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Capítulo 3. Metodologia | O objeto de estudo

3.1. Definição do objeto

O percurso teórico até aqui descrito foi, como tal, ponto de partida para a problemática em estudo — «o caráter específico e altamente problemático da experiência» da criação con- temporânea (Osborne, 2013: 5). No caso, a música. Com a certeza de que seriam vários os motivos de interesse. Desde logo, por questões epistemológicas: a imprescindibilidade de apon- tar a um certo apaziguamento entre correntes de pensamento que permitisse, se não recentrar, restituir, à obra artística — leia-se o discurso musical —, dignidade analítica. E isto porque sabemos, pelo menos desde Bourdieu, que a análise histórica «permite compreender as condi- ções da 'compreensão', apropriação simbólica, real ou fictícia, de um objeto [artístico] que [se] pode acompanhar dessa forma particular de fruição [a] que chamamos estética» (Bourdieu, 1996: 365). Há, aliás, pródromos, nalguma da produção teórica que marca a atualidade (e.g., Born, 2010b; Hennion, 2002), de um reconhecimento crescente face às virtualidades da análise

textual, bem como da necessidade de atender ao discurso estético — de uma quase inevitabili- dade, da parte da sociologia, em pensar os fenómenos musicais por referência aos respetivos universos de sentido. Tentando, assim, ultrapassar, no que à música contemporânea diz respeito, a eterna dicotomia que opõe universalismos descredibilizados e o total relativismo — por via de uma já prenunciada reconciliação da teoria sociológica com a experiência estética. Mas mais: a possibilidade de empregar alguns dos recentes desenvolvimentos teórico-metodológicos, mormente os operados pela mão de perspetivas científicas que se têm ocupado da cultura po- pular, à música 'erudita'. Por outras palavras, a oportunidade de submeter a abordagem situada, contextual, a um teste de abrangência, aplicando-a a um meio artístico com evidentes idiossin- crasias.

Como nota David Stubbs (2009), se a arte e arquitetura contemporâneas são, em dado sentido, casos de sucesso mediático, escapando (a espaços) até à dura lógica dos mercados, o mesmo se não poderá dizer da música dos últimos cem anos, que vem — assim o sugere a literatura (Menger, 1988; Dorin, 2013) — acumulando sucessivos falhanços, cujas propostas parecem afugentar o grosso da plateia: do ouvinte comum ao melómano mais dedicado. Nuan- ces à parte, o vanguardismo parece ser bem-recebido (entenda-se: mais facilmente acolhido) no seio das artes plásticas e visuais — que, importa relembrar, muito partilham, no plano estético, com as suas homólogas performativas —, ao passo que a experimentação musical embate numa aparente indiferença (recte: reatividade) da generalidade dos públicos. Um mundo que mantém, para usurpar a expressão de Wacquant (2004: 17), uma «dupla relação de simbiose e oposição» perante a música 'clássica', de afinidade e concomitante antagonismo, usufruindo da proteção legitimadora da estética pura — da economia 'antieconómica' (Bourdieu, 1996: 101) —, e tal- vez por isso terminando vítima de uma obstinada ligação ao passado — e certa sociologia do «comentário hagiográfico» (Hennion, 2002: 1).

Com pistas que levavam a crer que a chave para entender o baixo grau de identificação dos públicos — como de boa parte dos músicos também — estaria, sim, relacionada com ca- racterísticas intrínsecas à própria evolução do idioma musical na contemporaneidade, mas, idem, com sabidas insuficiências do ensino formal ou da indústria fonográfica. Nem falar de alguma da formalidade e hermetismo que habitualmente associamos a estas práticas artísticas, das rígidas modalidades de fruição de um género musical marcado por ímpares lógicas simbó- licas, que obedecem (ainda que no limite da acessibilidade) a uma fortíssima estruturação hie- rárquica. Em suma, e parafraseando Foucault (Foucault e Boulez, 1985: 7), o objetivo

consistiria não em perguntar, com a música a esta distância, como poderíamos repatriá-la — tarefa um tanto ou quanto estranha à sociologia, sabemo-lo hoje —, mas antes em perceber por que motivo, sendo-nos tão próxima, tão consubstancial à nossa cultura — ao nosso tempo —, nos parece tão longínqua.1

E por isso ficou claro, desde os momentos iniciais — correspondentes ao desenho da investigação em apreço —, que o nível institucional, enquanto «estrutura contextual de interac- ção» (Costa, 2008: 298), seria ponto ótimo para explorar mais finamente alguns dos aspetos em discussão. Ou não fosse particularmente relevante para o tema cruzar representações de músi- cos e públicos, encontrar coincidências e descontinuidades quanto às opções institucionais (má- xime se articuladas com questões de política cultural) — isto é, a possibilidade de considerar conjuntamente os diversos planos da análise (produção, receção e mediação). Junto a Madureira Pinto (2014: 12), quando, secundando Dubois, defende que «a ligação entre o nível das intera- ções e as 'estruturas sociais' (...) pode e deve ser esclarecida tomando em linha de conta as mediações institucionais pertinentes». Pelo que se vai, então, corroborando a opção pela etno- grafia, vista como forma privilegiada de aproximação ao terreno, de conciliação entre níveis de análise e de conjugação de técnicas de recolha de dados; não como um fim em si (o tal pressu- posto ético que careceria de constatação empírica). Mobilizada, enfim, como elemento agrega- dor das diferentes estratégias de pesquisa. Nesse «rente ao chão da cultura», de que fala João Teixeira Lopes (no prelo).

Assumida essa primeira decisão, impunha-se, assim, a escolha de uma unidade de aná- lise — de um «local estratégico de pesquisa», diria Robert K. Merton (1987) — conforme às exigências2 supramencionadas: um agrupamento especializado em música contemporânea, de créditos firmados e suficientemente institucionalizado. Sendo que, precisamente em razão

1 Importará recordar, a propósito, a célebre formulação de Peter L. Berger e Thomas Luckmann (1991: 14), se-

gundo a qual «o entendimento sociológico da 'realidade' e do 'conhecimento' se situaria algures entre o do homem comum e o do filósofo» — nem dado adquirido, nem objeto de inquirição ontológica. Ao sociólogo caberia, assim, fornecer respostas sobre os processos que levam a que determinadas noções assumam valor de facticidade, i.e., sobre os complexos intersubjetivos que permitem que diferentes 'realidades' se construam, sejam mantidas ou percam significado, num dado enquadramento social.

2 Num primeiro momento, considerou-se a hipótese — a ponto de estabelecer contactos informais com figuras

próximas à direção — de estudar um agrupamento alemão emergente, autogerido, com sede em Hamburgo: o Ensemble Resonanz. Atraía-nos o facto de se tratar de um grupo que vem fazendo percurso sustentado no domínio da música contemporânea, bem como a possibilidade de analisar o quotidiano de uma estrutura que não dispunha de apoio estatal regular, criada por músicos recém-diplomados e administrada através de processos democráticos. Mas de pronto se chegou à conclusão de que não só a barreira linguística constituiria um entrave significativo a uma mais ampla recolha de dados como cedo se tornou também clara a pertinência de um outro tipo de objeto de estudo, que viabilizasse a articulação, entre outras, com questões de política cultural ou relativas à pertença a redes de instituições culturais europeias.

destas, as alternativas escasseavam. Como refere Stéphane Dorin (2013: 100) — importará sub- linhar —, no tocante ao contexto europeu, vemo-nos cingidos a «um grupo restrito de forma- ções exclusivamente dedicadas à música contemporânea», de que se destacam, na Alemanha, o Ensemble Modern, o ensemble recherche e o Musikfabrik, fundados em 1980, 1985 e 1990, respetivamente; na Áustria, o Klangforum Wien, em atividade desde 1985; na Holanda, o Schönberg Ensemble (hoje, Asko Schönberg), criado em 1974; ou ainda, na Grã-Bretanha, a London Sinfonietta, que, constituindo-se em 1968, «serviu de modelo à criação do Ensemble intercontemporain», no ano de 1976.

De entre o rol, e dado que o assunto se mantinha, em larga medida, inexplorado pela sociologia portuguesa3 — se bem que nem só —, a escolha com naturalidade veio a recair sobre o Remix Ensemble — caso único no país, que, como se saberá, tem até relação privilegiada com alguns dos agrupamentos antes listados. Considerando-se, entre outros, que oferecia con- dições ideais para 1) analisar redes de instituições culturais — principalmente no que respeita ao espaço europeu —, de que são exemplo a Réseau Varèse ou a ECHO (European Concert Hall Organisation); 2) pensar a política cultural portuguesa, em especial modalidades de finan- ciamento misto (assentes numa lógica público-privada); 3) retratar percursos educativos e for- mativos; 4) olhar para o mercado de trabalho e carreiras profissionais/artísticas; 5) avaliar es- tratégias de mediação cultural; 6) conceber tipologias de públicos; 7) reconstituir representa- ções e subjetividades estéticas; ou 8) refletir sobre profundas alterações nas convenções e práxis musicais, assim como nos modos de apropriação artística. Tudo isto enquanto se celebrava o 10.º aniversário da Casa da Música e o 15.º do Remix, a que se juntava o anúncio simbólico da Alemanha como país-tema da programação de 2015, num momento em que se sentiam ainda os revérberos de uma conjuntura económico-financeira especialmente penalizadora — que acentuava a relevância da articulação com questões de política cultural ou até relativas à lógica de comunicação na era da globalização. Altura ideal, equivale a dizer, para reconstituirmos a memória coletiva de um ensemble que alterou de forma profunda o panorama musical — e cultural — português, para refletir sobre o seu passado recente e projetar tempos vindouros.

3 Menção é devida aos trabalhos seminais de Mário Vieira de Carvalho (e.g., 2007), sobre a tragédia da escuta na

contemporaneidade, e de António Pinho Vargas (2010), este último acerca da ausência da música portuguesa no contexto europeu — ambos partindo de uma perspetiva crítica.