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Contextualização do problema e das questões de investigação

A investigação em formação de professores de ciências, embora um campo de estudo recente, é hoje reconhecida como um domínio particular no contexto mais geral da investigação em formação de professores. Até à década de 1970, a formação de professores era informada por resultados de investigação noutras áreas, como a de investigação em ensino (Wideen & Tisher, 1990), que assentava em tradições investigativas lógico-positivistas, originárias das Ciências Naturais (Munby & Russell, 1998). Designadamente na década de 1970, assumiram grande importância as investigações processos-produtos, em que se procuravam identificar comportamentos de ensino específicos - competências específicas e identificáveis - com influência no desempenho dos alunos. Estes estudos estão associados à atomização artificial de competências complexas e à sua redução a tarefas mecânicas e interligam-se com modelos de formação que, tratando os professores como técnicos, se baseiam no treino dessas tarefas (Hodkinson & Harvard, 1994). A investigação assim desenvolvida pouco contribuiu para o desenvolvimento de uma compreensão coerente dos processos de desenvolvimento dos professores (Wideen & Tisher, 1990) e, como se referiu (ver 1.2.1.), a formação baseada naqueles modelos não promoveu as mudanças de práticas lectivas nem resultou nas melhorias das aprendizagens dos alunos, desejadas pelos sucessivos movimentos de reforma.

Na década de 1980 a formação de professores passou a ser vista como um campo de estudo em si mesmo, tendo começado a generalizar-se o recurso a metodologias qualitativas de investigação. Surgiram, nesta época, investigações sobre aprendizagem e pensamento dos professores e programas de desenvolvimento profissional baseados no conceito de reflexão, muito influenciados pelos trabalhos iniciais de Schön (eg., van Driel, Verloop & de Vos, 1998).

No início da década de 1990, a formação de professores, designadamente de ciências, afirmou-se como área de estudo profissional e como área de acção e verificou-se uma evolução nas metodologias de investigação no sentido da fenomenologia, traduzida num aumento do interesse pelo desenvolvimento de estudos de caso. Embora com algumas hesitações iniciais, esta evolução determinou avanços significativos na conceptualização do conhecimento dos professores e na compreensão de como é construído e modificado, reconhecendo-se e valorizando-se a sua experiência profissional, radicando, assim, a sua aprendizagem numa epistemologia da prática e numa epistemologia do conhecimento profissional enraizado na própria acção. No entanto, a investigação não tinha ainda contribuído suficientemente para a teorização de como os professores aprendem a ensinar e surgia a necessidade de se sustentarem noutras áreas do saber, como a psicologia, a sociologia ou a filosofia, afirmações teóricas sobre formação de professores de ciências (Munby & Russell, 1998).

A década de 1990 foi substancialmente marcada pela transição da ideia do professor como técnico para a ideia do professor como prático reflexivo. No entanto, esta transição tem implicações ao nível da conceptualização da aprendizagem dos professores e consequentemente ao nível da formação de professores de ciências, que têm demorado a ser reconhecidas e, mais ainda, a ter tradução prática (Munby & Russell, 1998).

A perspectiva da aprendizagem dos professores como um processo construtivo, desenvolvido em contextos físicos, sociais e culturais, releva o papel da reflexão, individual e cooperativa, e do desenvolvimento de competências reflexivas e metacognitivas, para a aprendizagem e o desenvolvimento dos professores. Passa a ser fundamental considerar a relevância e o significado das crenças, conhecimentos e experiências profissionais dos professores para os programas de formação contínua e, genericamente, para os processos de desenvolvimento em que se envolvem. Nesta perspectiva, atribuem-se os fracassos, já referidos, de tentativas de mudança e inovação do

ensino das ciências a incompatibilidades entre pressupostos, finalidades e orientações para o ensino de ciências dos movimentos de reforma, e convicções, concepções e práticas de ensino de ciências dos professores.

Assim, defende-se que os programas de formação contínua de professores de ciências devem facilitar, designadamente, processos de mudança conceptual referentes a concepções das disciplinas que ensinam e da própria educação (formal) em ciências. Uma parte importante da investigação sobre formação de professores na Europa entre meados das décadas de 1980 e de 1990 orientou-se nesse sentido (Munby & Russell, 1998), visando investigar programas e formas de promover mudanças de práticas lectivas de professores tornando-as compatíveis com perspectivas construtivistas de aprendizagem conceptual das ciências (eg., Brooks & Brooks, 1993; Cachapuz, 1993; Richardson, 1997; Tobin, 1993b).

Munby e Russell (1998) defendem que, em muita da investigação sobre formação de professores que se tem desenvolvido, continua a ser ignorado o conhecimento em que os professores radicam o seu ensino, de carácter em parte prático, que só pode ser aprendido em articulação com a prática. Porém, a emergência, na última década, de abordagens reflexivas de sucesso na formação de professores, com as suas ligações à investigação qualitativa, tem reforçado a ideia de uma epistemologia do conhecimento profissional dos professores de ciências, designadamente de química, baseada na prática, enfatizando a relevância da convergência de experiências práticas e pensamento sistemático, teórico, dos professores (eg., Bell & Gilbert, 1996; Cachapuz, 1993; Davis, 1996; Gallagher, 1993; Howe & Stubbs, 1997; Munby & Russell, 1992; Paixão, 1998; Porlán Ariza & García Gómez, 1992; Russell, 1993; Zeichner, 1993).

Enquanto cenários das práticas lectivas, e em consonância com esta perspectiva, as escolas deverão constituir locais privilegiados para a formação de professores. No entanto, os contextos, designadamente organizacionais, das escolas, e a cultura escolar dos diversos agentes educativos, podem constituir obstáculos à reconstrução de crenças e de conhecimentos e à inovação de práticas docentes, e, portanto, ao desenvolvimento

profissional dos professores. É importante, pois, que nas escolas se passe a encorajar, a suportar e a premiar a reflexão e a investigação realizada pelos professores mas também que os formadores de professores compreendam a influência de tais factores na formação dos professores para poderem (re)conceptualizar as suas próprias práticas.

É ainda necessária e relevante a concepção de modelos de formação, designadamente contínua, de professores de ciências que sejam consistentes com os resultados da investigação e que perspectivem os professores, simultaneamente, como inovadores e aprendizes a partir das suas práticas, numa dialéctica constante entre teoria e prática (Furió & Carnicer, 2002). Tais modelos deverão permitir concretizar estratégias que facilitem a reconstrução pelos professores, quer dos seus esquemas de acção, em particular de práticas lectivas, quer de crenças, conhecimentos e atitudes a eles associados.

O problema que guiou a presente investigação emergiu do contexto dos desafios que continuam a colocar-se à formação contínua de professores de ciências, e, em particular de química, referidos no presente capítulo e das críticas que são feitas aos modelos de formação subjacentes às modalidades de formação previstas e aos respectivos resultados, no contexto português:

Poderá conceber-se um modelo de formação contínua de professores de ciências, enquadrável no quadro legal da formação contínua em Portugal, que seja consistente com os resultados da investigação em formação de professores de ciências, e que perspective a formação contínua de professores como um veículo de inovação do ensino das ciências?

Perante o problema assim definido, formularam-se as seguintes questões de investigação:

Que características deverá ter um programa de formação contínua de professores de química, compatível com o quadro legal da formação contínua em

Portugal, que vise facilitar a (re)construção de crenças e conhecimentos, relativos à educação formal em química, e promover a inovação de práticas lectivas?

Que características salientes de um modelo de formação contínua de professores de ciências decorrem da sua avaliação e dos resultados da sua implementação?

Para clarificar o problema e as questões de investigação formuladas, será importante colocar e procurar responder a algumas questões adicionais:

Que concepção de professor deveria estar subjacente ao programa de formação contínua de professores de química?

Em que perspectivas de desenvolvimento de professores deverá basear-se o programa?

Que referenciais teóricos, consistentes com investigação sobre pensamento e conhecimento dos professores, deverão orientar a concepção do programa?

Que estratégias de formação poderão estimular o desejável desenvolvimento dos professores?

Como concretizar essas estratégias num programa de formação contínua de professores de química? Que ambientes e que actividades de aprendizagem deverão integrar os percursos de formação a propor aos professores nesse programa? Que fases deverão compor o programa e como se deverão articular?

Que aspectos relativos à educação formal em química seria importante os professores (re)considerarem, à luz de pressupostos e finalidades actuais da educação científica e, em particular da educação em química, sobre eles (re)construírem crenças e conhecimentos e usarem para informarem e fundamentarem inovações em práticas?

No sentido de responder às questões formuladas, deveria, então, conceber-se um programa de formação contínua de professores de química, fundamentado nas recomendações da investigação em formação contínua de professores de ciências, em particular de química, e contextualizado nos aspectos inovadores dos pressupostos e

finalidades actualmente assumidos em comunidades internacionais de investigadores em educação em ciências, e de outros Organismos e Organizações de prestígio internacional (e.g., UNESCO), para a educação em ciências, com tradução em documentos oficiais do sistema educativo português. Tal programa de formação deveria ser implementado e avaliado, designadamente, com base nas questões

Que aprendizagens realizaram os professores-formandos envolvidos, entendidas como (re)construção de crenças e conhecimentos relativos ao ensino (e, genericamente, à educação) formal de química ?

Que inovações em práticas lectivas, decorrentes dos processos de desenvolvimento em que se envolveram durante o programa de formação, os professores- formandos conceberam e efectivaram?

Por último, da análise do programa desenvolvido, implementado e avaliado deveria resultar a definição das características de um modelo de formação contínua de professores de química, passível de ser utilizado, como ferramenta heurística, na concepção de outras situações de formação.