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Contrato de trabalho e o suporte fático da norma de direito fundamental atribuída

4. AMPLITUDE DAS OBRIGAÇÕES DO EMPREGADOR FRENTE AO DIREITO

4.8. Contrato de trabalho e o suporte fático da norma de direito fundamental atribuída

A conclusão da ponderação torna evidente que o contrato de trabalho não é a fonte dos direitos fundamentais colidentes na hipótese tratada, razão por que a obrigação patronal enunciada não tem natureza contratual, mas, sim, extracontratual.

Todo o processo de ponderação, associado à definição das amplitudes subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais colidentes, enfatizou a centralidade do contrato de trabalho para as delimitações atinentes às possibilidades fáticas e jurídicas que orientaram a precedência condicionada, a lei de colisão e, por consequência, o suporte fático da regra que figura como norma fundamental atribuída ao caso em tela.

365ALEXY, Robert. op. cit., p. 594. 366Id. Ibid., p. 599.

Neste ponto, a clássica noção doutrinária de suporte fático auxilia, ainda que no plano exclusivamente didático, a compreensão do contrato de trabalho como ocasião do surgimento da obrigação enunciada, mas não como seu fundamento jurídico.

Segundo Pontes de Miranda, suporte fático é “aquele fato, ou grupo de fatos que o compõe, e sobre o qual a regra jurídica incide”, anotando:

Já aí começa a função classificadora da regra jurídica: distribui os fatos do mundo em fatos relevantes e fatos irrelevantes para o direito, em fatos jurídicos e fatos ajurídicos”, de jeito que “fato jurídico é o suporte fático que o direito reputou pertencer ao mundo jurídico.367

Há suportes fáticos singelos e os há complexos, compondo-se estes com vários elementos, ao menos um dos quais é estruturalmente nuclear, conquanto sejam todos, cada qual a seu modo, igualmente indispensáveis para que se possa reconhecer a existência, a validade, quando for o caso, e a eficácia do fato jurídico que resulta da incidência sobre eles da norma jurídica que os contempla como hipótese passível de concretização no mundo empírico.

Estendendo a todo fato jurídico a noção de “elementos volitivos completantes”, apresentada por Pontes de Miranda a propósito do negócio jurídico368, Marcos Bernardes de Mello adota a seguinte classificação dos elementos do suporte fático:

[...] há fatos que, por serem considerados pela norma jurídica essenciais à sua incidência e consequente criação do fato jurídico, se constituem nos elementos nucleares do suporte fático, ou, simplesmente, no seu núcleo. Dentre esses há sempre um fato que determina a configuração final do suporte fático e fixa, no tempo, a sua concreção. [...] Esse fato configura o cerne do suporte fático.

Além do cerne, há outros fatos que completam o núcleo do suporte fático e, por isso, são denominados elementos completantes do núcleo.

Os elementos nucleares do suporte fático têm sua influência diretamente sobre a existência do fato jurídico, quer dizer: a sua falta não permite que se considerem os fatos concretizados como suporte fático suficiente à incidência da norma jurídica. [...]

Da mesma maneira, se a falta é de elemento completante.369

367MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1970. t. 1, p. 19-20.

368Id. Ibid., t. 3, p. 12-23.

369MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: (plano da existência). 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 45-46. Destaques do original.

Em suma, a ausência do elemento ou dos elementos nucleares do suporte fático impede a configuração do fato jurídico e, consequentemente, obsta à incidência da norma que o programa em sua hipótese.

O manejo desses conceitos permite asseverar que o ato de migrar é o cerne e o contrato de trabalho é “elemento completante” do suporte fático da regra revelada ao final do processo de ponderação que serviu à superação do conflito ocorrente entre os dois direitos fundamentais que ocupam este estudo.

O contrato de trabalho, de sua parte, é negócio jurídico minimamente exposto à influência da autonomia da vontade privada, por isso mesmo que sua caracterização, decorrente dos arts. 2.º e 3.º da CLT, faz-se seguir de sua submissão a um plexo de disposições de inegável natureza cogente; entre estas, todavia, não há, por ora, nenhuma que faça dele irradiar-se o direito à moradia sob a titularidade do empregado.

Atualmente, com o avanço desmedido, irresponsável e ilegal da intermediação de mão-de-obra, travestida do fenômeno da terceirização das relações laborais e vocacionada à ocultação do vínculo empregatício, é fundamental ter o devido cuidado com a conotação (definição) e, sobretudo, com a denotação (abrangência) do contrato de trabalho.

Urge afastarem-se quaisquer concepções reducionistas a respeito das características elementares deste tipo de contrato, em especial a da subordinação. Os setores da construção civil e da agricultura, reconhecidamente empregadores de mão-de-obra migrante temporária, são notórios focos de nocivas práticas de terceirização pelos grandes conglomerados empresariais, acompanhadas de vulneração de direitos trabalhistas.

Sob este prisma, de nada adiantará afirmar a eficácia e a aplicabilidade do direito à moradia do trabalhador migrante temporário, se a norma de direito fundamental atribuída não comportar a correta denotação dos elementos nucleares do seu suporte fático.

Dito de outro modo, a efetividade das conclusões apresentadas reclama uma compreensão jurídica do contrato de trabalho que seja adequada ao momento histórico, para o que se afigura imprescindível repelir-se qualquer visão restritiva do reconhecimento do vínculo de emprego.

Exemplo mais eloquente das consequências de uma visão restritiva do vínculo de emprego é a manutenção do liame entre o empregado e o prestador de serviços claramente inidôneo, dos pontos de vista econômico, administrativo, fiscal, etc., ignorando-se a sua verdadeira subordinação aos grandes tomadores desses serviços, respaldada nas dimensões

fática (condição econômica mais favorecida) e jurídica (art. 9.º da CLT e Súmula n.º 331 do Tribunal Superior do Trabalho).370 Conquanto primordial para a efetividade da solução proposta neste estudo, o enfrentamento desse tema desbordaria dos limites a que se propôs. A situação verificada, em síntese, diz respeito a uma dentre as várias hipóteses em que a relação de emprego tem seus desdobramentos delimitados pelos direitos fundamentais, posições extracontratuais que são. Todo empregado e todo empregador são titulares de direitos fundamentais, independentemente do contrato de trabalho, direitos esses que não são excepcionados em virtude do liame empregatício. Em verdade, nestas circunstâncias, os direitos fundamentais demarcam os verdadeiros limites às relações entre particulares. Tal é o raciocínio que inspira a chamada dos direitos da personalidade a fundamentar mitigações do poder diretivo do empregador (fiscalização, monitoramento, revistas, etc.).371

Por certo que, nos casos em que o empregador ajusta com o trabalhador o fornecimento da moradia e, por isso, submete-se expressamente aos comandos das mencionadas Normas Regulamentadoras e Instruções Normativas do Ministério do Trabalho e Emprego, esta obrigação, nada obstante a sua origem extracontratual, passa a ostentar caráter contratual. Do contrário, está-se diante, ao menos, de uma obrigação extracontratual, que tem no contrato de trabalho “elemento completante” do cerne de seu suporte fático.