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A S CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA DE SAÚDE : ENTRE O DISCURSO E AS PRÁTICAS PARA A SUSTENTABILIDADE DO SUS (R EFORMAS E C ONTRARREFORMAS )

POR REGIÃO DE SAÚDE

4.2 A S CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA DE SAÚDE : ENTRE O DISCURSO E AS PRÁTICAS PARA A SUSTENTABILIDADE DO SUS (R EFORMAS E C ONTRARREFORMAS )

As contradições que se revelam e que aqui se pretende tratar despontam pelos conflitos e pelos projetos em disputa ao longo da consolidação do SUS, um sistema público, complexo e que, por isso mesmo, ainda não deu conta de todas as garantias preconizadas na CF de 1988. Na área da saúde, esses projetos expressam as tensões entre as pautas da Reforma do Estado e as da Reforma Sanitária, portanto, de reformas e contrarreformas.

O SUS é um sistema que propõe a universalidade e a equidade, mas, ao mesmo tempo, precisa materializar-se em uma realidade de incomensuráveis diferenças, tanto na questão da dimensão geográfica e suas múltiplas situações, quanto na ausência de uma política de desenvolvimento econômico e social que dê guarida ao conjunto de demandas e tensões por políticas sociais, já que nunca se desenvolveu no Brasil o Estado de Bem-Estar Social tal qual nos países desenvolvidos. E isso tudo ocorrendo em um cenário com “[...] mercados privados dinâmicos e em ascensão, que disputam os recursos do Estado e das famílias, espoliam a

possibilidade de consolidação de um sistema de saúde de fato único e igualitário, reiteram a estratificação e as desigualdades sociais” (MACHADO et al., 2017, p. 5159).

As disputas são constantes, com destaque para os grupos empresariais com interesse na expansão da mercantilização da saúde em geral. Os níveis de atenção secundária e terciária são os maiores beneficiados com a distribuição dos recursos, e vale observar-se o conteúdo do Relatório do Banco Mundial, elaborado a pedido do Governo Federal, denominado “Um ajuste

justo: Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, que conclui que o País

gasta mais do que arrecada e aloca seus recursos de maneira pouco eficiente, ressaltado pelo economista-chefe do Banco Mundial para o Brasil e também o principal autor do relatório Antonio Nucifora.

Nos meandros da gestão, as práticas comuns assumidas pelos prestadores são de resultados insatisfatórios, tencionando a gestão de tal forma que muitas vezes ela se torna refém e acaba por conceder os pleitos pretendidos. O que é preciso que se entenda é que isso se refere a dinâmica de mercado, assim como a ausência de uma política consistente de monitoramento, controle e avalição pela gestão. Isso determina a necessidade de romper com os interesses cristalizados e a cultura de que os resultados tanto qualitativos como quantitativos não representam um problema substancial, posto que essa realidade torna ainda mais complexo a garantia dos direitos à saúde.

Por isso, não é possível se concordar com a afirmação pelo representante do CNS de que não existe interesse da iniciativa privada no SUS, conforme argumenta quando trata do cálculo

per capita, diário do SUS para atender a população “[...] por R$ 3,00 não haverá ninguém no

setor privado disposto a prestar serviço por esse preço” (ALRGS, 2017). Existe o interesse claro do mercado, que tenciona pela oferta e que pelo poder de barganha que possui atinge seus objetivos, conforme pode ser observado pelos dados da Tabela 04.

Os dados da Tabela foram extraídos do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), de alimentação obrigatória e acesso público, e que é um instrumento para o acompanhamento do cumprimento do dispositivo constitucional, que determina a aplicação mínima de recursos em ASPS.

Tabela 4 - Inflação anual e acumulada, valores transferidos pela União, despesas de custeio da SES, despesas com pessoal e encargos sociais, percentual de repasses para municípios a título de APS, repasse para AHA pelo Tesouro do Estado e percentual de variação , 2012 - 17 ANO INFLAÇÃO ACUMULA DA (%) TRANSFERÊNCIA DA UNIÃO (R$) DESPESAS CORRENTES (CUSTEIO) (R$) DESPESAS DE PESSOAL E ENCARGOS SOCIAIS (R$) VALORES REPASSADOS AOS MUNICÍPIOS (R$) REPASSE PARA AHA (R$) A 2012 5,84 896.143.601 3.259.033.903 895.173.129 305.924.458 808.730.670 2013 5,91 880.333.929 2.356.358.039 1.119.930.167 397.252.769 2.062.292.703 2014 6,41 937.590.355 2.653.933.670 1.216.894.975 226.858.823 2.408.873.412 2015 10,67 866.768.811 2.773.919.704 1.375.673.108 172.455.487 2.373.009.350 2016 6,29 841.362.783 3.025.259.033 1.354.449.392 292.639.232 2.404.919.801. 2017 2,21 799.247.379 3.247.743.642 1.1.315.715. 270.272.434 2.701.498.605 Variação% 44,57 17,86 0,34 46,97 78,34 234,04

Os dados do Tabela 04 mostram que o custeio da SES, que envolve despesas para o funcionamento da máquina, embora represente o maior valor de desembolso de recursos em termos de valores, teve a menor variação, ou seja, de 0,34%. As despesas com Pessoal e Encargos sociais foi de 46,97% e apresentaram uma pequena variação acima da inflação acumulada. Os valores de transferências aos hospitais representaram uma variação de 234,04%, enquanto os repasses aos municípios tiveram uma variação de 78%, de qualquer forma, bem acima da inflação acumulada para o período. Mesmo que se trate de um setor que incorpora tecnologias facilmente, existem dificuldades reais de regulação assistencial e de acesso, seja como for “[...] incrementos na inclusão, no acesso, na qualidade exigem cuidado racional com o gasto e combate ao desperdício.” (COELHO, 2016, p.24). Isso significa, portanto, que é preciso o equilíbrio entre receita e despesa, ou seja, a preocupação deve ser com o que e como gastar. Por outro lado, deve-se observar, também, o consenso, a partir de robustas evidências já apresentadas, de que os sistemas de saúde devem se organizar a partir da APS.

Consideram-se ainda contradições as narrativas sobre a sustentabilidade do SUS e as práticas de gestão que atribuem ao financiamento a centralidade e seu maior problema. A representação do CNS na audiência afirma que “[...] a discussão não pode ficar limitada aos chamados problemas de gestão” (RIO GRANDE DO SUL, 2017). Ele avança na análise afirmando que “[...]a saúde sempre é olhada como uma área em que, quanto mais dinheiro se põe, mais vai para o ralo” (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

Os problemas de gestão do SUS decorrem também da crise crônica de financiamento, mas não só, o que exige dos entes federados a busca pelo incremento da eficiência do Sistema. Corrobora com essa leitura o diagnóstico de que a eficiência100 média dos serviços primários de saúde é estimada em 63% (ou seja, uma ineficiência de 37%) e que seria possível reduzir os gastos em 23% na saúde primária mantendo os mesmos níveis de resultados. Por outro lado, o aumento da alocação de recursos teria pouca probabilidade de melhorar o desempenho, pois a maior parte dos municípios também apresenta baixa produtividade, o que indica problemas de gestão. Por fim, a ineficiência está concentrada nos municípios menores e aplica-se a uma pequena parcela das despesas de saúde, pois na verdade, as despesas estão concentradas nos

100A análise utilizada foi a Envoltória de Dados (Data Envelope Analysis, (DEA), um método não paramétrico para estimar as fronteiras de produção. Segundo a metodologia DEA, desenvolvida formalmente por Charnes, Cooper e Rhodes (1978), a eficiência é definida como a razão entre produtos (output) e insumos (input), e a fronteira representa o nível máximo de produtos que pode ser produzido com base nos insumos e tecnologias disponíveis.

grandes municípios (onde vivem mais pessoas) e que são mais eficientes. (BANCO MUNDIAL, 2017).

Para determinar a ineficiência, dentre as variáveis apresentadas, o Banco afirma que ela resulta principalmente da fragmentação do sistema público de saúde. Por isso, A importância da organização da rede de atenção à saúde, pode ser traduzida como a articulação dos pontos de atenção necessários para atender às demandas da população, assim como a clara definição das referências, o papel da APS nesse processo e do processo regulador do Estado. Dessa forma, são inúmeras as variáveis que vão reverberar na qualidade do acesso e da acessibilidade ao SUS, portanto, na saúde da população. Em consequência, exigirá um diálogo amplo, incluindo os três entes federativos, conselhos de saúde, movimentos sociais, sindicatos e muitos outros grupos. Acredita-se que quanto antes o País se debruçar e iniciar esse debate, enfrentando seus problemas, mais cedo será possível transformar essa realidade. E, uma questão central é Gastar

Mais ou Melhor?

As categorias iniciais da análise de conteúdo que se revelaram no processo de pesquisa estão associadas ao “[...] financiamento e suas múltiplas dimensões (financiamento integrado, subfinanciamento, desfinanciamento) e sua incapacidade de responder as demandas, a necessidade de buscar novas fontes estáveis de financiamento, um financiamento adequado e uma melhor partilha de recursos entre os entes federados” (RIO GRANDE DO SUL, 2017). Não tratam de inverter a lógica de estruturação do sistema, portanto de organizar o SUS a partir das necessidades de saúde da população, de uma atenção organizada para o perfil de transição demográfica e o perfil epidemiológico do País, adotando práticas de gestão que potencializem os resultados. Por isso, é importante responder aos questionamentos feitos durante uma das audiências públicas [...] para que queremos mais recursos para o SUS? Esse questionamento também precisa ser incorporado ao debate. Para quê? Para assegurar a mudança no modelo de atenção, para que a atenção básica seja ordenadora do cuidado e para valorizar os servidores públicos” (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

Pretende-se aqui problematizar a gestão e o financiamento para a APS a partir dos resultados da pesquisa, utilizando-se a Macrorregião Metropolitana de Porto Alegre como amostra sob o olhar quanto à condução dos sistemas municipais de saúde, enfatizando a gestão financeira e o acesso. Inicia-se essa análise ressaltando que tanto o gestor federal quanto o

estadual não aplicam os percentuais mínimos em ASPS por ente federado,101 conforme análise dos Conselhos de Saúde (Nacional e Estadual), o que os coloca em uma posição de não cumprimento das suas funções constitucionais e, portanto, sujeitos aos desdobramentos políticos e sociais decorrentes (COELHO, 2017).

A gestão estadual em nenhum dos anos da série histórica de 2012 a 2017 aplicou os 12% da receita, segundo o Conselho Estadual de Saúde, que questiona os gastos e indica aqueles que são controversos, também explicados no terceiro capítulo. Entretanto, o auditor do Tribunal de Contas do Estado, na audiência pública, explica que eles passaram “[...] a acompanhar as aplicações do gestor estadual do RS e junto aos Municípios Gaúchos em Ações e Serviços Públicos de Saúde. As aplicações do Estado do RS, no período de 2001-2016, foram baseadas na EC Estadual nº 25/1999102[...]” (RIO GRANDE DO SUL, 2017), logo, utilizando o percentual de 10%, não atendendo ao que é definido na legislação federal. Já para os municípios, as aplicações obedeceram, conforme o Tribunal, “[...] a Emenda Constitucional 29 de 2000 e a Lei 141 de 2012” (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

Essa perspectiva pode ter uma dimensão jurídica, considerando-se que a Emenda Constitucional 29 não foi aplicada, pois pelos cálculos do CES, em nenhum ano da série histórica apresentada (2012-17) atingiu 10%, exceto em 2013. Sobre esse ponto, em relação à aplicação dos percentuais mínimos, também a Promotoria de Justiça do Ministério Público discorda do TCE, afirmando que a análise feita pelos auditores e que depois é encaminhada ao Ministério Público de Contas, muitas vezes não é ali acolhida, mas é contrariada pelos Conselheiros do Tribunal de Contas, conforme o argumento a seguir:

Os conselheiros podem dizer que foram apontados problemas, mas que entendem que foram explicados e então se acolhem as contas. O Ministério Público do Estado não está vinculado a isso. Isso é uma ferramenta, um entendimento do Tribunal de Contas, que por diversas vezes aconteceu e que a gente não concorda. Em virtude disso, nós ajuizamos ações em anos repetidos, tivemos acolhimento do Judiciário, e o que ocorre é que sempre que chegamos nos tribunais superiores é dito que, apesar de termos razão, que tal situação não deveria ter sido posta como percentual da saúde, não há possibilidade de agora, após um determinado tempo, nós repormos isso, porque iríamos quebrar o Estado [...] (RIO GRANDE DO SUL, 2017).

101 No Capítulo 3, consta a discussão e os dados do Estado.

102No artigo 1, Parágrafo 3.º; O Estado deverá aplicar em ações e serviços de saúde, no mínimo 10% (dez por cento) da sua Receita Tributária Líquida, excluídos os repasses federais oriundos do Sistema Único de Saúde, considerando ações e serviços de saúde os Programas Saúde no Orçamento do Estado.

Esse argumento citado pela Promotoria de Justiça em relação ao Judiciário de que embora o Ministério Público tenha razão, não é possível acatar como percentual da saúde, pois nessa perspectiva e o tempo demandado o Estado quebraria, caso tivesse que aplicar de forma retroativa os recursos. Tal posição coaduna com outros setores da administração pública contrários aos recursos cativos103.

“No campo político-partidário-ideológico, à direita ou à esquerda, não faltam defensores de posições contrárias às estratégias que promovam a vinculação de recursos a qualquer área das políticas públicas” (TEIXEIRA, 2004, p.91). Talvez por isso possa ser explicado por que o Conselho Estadual de Saúde não aprova os Relatórios Anuais de Gestão (RAG) da SES/RS, pelo fato de o Estado não cumprir os percentuais mínimos e essa pauta ser encaminhada para as diferentes instâncias de controle e sem nada acontecer.

No contexto do argumento de que os recursos não são suficientes e de que existe subfinanciamento na saúde, o CNS afirma que o diagnóstico sobre as dificuldades relacionadas a problemas de gestão é uma “falsa questão”, por isso justifica que os recursos diários para a saúde são ínfimos e questiona se o problema real é “mais gestão ou mais recursos?” (RIO GRANDE DO SUL, 2017). Nessa lógica, é presumível que os gestores municipais tivessem como estratégia a maior captação possível de recursos variáveis, tanto no Governo Federal como no estadual, assim como a utilização da totalidade dos recursos pelos outros entes federados. Por essa linha de raciocínio, realizou-se uma avaliação dos recursos variáveis da SES para a APS e a sua captação104 pelos municípios, conforme Quadro 06.

Os incentivos criados para cofinanciamento da APS no RS têm sustentado o modelo da ESF como o modelo a ser priorizado para a organização do cuidado e do SUS, por ser ele estratégico para o fortalecimento da APS e de seus resultados. Por isso, o cofinanciamento estadual apresenta, a exemplo do Governo Federal, diferentes incentivos atrelados a essa estratégia.

103Com relação ainda aos recursos cativos a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) na Carta Compromisso que encaminhou aos candidatos nesta última eleição, apresenta 10 pontos considerados fundamentais para a melhoria da saúde no Brasil, sendo o primeiro deles “Acabar com o teto de gastos em educação e saúde”, e segundo “[...] ampliando o investimento no SUS com prioridade para as regiões com vazios assistenciais.” O primeiro compromisso em um momento de disputas tão complexo, de crise, com um ajuste fiscal sob essa política também é extremamente temerário tal sugestão, pois serão necessárias disputas inclusive com os outros setores no sentido de garantia da continuidade dos recursos. Se mesmo a existência de dispositivo constitucional não é suficiente, como seria então caso tivesse a desvinculação de recursos pretendida.

104 A abrangência do levantamento foi o da amostra, pois o interesse da pesquisadora é também avaliar se os recursos de cofinanciamento impactam em resultados.

Todo o esforço do Governo Federal e do estadual em ampliar e consolidar a Estratégia de Saúde da Família com ênfase nos atributos essenciais e derivados da APS105 está embasado na compreensão de que essa estratégia poderá ser decisiva para a materialização do SUS, pelo seu potencial organizativo do sistema.

Quadro 6 - Recursos do Tesouro do Estado pagos pela SES/RS, a título de incentivos para APS, como cofinanciamento aos municípios, conforme descrição

INCENTIVO FONTE VALORES R$ CAPTAÇÃO

PELA MACRO