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3 O SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO: SEUS ASPECTOS ORGANIZATIVOS E OPERATIVOS, DILEMAS E CONTRADIÇÕES

3.5 DIMENSÃO ECONÔMICA

Essa dimensão envolve as questões do modelo de financiamento do Sistema de Saúde. O assunto sobre financiamento permaneceu sob o domínio historicamente da área econômica e das instâncias de orçamento, planejamento e gestão das organizações governamentais, entretanto é um modelo que precisa ser compreendido e debatido. Trata-se nesse contexto, de importante disputa de poder e, justamente, por isso, esteve o tema concentrado durante muito tempo com alguns setores e, que justamente tem contestado a existência de recursos cativos.

A partir de 1988, o sistema de saúde brasileiro utilizou diferentes mecanismos de financiamento, no entanto “[...] ainda persistem as dificuldades para atingir o volume de recursos necessários à melhoria dos serviços ofertados à população” (BRASIL, 2013, p.7). As importantes crises do período, ainda conviveram com a perda de recursos e/ou as crônicas dificuldades de organização do sistema, dos serviços, bem como a qualidade do gasto público nessa área. O contingenciamento adotado para a busca do equilíbrio das contas tem ocorrido sucessivamente à custa das políticas sociais na forma de cortes orçamentários.

Por outro lado, ainda, assiste-se à reorientação do papel do Estado, influenciado pela Política de Ajuste Neoliberal, enquanto um movimento de contrarreforma, que parte do pressuposto de que o Estado se afastou de suas funções básicas ampliando sua presença no setor produtivo e, por isso colocando em risco o modelo econômico. Sua estratégia e discurso consideram o esgotamento do modelo estatizante e da administração burocrática, isso tudo a favor de um modelo focado na descentralização, na eficiência, no controle de resultados e na redução dos custos. (BRAVO, 2000). A cautela e atenção são necessárias considerando que a estratégia utiliza um discurso, neste caso, que acaba por encontrar eco uma vez que utiliza um dos princípios do SUS (descentralização), bem como da administração pública (eficiência) e o

atendimento dos demais pelas orientações das auditorias operacionais interna e externa, para justificar seu diagnóstico e, por isso, também é importante observar-se o entendimento de custo na área pública, diferenciando-o de despesa77.

Em que pese tudo isso, também é preciso considerar o aumento de gastos com saúde tanto pelo crescimento da população e ampliação de coberturas do sistema, quanto o alto investimento tecnológico que tem sido feito para atender e acompanhar as mudanças nas práticas de saúde. Somando-se a esse cenário a importante transição demográfica e a mudança do perfil epidemiológico da população mundial, exigindo mais investimentos, mesmo, sob o cenário existente de crise orgânica já desenhada no segundo capítulo.

Entende-se que essa discussão é densa, complexa e não pode ser expressa sob uma única perspectiva, uma vez que são muitos os aspectos que impactam no financiamento. Por isso, neste estudo serão tratados apenas alguns deles, não se pretendendo esgotar o assunto. As outras dimensões já apresentadas nesse capítulo também guardam relação e impacto direto nesta última e, por isso mesmo, foram abordadas.

O financiamento representa um dos componentes estruturantes do Sistema de Saúde conformando-se em um ponto essencial para a sustentabilidade do SUS. De modo geral todos os países enfrentam problema semelhante na manutenção de seus sistemas de proteção social, mas particularmente, os que apresentam sistema universal de saúde. Tal debate mantém-se atual e necessário na perspectiva refletir sobre a condução e seus dilemas para garantir os recursos financeiros em volume suficiente, com fluxo certo, assegurando o direito à saúde da população, posto que, a partir do volume de gastos em saúde é possível compreender a prioridade que é dada por cada País a este setor.

77A diferença conceitual entre despesa e custo tem particular interesse no contexto atual. Enquanto a despesa é o desembolso financeiro correspondente a qualquer ato de gestão do governo, o custo mede o consumo de recursos na produção de um bem ou serviço (custo do produto). O custo também mede o consumo de recursos pelas atividades das organizações governamentais (custo da atividade ou de processo). O conhecimento do custo dos serviços públicos é fundamental para o atingimento de uma alocação eficiente de recursos. O desconhecimento dos custos é o maior indicador de ineficiência no provimento dos serviços públicos (NUNES, 1998).

3.5.1 O SUS como sistema universal e seus dilemas

O SUS como um sistema universal é definido pela garantia de cuidado integral (individual e coletivo), exigindo a coordenação entre serviços de diferentes complexidades, com predomínio da administração e prestação públicas de serviços. Essa concepção o difere da cobertura universal em saúde, que foi elaborada pela Organização Mundial de Saúde, a Fundação Rockfeller e o Banco Mundial, voltadas para reformas pró-mercado como redução da intervenção estatal, seletividade e focalização nas políticas de saúde. O debate internacional tem se centrado na polarização dessas duas concepções (GIOVANELLA et al, 2018).

As crises e transformações econômicas, socioculturais e políticas da sociedade brasileira impactam diretamente nos avanços e recuos da consolidação do SUS. E, da luta por um destino comprometido com a redução das desigualdades, em busca de equidade, de direitos e da democracia. A implementação do SUS tem ocorrido de forma heterogênea e descontinuada, isto pelo nível de interesse e pelas cíclicas mudanças dos gestores (CAMPOS, 2018).

Os dilemas do SUS não são distintos de outros países que possuem sistema de saúde com tal característica. As narrativas passam por insuficiência de recursos ou subfinanciamento, dificuldades de fixação de profissionais, fragmentação e integração e universalidade e segmentação de sistemas, as importantes mudanças demográficas e epidemiológicas, com a tripla carga de doenças, no caso brasileiro, entre outras.

Os problemas não são poucos, entretanto as questões discutidas no plano macropolítico envolvem segmentação e universalização, tratam, portanto, de disputas que tangenciam políticas sociais que apresentam recortes de focalização mesmo dentro da universalidade e, por outro lado do projeto claro e assumir que a focalização é a alternativa a ser adotada para as políticas sociais.

No plano micro é imperativo que a organização do sistema, ou seja, o modelo assistencial dê conta para atender as demandas em razão das condições de saúde da população e da carga de doenças. Assim, um modelo que apresente respostas às condições agudas e, fundamentalmente, as condições crônicas, mas também, a violência, garantindo o postulado de coerência preconizado por (TESTA, 1992). Essa lógica determina uma qualidade de respostas às demandas do SUS, sem o que não apresentará eficácia e o custo será muito maior.

Sob outra perspectiva, no plano micropolítico as dicotomias em relação a fragmentação e a integração78, ainda ocupam as agendas, mas ratificam as redes de atenção como respostas a essa questão. A constituição de redes de atenção é dinâmica, nunca está concluída, pois como o foco é “usuário centrado”, cada nova necessidade dos cidadãos e não contemplada na rede já existente deverá ser um novo ponto de atenção a ser vinculado a rede existente. Por isso, entende-se que o principal papel dos técnicos hoje é de articuladores de redes de atenção.

Independentemente dos avanços que o SUS tenha percorrido, ainda “[...] permanecem problemas a compreender e a superar. Isso implica desvendar prospectivamente os caminhos desse sistema público [...] (MENDES, 2017, p.93). É preciso considerar que, na história do SUS, nenhum governo realmente priorizou a saúde, possibilitando assim efetivar a completa materialização do sistema. Isto é expresso, pelo frágil embate do Governo Federal aos pontos mais críticos e recorrentes do SUS, sendo eles a política de pessoal, o fluxo entre os 3 níveis e a organização dos níveis secundário e terciário de atenção, entre outros.

A inexistência da definição de diretrizes gerais para as políticas de recursos humanos no SUS, bem como a ausência de respostas regionais frente ao desafio dessa perspectiva, as dificuldades de recrutamento de profissionais médicos, mas também de fixação dos mesmos nos territórios, o despreparo dos profissionais para o exercício das práticas na saúde, o corporativismo desmedido são algumas das características existentes.

No entanto, não existe consenso sobre melhor alternativa a ser adotada para melhorar o provimento e a fixação dos médicos, pois são muitas as experiências no território brasileiro, mas raras com êxito para o tema, porém algumas delas passam pela criação de uma carreira de Estado, pelo menos para os médicos. O Brasil vem adotando uma estratégia desde 2013 para o provimento de médicos e que permanece até o momento, que é através do programa “Mais Médicos”79. Essa estratégia pensou na reordenação da oferta de cursos de Medicina e de vagas para residência médica, priorizando regiões de saúde com menor relação de vagas e médicos por habitante e com estrutura de serviços de saúde em condições de ofertar campo de prática

78 Muitas têm sido as contribuições de pesquisadores sobre essa temática, mas, principalmente, de Mendes (2001).

79 A Lei n. 12.871, de 22 de Outubro de 2013, que Institui o Programa Mais Médicos tem como objetivos diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a fim de reduzir as desigualdades regionais na área da saúde; fortalecer a prestação de serviços de atenção básica em saúde no País; aprimorar a formação médica no País e proporcionar maior experiência no campo de prática médica durante o processo de formação; ampliar a inserção do médico em formação nas unidades de atendimento do SUS, desenvolvendo seu conhecimento sobre a realidade da saúde da população brasileira.

suficiente e de qualidade para os alunos; o estabelecimento de novos parâmetros para a formação médica no País; e a promoção, nas regiões prioritárias do SUS, de aperfeiçoamento de médicos na área de atenção básica em saúde. Para tanto, admite o médico participante e o intercambista, hoje com uma dimensão importante em todo o País.

No Rio Grande do Sul a importância dessa política pública de provimento de médicos para a Atenção Básica e Estratégia de Saúde da Família (ESF) atende aos municípios gaúchos de pequeno porte populacional80, com impacto vital aos mesmos e aos municípios maiores, com aglomerados populacionais de maior vulnerabilidade social e que necessitam com maior intensidade das políticas públicas, considerando que além do recrutamento e seleção ser realizada pelo nível central, ele também está arcando com o impacto financeiros do Programa. Essa política representa hoje o provimento de 60% das Equipes de Saúde da Família do Rio Grande do Sul, envolve 384 municípios aderidos ao Programa, com 1.322 vagas do Programa Mais Médicos no Estado do Rio Grande do Sul.

É praticamente consensual entre especialistas a importância de aumentar a cobertura e a qualidade dos serviços na atenção primária, área que responde pelo atendimento de 80 a 90% dos problemas de saúde nas unidades de saúde. Como porta de entrada preferencial para o SUS, esse modelo favorece atendimento perto do local de moradia e cuidado continuado. O prontuário eletrônico é uma ferramenta que deve estar disponível em toda a rede, entretanto isso ainda não é uma realidade, a distribuição por escala como forma de organização da rede e um sistema de regulação mais bem estruturado tanto para urgência e emergência como para o atendimento especializado e leitos.

Talvez a narrativa mais inibidora (paralisante) delas, considerando as perspectivas para continuar a implementação do SUS, seja o subfinanciamento. Na maioria dos países o crescimento dos gastos em saúde excede o crescimento geral da economia (ROY, 2018). Um dos argumentos mais comuns é de que esse subfinanciamento se inicia com a própria criação do SUS. A criação do orçamento da seguridade social, tendo em sua base a vinculação de impostos e contribuições sobre a folha salarial, lucro e faturamento à Saúde, Previdência e Assistência Social e, a definição da destinação de 30% deste montante direcionado ao gasto do SUS no âmbito federal, consagrado no art. 198 da Constituição Federal não foi suficiente para garantir o repasse integral desses recursos. É preciso considerar que “[...] à definição do

80 Os pequenos municípios no Rio Grande do Sul, ou seja, até 5.000 habitantes representam 44% do total dos municípios gaúchos e, um segundo corte com menos de 10.000 habitantes são 66%.

orçamento da seguridade social estava fadada a fracassar, dado que suas políticas estão fundadas em princípios diferentes, tornando inevitável a disputa de recursos em seu interior na primeira dificuldade” (MARQUES, 2017, p.35). Na outra seção procura-se ampliar a discussão.

3.5.2 Os recursos da Política de Saúde

Para adensar a discussão sobre o financiamento é importante considerar que, se de uma forma existe sim subfinanciamento, de outra é possível melhorar o escopo dos gastos. É justamente sob essa perspectiva que se assenta esta tese.

O Brasil em relação ao seu PIB gasta em saúde tanto quanto a média entre os países da OCDE e mais do que seus pares econômicos e regionais.81 O gasto total com saúde no Brasil (9,1% do PIB) é comparável à média dos países da OCDE (9%) e superior à média de seus pares estruturais e regionais (6,7% e 7,2%, respectivamente).

Sob outra perspectiva, ao contrário da maioria de seus pares, menos da metade do gasto total em saúde no Brasil, mais precisamente 42%, é gasto público (IBGE, 2018). Este percentual é significativamente inferior à média entre os países da OCDE (73.2%) e aos países de renda média comparáveis ao Brasil (59%), apenas acima da média dos países dos países do grupo BRICS (46%)82 (ARAÚJO, LOBO, 2018). Por isso, a análise não pode ser feita pelo total gasto sem desagregar o gasto privado em relação ao público, que no Brasil, o gasto privado tem sido maior que o público, pois nos países mencionados os percentuais são gastos diretamente pelo governo. O gasto per capita no setor público (R$1.131,94) representa 75% do gasto per capita no setor privado (R$1.538,70) (IBGE, 2018).

A partir das informações contidas na Tabela 1 – demonstra-se a participação do gasto total de saúde em relação ao PIB, de 2000 a 2015, incluindo o gasto privado (famílias e instituições sem fins de lucro) e o do governo. Essa Tabela traz resultados importantes para serem analisados.

81Os pares econômicos são os países de renda média e os regionais, países da América Latina como Chile, México e Colômbia.

Tabela 1 - Participação percentual do consumo final de saúde no PIB – 2000 a 2015

ANOS

FAMÍLIAS E INSTITUIÇÕES