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2 DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA

3.1 Contextualizando o Poder Judiciário

O Poder Judiciário assume, hoje, a posição de protagonista na promoção da justiça social, o que não significa dizer que está apto ao feito. Em verdade, esse fato contrasta com o viés apático, em matéria de reforma social, que ostentava antes da promulgação do atual diploma constitucional. Tal fenômeno, assevera Boaventura (SANTOS, 2007, p. 11), foi comum ao Brasil e aos seus irmãos continentais:

Na maior parte do século XX, nos países latino-americanos, o judiciário não figurou como tema importante em matéria de reforma, cabendo ao juiz a figura inanimada de aplicador da letra da lei emprestada do modelo europeu. A construção do Estado latino-americano ocupou-se mais com o crescimento do executivo e de sua burocracia, procurando converter o judiciário em uma parte dos aparatos burocráticos do Estado [...] de facto, uma instituição sem poderes para deter a expansão do Estado e seus mecanismos reguladores.

A indiferença do Judiciário frente às questões sociais remonta às raízes coloniais do Poder. Em pleno século XVII, com a instalação da Relação da Bahia, uma espécie de ancestral dos tribunais superiores, os magistrados foram incumbidos de garantir o êxito dos desígnios reais no solo selvagem brasileiro. Esperava-se de um juiz que se blindasse contra as pressões sociais e econômicas inerentes ao seu exercício e se abstivesse de formar vínculos com os locais, circunstâncias capazes de desviá-los dos caminhos já estabelecidos e pavimentados pela burocracia real. Prossegue Stuart B. Schwartz (2011, p. 148):

Além disso, esperava-se dos juízes reais que projetassem certa imagem. A Coroa queria que a vida pessoal deles fosse caracterizada por grande sobriedade e adjetivos

como ‘sério, grave, capaz e prudente’ estavam entre os mais altos elogios que um

magistrado podia receber.

Nesse sentido, a Coroa não poupava esforços para discriminar os seus fiéis servidores dos jurisdicionados, “para elevá-los acima da sociedade e dar-lhes, por meio de prestígio, riqueza e influência social, uma posição de respeito inatacável” (SCHWARTZ, 2011. p. 149). Os magistrados gozavam de altos salários e isenções de impostos, e eram convidados distintos em eventos e celebrações civis e religiosas. A segregação dos juízes da realidade local culminava com a vedação ao matrimônio com mulheres brasileiras e à compra de terras, dentre outros negócios, na área na qual exercia a jurisdição.

Não o bastante, “ataques físicos a um desembargador eram punidos com a morte e calúnias contra eles resultavam em exílio penal” (SCHWARTZ, 2011. p. 149).

Inevitavelmente, as diligências reais, destinadas a conservar em vácuo o exercício jurisdicional, falharam, ao menos em parte. De fato, o status e as regalias dos desembargadores tornavam-nos irresistíveis aos mais importantes grupos socioeconômicos e às mais influentes famílias. Outrossim, “a dificuldade de influenciar a formação das leis na metrópole e a falta de instituições representativas na colônia obrigavam os grupos de interesse no Brasil a exercer pressão sobre funcionários do governo em nível local.” (SCHWARTZ, 2011. p. 155).

Não era raro, portanto, um juiz que, desvirtuado dos regramentos devidos a sua profissão e impostos pela Coroa, utilizasse o seu cargo para benefícios pessoais. Menos raros, e públicos, ainda, eram os vínculos entre magistrados e notáveis famílias e grupos socioeconômicos, sejam por amizade, casamento ou compadrio.

Contudo, deve-se fazer a seguinte ressalva (SCHWARTZ, 2011. p. 155):

O tipo de recurso social ou econômico que levava os magistrados a estabelecer relações primárias só podia ser oferecido, no Brasil colonial do século XVII, pela elite canavieira branca, por outros funcionários do governo e possivelmente por uns poucos comerciantes atacadistas exportadores. Era pequena a possibilidade de que um sapateiro mulato ou um agricultor branco pobre se tornasse sogro ou sócio comercial de um desembargador.

Concluindo, a Relação nunca abdicou totalmente de sua independência, apesar de alguns magistrados sucumbirem a pressões externas. Tenha-se em mente que a progressão na carreira, dentre outras recompensas, eram oferecidas em troca da obediência invisual desses juízes, e muitos não ousariam comprometer eventuais promoções. No entanto, quando o

faziam, faziam em prol dos elementos mais notáveis e abastados da sociedade brasileira. Não muito diferente do que se observa nos tempos atuais.

Cabe investigar, ainda, a origem dos primeiros magistrados brasileiros. Por todo o período colonial, e adentrando no imperial, a educação foi fator de homogeneização da elite política brasileira, um luxo restrito aos mais abastados. A priori, os intelectuais, primordiais componentes da classe política, vinham de fora, porém, quando brasileiros, obtinham a sua formação no exterior para, então, retornarem a terra natal. Sabe-se, portanto, que os primeiros magistrados foram portugueses, formados em Coimbra.

À época do século XVIII, a Universidade de Coimbra, principal destino acadêmico da elite brasileira, esposava uma ideologia política conservadora, preocupada com a manutenção da ordem e centralização do poder. Mesmo quando tomada pelo Iluminismo pombalino, “seu espírito não era revolucionário, nem anti-histórico, sem irreligioso, como o francês; mas essencialmente progressista, reformista, nacionalista e humanista. Era o Iluminismo italiano: um Iluminismo essencialmente cristão e católico.” (CARVALHO, 2003, p. 67). O grande diferencial do Iluminismo português foi o foco no progresso técnico- científico, com a difusão do ensino das ciências naturais.

Logicamente, o acesso à educação superior, até o início do século XIX, era restrito à elite. Após a Independência, foram fundados dois cursos de Direito, em São Paulo e Olinda, ambos “criados à imagem do predecessor coimbrão” (CARVALHO, 2003, p. 76). Em verdade, explica José Murillo de Carvalho (2003, p. 74-75), o perfil dos alunos não mudou substantivamente:

De modo geral, os alunos das escolas de direito provinham de famílias de recursos. As duas escolas cobravam taxas de matrícula (que no primeiro ano de funcionamento foi de 51$200 réis). Além disso, os alunos que não eram de São Paulo ou do Recife tinham que se deslocar para essas cidades e manter-se lá por cinco anos. Muitos, para garantir a admissão, faziam cursos preparatórios ou pagavam repetidores particulares. Esses custos eram obstáculos sérios para os alunos pobres, embora alguns deles conseguissem passar pelo peneiramento. Menciona-se, por exemplo, a presença de estudantes de cor já nos primeiros anos da Escola de São Paulo, aos quais, por sinal, um dos professores se recusava a cumprimentar alegando que negro não podia ser doutor.

Historicamente, os magistrados advieram de uma classe estrita que, não obstante, concentrava o poder político da colônia e, em posterior, do país. De fato, o poder era privilégio dos letrados e, portanto, inalcançável aos desprestigiados. Esse paradigma perpetuava um governo alienado e descompromissado com as questões e os anseios da majoritária parcela da população.

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