995, pela mão de Manuel Maria Carrilho, «e o desenvolvimento pela primeira vez na história da Terceira República de uma política da cultura, na verdadeira acepção do termo, de forma coerente e articulada». Eram, então, cinco as causas estruturantes da atuação do re- cém-criado Ministério: «(i) a área do livro e da leitura; (ii) o património, com enfâse tanto no património arqueológico como no arquitectónico; (iii) a criação, nas artes plásticas, nas artes

do espectáculo, e no cinema e audiovisual; (iv) a descentralização, que visava, entre outros, a relação mais próxima entre Estado central e autarquias, nomeadamente através da itinerância dos serviços do Ministério, e a promoção de iniciativas noutros locais que não Lisboa; e final- mente (v) a internacionalização da cultura portuguesa» (Ramalho, 2012: 77–78).

Já à escala municipal, terá sido com a criação, em 1989, do Pelouro de Animação que a cidade «começou a usufruir de uma verdadeira política cultural (conjuntos articulados de ini- ciativas coerentemente planeadas e avaliadas; objectivos claros e operacionalizáveis; mecanis- mos eficazes de produção e divulgação; diversificação das actividades; diálogo com os poten- ciais públicos; recuperação de infra-estruturas; etc.)» (Lopes, 2000: 179–180). João Teixeira Lopes, de modo mais concreto, identifica «duas faces complementares dessa política cultural de cidade: uma mais visível e espectacular» — em que se inclui uma série de festivais organi- zados ou apoiados pela autarquia (e.g., o Festival Internacional de Marionetas, o Salão Interna- cional de Banda Desenhada do Porto ou as Noites Ritual Rock) —; e outra, «mais discreta, mas nem por isso menos significativa, [centrada] em três aspetos fundamentais: a recuperação per- manente de equipamentos (...); a relação com as associações (...) e a ligação às escolas, medi- ante projectos de formação de novos públicos».

No decurso dos anos 90, fruto de uma estreita articulação entre os poderes autárquico e central, são, assim, várias as iniciativas que «contribuem para dar uma nova pujança à cidade em termos culturais, turísticos e urbanos, conjugadamente» (Rodrigues, 2013: 3). Desde logo, através da criação e/ou recuperação de um número considerável de equipamentos culturais — «área de atuação privilegiada» pela Lei Orgânica do Ministério da Cultura —, de que são exem- plo a abertura da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, a reabilitação do Museu Nacional So- ares dos Reis, a criação do Centro Português de Fotografia, a renovação do Teatro Nacional São João ou a construção do Museu de Serralves (Ramalho, 2012: 79–81). A que se somava — dado relevante para o caso — o processo de redefinição jurídica tanto do já mencionado Teatro Nacional São João como da Orquestra Nacional do Porto, «que os constituiu como institutos públicos, [ou seja] entidades equiparadas a pessoas colectivas de direito público». Ao longo da década, «verificaram-se [por isso] alterações significativas na orientação política da área da música, que se traduziram na afectação de despesas, a mais importante das quais ocorrida com as orquestras» (Neves, 1998: 3).

Do ponto de vista local, por sua vez, estimulou-se, igualmente, «um alargamento da rede municipal de equipamentos, de cariz estruturante» — em que se destacam a intervenção

no Teatro Rivoli, a edificação do Teatro do Campo Alegre ou a renovação das Casas-Museu de Guerra Junqueiro e Marta Ortigão Sampaio (Lopes, 2000: 180). Mas nem só. Também no plano da reabilitação urbana, a título de exemplo, haveria a salientar a candidatura e subsequente listagem, pela UNESCO, do centro histórico da cidade do Porto como Património Mundial da Humanidade, em 1996, «que concorr[ia] para uma das apostas declaradas do executivo cama- rário, a projecção internacional de uma imagem de modernidade» (Ramalho, 2012: 68).

Corolário do descrito — e prova da importância que os objetivos de descentralização e internacionalização da cultura assumiriam, no âmbito da ação ministerial — é a candidatura do Porto a Capital Europeia da Cultura, em 1997, que, partindo de iniciativa do próprio Manuel Maria Carrilho (com o apoio do Primeiro-Ministro, António Guterres), conhece pronto acolhi- mento de Fernando Gomes — um e outro animados pela perspetiva de que o evento seria uma boa forma de relançar a cidade nos circuitos culturais internacionais. «O 'Portugal europeu' [era] um país que avança[va] a várias velocidades, retalhando o território em regiões com desiguais níveis de desenvolvimento» (Lopes, 2000: 139) — com a zona Norte, por seu turno, a apresen- tar um grau de assimetria preocupante face à média nacional —, pelo que a oportunidade surgia como ideal, do ponto de vista estratégico, para que o Porto assumisse o papel de verdadeira «metrópole cultural regional» (ibid.: 179). Mas se, de facto, a ideia parece ser, em primeira instância, libertada pelo então Ministro da Cultura (fora discutida, em Conselho de Ministros, no final de 1996, e tornada pública, em janeiro seguinte), tudo aponta para que Manuela de Melo — vereadora da cultura entre 1990 e 2002 — tenha, simultaneamente, «feito a mesma leitura sobre o potencial da cidade e apresentado ainda em 1996 a proposta de avançar com a candidatura no ano sequente» (Rodrigues, 2013: 35). A possibilidade nasce, como tal, de «duas iniciativas desconexas» (ibid.: 185) — «sincronicidade», essa, que, salienta Joana Ramalho (2012: 94), «permitiu um consenso político de raiz do qual o projecto» vem a beneficiar, e que, em seu entender, é o «resultado de quase uma década de trabalho da Câmara Municipal do Porto na definição estratégica de uma política da cultura consistente e integrada, por um lado, e [por outro] o reconhecimento ao nível do Ministério da Cultura do potencial da cidade do Porto para a prossecução de duas das causas centrais à política da cultura nacional».