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Da Necessidade de Modelos Alternativos à Jurisdição

2 DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA

3.3 Da Necessidade de Modelos Alternativos à Jurisdição

O presente trabalho, assim como os autores em que buscou fonte e fundamento, acredita no potencial de uma eventual reforma do sistema judicial de sorte a adequá-lo aos imperativos da concepção de acesso à justiça ora defendida, mormente as diretrizes da terceira onda do movimento pela acessibilidade. A despeito da conquista desse cenário ideal, predicado propositadamente inserido para definir aquele cenário, de forma alguma, rejeita-se a relevância da contribuição de mecanismos complementares e alternativos de pacificação social.

A saber, Goretti Santos, discorrendo sobre os métodos alternativos de solução de conflitos, encontra menor valia no seu potencial de descongestionar os processos submetidos à ação do Judiciário do que na latente efetivação do direito fundamental à justa pacificação de conflitos de interesses, resultado da sua existência e utilização. Acrescenta o referido autor (SANTOS, 2012, p. 92):

A crescente difusão de vias alternativas de facilitação do acesso à justiça não deve

ser interpretada como indício de uma tendência de ‘privatização’ da justiça estatal,

palavra que vem sendo utilizada com frequência que não deveria prosperar. Nosso discurso de reconhecimento da incapacidade do Estado de, exclusivamente, prestar a tutela jurisdicional efetiva a todos os conflitos juridicamente relevantes, não deve ser acolhido como base de sustentação de inaceitáveis teses privatistas ou antilegalistas, de aniquilamento do instrumento estatal de exercício da jurisdição.

Boaventura (SANTOS, 2007, p. 69) segue semelhante linha de pensamento:

[...] ideia de que só o magistrado, por ser magistrado, tem competência para resolver litígios, e de que, pela mesma razão, tem competência para resolver todos os litígios. Sendo a lei o único factor na resolução dos litígios, sendo o magistrado o seu interprete fidedigno, e sendo a lei geral e universal, a sua competência tem que ser também geral e universal.

Como resultado, ora se dará atenção às propostas de renovação do íntimo da organização da justiça para, então, enumerar instrumentos paralelos de solução de contendas.

Primeiramente, cumpre investigar a formação do magistrado. Impera, hoje e sempre, um ensino normativista e técnico-burocrático, o qual reproduz funcionários estritamente preparados para a aplicação nua e crua da lei. Em tempos de cidadãos munidos da aspiração democrática e conscientes de seus direitos, o perfil acima descrito não satisfaz. Urge-se por magistrados versáteis e maleáveis, que compreendam a complexidade do momento sócio-jurídico atual e sejam capazes de enfrentar os desafios decorrentes.

Logicamente, surpreender-se é parte inevitável do exercício jurisdicional, contudo a assimilação da realidade circundante e a habilidade de improvisação são ferramentas cruciais a um julgador.

Schwartz demonstra que a rigidez dos magistrados remonta ao período colonial:

A aplicação das leis, a proteção dos interesses legais e o cumprimento de instruções eram questões relativamente fáceis para os desembargadores, quando a situação ou o acontecimento eram esperados. Mas eventos extraordinários deixavam a Relação, como a maioria dos órgãos administrativos do governo colonial, temporariamente paralisada pela falta de capacidade para improvisar e pela inflexibilidade (SCHWARTZ, 2011, p. 136).

A cultura jurídico-judicial em vigor, resultante do centenário ensino normativista, repercute diretamente da forma de julgar dos magistrados formados sob as suas doutrinas.

A primeira delas, a autonomia do Direito, ensina os aspirantes a juízes a desenlaçar dois conceitos intrinsecamente relacionados: Direito e sociedade. Criam-se, portanto, magistrados competentes para interpretar o direito e incompetentes para interpretar a realidade social. Soma-se ainda que a errônea compreensão da sociedade torna-os alvos fáceis das ideias de senso comum, extensamente difundidas pelos formadores de opiniões mediante os meios de comunicação concentrados, embora distanciadas dos fatos sociais.

O histórico distanciamento da figura do magistrado, já analisado neste capítulo, é a semente que aflora em uma distorcida autoimagem, a qual, naturalmente, desemboca no senso de superioridade dos magistrados em cotejo com os cidadãos comuns. Sendo assim, surge a “desresposabilização sistêmica”, sintoma que evidencia o desmazelo pelo exercício jurisdicional e a incapacidade de assumir a culpa pelos seus atos. Esse fenômeno é potencializado pela ineficiência das medidas disciplinares e, infelizmente, culmina com a experiência de privilégios ilícitos.

A arrogância dos juízes reflete também na repulsa ao trabalho em equipe, isto é, à percepção da vara ou tribunal enquanto um conjunto com objetivos comuns, na desafeto pelas contribuição de outras disciplinas.

A concepção burocrática dos processos desagua em “uma gestão burocrática dos processos, privilegiando-se a circulação à decisão – o chamado andamento aparente dos processos; a preferência por decisões processuais, em detrimento de decisões substantivas; a aversão a medidas alternativas” (SANTOS, 2007, p. 70).

Transformar a cultura jurídico-judicial de um juiz requer a transformação das instituições que incutem essas doutrinas e valores: as faculdades de Direito. Tais faculdades são verdadeiras fábricas de profissionais sem qualquer compromisso com os problemas sociais.

Nesses centros, os alunos são comumente sugados para o hermético e restrito mundo das leis e dos códigos, que rejeita o diálogo com outras formas de Direito e de conhecimento. Os três pilares acadêmicos estão alinhados a essa concepção autossuficiente do Direito: o aluno é rebaixado na relação ensino-aprendizado, a prática e a contextualização são ignoradas pela pesquisa, e a sociedade e os seus domínios são subestimados na extensão.

O professor não escapa a esta crítica. A contratação de docentes já foi motivada exclusivamente pela prática profissional do candidato, desprezando a sua preparação pedagógica. Boaventura compara-os a palestrantes semanais, cujo conteúdo do discurso será cobrado ipsislitteris nas avaliações de desempenho dos alunos.

Voltando-se para a formação permanente de magistrado, cabe refletir sobre a ausência de cursos específicos para a profissão. Em verdade, o determinante critério de seleção de juízes é a aprovação em concurso público, cujas provas testam apenas a capacidade de memorização do candidato quanto às leis e às decisões judiciais recentes.

Está com a razão Boaventura quando defende que a educação jurídica seja “uma educação intercultural, interdisciplinar e profundamente imbuída da ideia de responsabilidade cidadã” (SANTOS, 2007, p. 76).

Outra crítica feita ao atual modelo de organização judicial relaciona-se ao seu isolamento das variadas manifestações da sociedade, que, por essência, é dinâmica e evolui rapidamente. O fato social é incrivelmente mutável, portanto, é sabida a incapacidade do Poder Público de acompanhar o seu ritmo. O reconhecimento dessa restrição é manifesto no processo de elaboração de uma lei, afinal, ciente da inaptidão para prever os rumos de uma sociedade, imprevisível na mesma medida em que é dinâmica, o legislador admite mecanismos de suprimento de eventuais lacunas na lei.

Embora inevitável, essa restrição pode ser contornada por uma maior abertura à sociedade. Em verdade, o sistema judicial ostenta um modelo piramidal e burocrático de organização, tanto impermeável quanto cooperativista. Consiste em uma cúpula formada por

poucos e seletos juízes encarregados das decisões substantivas e vinculativas, e uma base extensa composta de magistrados subordinados aos ditames emanados do topo da pirâmide.

A seguir, Boaventura fornece o plano de fundo histórico dessa estrutura (SANTOS, 2007, p. 79):

No Brasil, tal como em Portugal depois de 1974, a passagem da ditadura para a democracia não implicou debates, e tão pouco pressões políticas que exigissem mudanças profundas na estrutura organizacional dos tribunais. Isto conduziu a um reforço da independência judicial em relação aos outros poderes sem a correlata discussão sobre os mecanismos de controlo democrático. Por outro lado, não foi questionada a independência interna, preservando-se um modelo burocrático de organização, com subordinação dos juízes à cúpula, dentro de uma estrutura em que os magistrados se concentram nas suas carreiras individuais e mantêm um distanciamento em relação à esfera pública e às organizações sociais.

A atenção às mutações sociais é imprescindível à formulação, logicamente obedecendo os limites de atuação do juiz, de prestações socialmente justas e, consequentemente, à efetivação do direito de acesso à Justiça cidadã. Novamente, cita-se as palavras inspiradas de Boaventura: “na concepção convencional busca-se o acesso a algo que já existe e não muda em consequência do acesso. Ao contrário, na concepção que proponho, o acesso irá mudar a justiça a que se tem acesso” (SANTOS, 2007, p. 33).

A avaliação de desempenho do magistrado precisa também ser repensada. No capítulo anterior, restou claro que a celeridade não deve ser buscada como um fim em si mesma, uma vez que a novíssima acepção do direito de acesso à justiça prioriza a qualidade sobre a quantidade de Justiça. Infelizmente, os magistrados continuam a ser avaliados pelo número de processos finalizados por mês, sendo que a meta aspirada, por vezes, não é realista, nem possível de alcançar.

A não razoável limitação de tempo, a saber, realiza um desserviço à qualidade da decisão, enquanto resulta no sacrifício do seu conteúdo e, portanto, da prestação jurisdicional, afinal “eles [os magistrados] não têm tempo para pensar. Não há incentivo, de facto, a que pensem. A que façam pesquisa para poderem produzir uma boa decisão” (SANTOS, 2007, p. 81).

Fora do Brasil, encontram-se propostas de reforma que lograram relativo êxito nos respectivos procedimentos judiciais. Talvez, dessas experiências, possa-se importar alguma lição aplicável à realidade brasileira.

Em sua maioria, centram em admitir uma postura mais ativa do magistrado e um caráter mais informal do procedimento, de maneira a minimizar a distância entre partes desiguais. Nos Estados Unidos (EUA), o sistema de neutralidade judicial já sofre críticas

consideráveis. Na Alemanha, o sucesso do Modelo Stuttgart, alicerçado na promoção de um diálogo oral e ativo entre juiz, partes e advogados, inspirou modificações do Código de Processo Civil daquele país. Em verdade, sob as diretrizes do modelo acima, produzem-se decisões céleres e aprovadas pelos dois polos, aprovação essa manifesta na frequência das abstenções de recorrer (CAPPELLETTI, 1988, p. 78).

Finalizando a análise do Poder Judiciário, cumpre reforçar o posicionamento ora esposado de que é aconselhável coadunar a solução judicial com as suas alternativas a fim de obter o máximo acesso. Nenhuma medida basta por si só: o Judiciário, como visto, precisa superar barreiras própria se pretende adequar-se às exigências do novíssimo conceito de acessibilidade. Boaventura (SANTOS, 2007, p. 34) descreve, precisamente, o impasse a frente do sistema judicial.

O sistema judicial está, hoje, colocado perante o seguinte dilema. Se não assumir a quota-parte da sua responsabilidade, continuará a ser independente de um ponto de vista corporativo, mas será cada vez mais irrelevante tanto social como politicamente. Deixará de ter aliados na sociedade e isolar-se-á cada vez mais. Se, pelo contrário, assumir a sua quota de responsabilidade, politizar-se-á e, com isso, aumentará o nível de tensão e conflito, quer internamente, quer no relacionamento com outras instâncias de poder.

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