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3 O SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO: SEUS ASPECTOS ORGANIZATIVOS E OPERATIVOS, DILEMAS E CONTRADIÇÕES

3.1 LEGISLAÇÃO ESTRUTURANTE DO SUS

Os quase 30 anos desde a criação do sistema de saúde no Brasil não foram suficientes para garantir a implementação de todos os princípios constitucionais preconizados para a política de saúde. Nesta última década, foram introduzidas mudanças importantes em relação às diretrizes, regulamentações, execução financeira e orçamentária, traduzindo-se parte delas em um realinhamento do modelo para atingir tais princípios e algumas atenderam aos interesses de diferentes grupos. A seguir, sintetizam-se as principais mudanças ocorridas, na primeira década deste século, da Legislação Complementar ao Marco Legal do SUS (Quadro 02). Quadro 2 - Legislação Complementar ao Marco Legal do SUS, 2010 – 2017

ANO LEIS, DECRETOS E PORTARIAS

2010 - Portaria n. 4.279, de 30 de dezembro de 2010, que estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde.

2011

- Decreto n. 7.508, de 28 de junho de 2011, que regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa e dá outras providências.

- Portaria n. 2.488, de 21 de outubro de 2011, que cria a Política Nacional de Atenção Básica.

2012

- Lei Complementar n. 141, de 13 de janeiro, de 2012, elaborada com o intuito

de regulamentar a Emenda Constitucional 29, publicada em 13 de janeiro de 2012 e que dispõe sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo, além de revogar os dispositivos das Leis nº 8.080/90 e nº 8.689/93.

2017

- Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017, estabelece a revisão de diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) no âmbito do Sistema Único de Saúde.

FONTE: BRASIL, Legislação Social. CONASS, 2003.

A nova diretriz, publicada em 2010, através da Portaria n. 4.279, define que a organização do SUS ocorra pela Rede de Assistência à Saúde (RAS). Isso altera a conformação

do Sistema, exigindo uma nova dinâmica permanente e, ao mesmo tempo, implicando que os trabalhadores tenham um novo papel, o de articuladores dessa rede. Para tanto, tal mudança prevê um papel importantíssimo para a APS como o centro de comunicação da rede, devendo contribuir para o processo de regulação do acesso a partir da APS. Contudo deve considerar a prevalência de problemas de saúde de pessoas que vivem em um determinado território, realizando a gestão das filas de espera garantindo um planejamento ascendente nessa área. Esse arranjo como forma de funcionamento dos serviços de saúde atende o que preconiza a Política Nacional e a Constituição Federal, com diretrizes explícitas nessa direção, tais como a hierarquização, a regionalização, o planejamento ascendente e a integralidade da atenção.

Essa estratégia RAS é antagônica às práticas cristalizadas e aos interesses sedimentados que caracterizam historicamente a organização dos serviços de saúde na sociedade brasileira, ou seja, a oferta pelos interesses do mercado. Dessa forma, a conformação de rede como resposta provoca uma inversão do modelo48, o que significa que as necessidades da população é que devem demandar serviços, assim a lógica que deve ser reconstruída é a da organização do sistema a partir da demanda e, por conta disso, entendida como “usuário centrada

Sob esse enfoque, o tensionamento da gestão com o mercado é sempre presente, implicando a existência de estratégias de monitoramento e avaliação do sistema. Essa inversão trata da organização de um movimento contra-hegemônico no sentido de romper com aquela forma de organização dos serviços e do modelo biomédico instituído e praticado no País até 198849, o qual polarizava o curativo e o preventivo, o individual e o coletivo, com práticas assistenciais intensamente centradas em hospitais e na clínica como forma de compreender a doença, por isso, denominado modelo hospitalocêntrico. Esse tipo de clínica influenciado pela Escola norte-americana via modelo flexneriano, “[...] fundamentado na especialização da medicina orientada ao indivíduo, [teve] profundas repercussões não só na formação médica, mas, sobretudo, na estrutura organizacional e funcional do sistema público de saúde” (SCHERER, M. D. A. et. al., 2005, p. 54)50. Isso implica que, para efetivamente se alterarem

48Os serviços de saúde devem estar organizados a partir de uma rede de cuidados articulada, com fluxos conhecidos e regulados, cujo objetivo é acolher necessidades sentidas por usuários, gestores e sociedade, definidas por critérios epidemiológicos, econômicos e culturais (ELIAS, 2004).

49Amparado na Lei no 6.229, de 17 de julho de 1975, que tratava da organização do sistema de saúde.

50O uso do termo flexneriano origina-se de análises sobre o processo de trabalho em saúde. Há estudos que buscam entender a organização do trabalho em saúde a partir de um referencial de análises sociológicas, observando as similitudes e as diferenças entre o trabalho típico de produção artesanal e a divisão do trabalho do modo capitalista de produção.

as formas de organização dos serviços necessário, será preciso mudar a lógica da formação do profissional médico, no entanto esse movimento deverá ocorrer na formação de todos os trabalhadores da área da saúde, constituindo-se num processo contra-hegemônico.

A RAS não é uma proposta técnica nova, pois já era conhecida desde 1920, com a publicação do Informe Dawson, que criou o modelo por solicitação do governo inglês e como resultado de um grande debate de mudanças no sistema de proteção social depois da Primeira Guerra Mundial51 (Informe Dawson, 1964). No Brasil, esse movimento para repensar o modelo a partir de experiências internacionais, só ocorreu tardiamente, e colocado em prática nas primeiras décadas deste século. Portanto, o modelo criado por Dawson guarda relação com o preconizado na proposta brasileira de redes.

Outras experiências nessa mesma direção foram registradas na última década do século passado, nos Estados Unidos, que recuperaram a definição clássica de sistemas integrados de saúde e definiram uma configuração para a estrutura da rede (SHORTELL et. al.,1995a; SHORTELL et. al., 1995; TODD, 1996; YOUNG E MCCARTHY, 1999). Assim, o Brasil, assumiu a necessidade de reorganizar o Sistema de Saúde para garantir a sua implementação, sustentabilidade e evitar a fragmentação52, priorizando a APS como porta de entrada preferencial do sistema (primeiro acesso) e o centro de comunicação com os demais níveis e tecnologias disponíveis.

A regulamentação do SUS, através do Decreto n. 7.508, só ocorreu 28 anos após a promulgação da Lei nº 8080, que criou o SUS, o que demonstra claramente a correlação de forças e disputas no cenário de conquistas avançadas na Constituição. Embora tais conquistas tenham sido concebidas no texto constitucional, não se materializaram, pois, a ideologia presente na condução do País as negava por princípio. O decreto ratifica a lógica das redes complementando o modelo, com foco também na organização dos espaços de gestão interfederativa e de governança no Sistema.

As portarias da última década, uma que criou e a outra que alterou a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), confirmaram as redes de atenção e o município como o executor

51Sua missão era buscar, pela primeira vez, formas de organizar a provisão de serviços de saúde para toda a população de uma dada região.

52 “Os sistemas fragmentados de atenção à saúde são aqueles que se desorganizam por meio de um conjunto de pontos de atenção à saúde, isolados e incomunicados uns dos outros e, que, por consequência, são incapazes de prestar uma atenção contínua à população, garantindo os princípios do SUS” (BRASIL, 2015a, p.23).

da APS, garantindo a descentralização do sistema e das ações, conforme prevê o Decreto nº 200, de 1967. Reafirmam a APS, de forma clara, como a responsável pelo cuidado e ordenadora da rede, com papel importante, senão fundamental, nessa organização, suas operações e nos fluxos.

No que diz respeito à mudança da Política Nacional de Atenção Básica em 2017, embora tenha provocado muita polêmica, pois o debate com a sociedade não foi suficiente e muito menos com o Conselho Nacional de Saúde, em que pese o Ministério da Saúde ter feito uma consulta pública, mas que também foi criticada por ter sido rápida, os resultados eram os esperados pelas discussões travadas durante meses com os estados sobre os eixos das mudanças a serem consolidadas. As mudanças mais significativas que ocorreram foram:

- a inclusão do Agente de Combate a Endemias (ACE), qualificando o trabalho de vigilância na AB;

- a definição de composição de uma equipe mínima e de carga horária para a Atenção Básica, o que não é de todo ruim, pois deve ser garantido um atendimento ampliado em relação ao atual;

- a determinação de carga horária de 40h para todos os profissionais da ESF, fez com que perdesse a disputa pelo fracionamento da carga horária, bem como os cirurgiões dentistas que pleiteavam a mesma configuração de carga horária dos médicos da Portaria anterior;

- a determinação de que o número de ACS e ACE, por equipe, deverá ser definido de acordo com a base populacional (critérios demográficos, epidemiológicos e socioeconômicos) em nível local. Esse ponto trata da principal mudança da nova portaria, pois possibilita ao gestor municipal a definição quantitativa, demonstrando que o tensionamento feito pelos gestores surtiu efeito, mesmo com todo o movimento dos profissionais e de suas entidades representativas;

- a qualificação na descrição das ações em saúde a serem desenvolvidas por todos os profissionais da Atenção Básica, ressaltando a gestão das filas de espera, evitando a prática do encaminhamento desnecessário, com base nos processos locais de regulação, e segurança do paciente, propondo medidas para reduzir os riscos e diminuir os eventos adversos.

Nesse sentido, ressaltam-se os aspectos organizativos, operativos e os fluxos mais importantes do SUS extraídos dessa legislação e que imputam complexidade ao sistema e a importância fundamental a quem conduz esse processo de ter a compreensão desse escopo e de

tais princípios em movimento. Nessa lógica, apresentam-se, a seguir, os princípios organizativos, bem como os fundamentos, os atributos e os componentes da RAS.