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Panorama geral da realização do direito à moradia do trabalhador

4. AMPLITUDE DAS OBRIGAÇÕES DO EMPREGADOR FRENTE AO DIREITO

4.1. Panorama geral da realização do direito à moradia do trabalhador

O princípio insculpido no art. 6.º da Constituição Federal, elevando a moradia a objeto de direito fundamental, traduz um mandamento de otimização, comportando concretização na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto a que tencione aplicar-se.

A análise dessas possibilidades pressupõe, todavia, a identificação da maneira e dos limites de incidência da norma jurídica sobre o direito fundamental à moradia nas relações travadas entre empregado e empregador.

A repercussão dos princípios jurídicos que aludem a direitos fundamentais na órbita privada298 pode operar-se, indiretamente, nos termos de opção do legislador (mediação legislativa), por meio da criação de normas jurídicas específicas; ou, na falta dessa mediação, diretamente, incumbindo ao julgador decidir a esse respeito ao oferecer a prestação jurisdicional.

Em outras palavras, o direito à moradia, porque direito fundamental, pode manifestar-se existente nas relações de trabalho, (i) nos limites das disposições constitucionais e das diretrizes eventualmente já fixadas pelo legislador acerca do assunto, se conformes à Constituição; e (ii) sob os condicionamentos postos por outras normas de direito fundamental acaso igualmente envolvidas no conflito fático a ser solucionado. A investigação desses dois dados circunscreverá o raio de alcance da conclusão jurídica perseguida.

Especificamente quanto às obrigações dos empregadores em relação à promoção e a salvaguarda do direito à moradia do trabalhador migrante, só há em vigor o Decreto n.º 6.271/07 — que promulgou a Recomendação n.º 175 da OIT sobre saúde e segurança na construção civil, cujo art. 52 faz menção ao dever patronal de fornecimento da moradia em certas circunstâncias — e as regras editadas no patamar da competência normativa do Ministério do Trabalho e Emprego (art. 155 da CLT), quais sejam, as Normas Regulamentadoras NR 24 (Condições Sanitárias em geral), NR 18 (Construção Civil), NR

31 (Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aqüicultura), NR 21 (Trabalho a Cèu Aberto) e NR 15 (Trabalhos Submersos), bem como as Instruções Normativas IN 76/09 e IN 90/11. Todas as demais regras que abordam a moradia, no contexto da relação de emprego, fazem-no à luz da sua repercussão salarial299, viés que não se coaduna com a situação fática avaliada.

Diz-se que, em todas as referidas normas e instruções do Ministério do Trabalho e Emprego, não há comandos claros o suficiente para, sozinhos, admitir outra interpretação que não a que condiciona a sua aplicabilidade aos casos em que o fornecimento de habitação é pactuado entre empregador e empregado300; a despeito de sua origem tão apenas negocial, esse ajuste cria para o empregador dever jurídico que só se adimple satisfatoriamente quando atendida a confirmação mínima do direito fundamental à moradia, isto é, sua adequação.

Tem-se de reconhecer, deveras, a inexistência de qualquer mediação legal inequívoca, constitucional ou infraconstitucional, no tocante a obrigações do empregador quanto à moradia dos seus empregados, quando não ajustada, expressa ou tacitamente, no próprio contrato de trabalho que os vincula, no regulamento do empregador ou em acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Em tal circunstância, à exceção das ocasiões em que há disposição patronal voluntária de cumprimento da obrigação, só por via da aplicação direta da norma jurídica que acena com o direito fundamental à moradia poder-se-ão atribuir ao empregado a titularidade e o exercício do correspondente poder jurídico em face do empregador.

A aplicabilidade dessa norma jurídica, sugerida pelo mandamento da concretização do direito subjetivo a que alude na maior medida possível, restringe-se, todavia, pelas possibilidades fáticas e jurídicas peculiares ao caso concreto.

Em uma situação ideal de realização desse direito subjetivo em seu grau máximo, incumbiria ao empregador conceder a todos os seus empregados, de modo individualizado e a título gratuito, a posse direta de imóvel do mais alto padrão de acessibilidade, conforto e segurança, de modo a garantir tout court a plena adequação da moradia.

299Cf. Capítulo 3, 3.6 e Anexos B a F.

300Talvez se possa extrair este comando para o setor da construção civil a partir do art. 52 da Recomendação n.º 175 da OIT, mas isso, repita-se, a depender da interpretação que se dê aos termos “lares”, “casa” e “acomodação”.

O desenho de hipótese como essa não oculta, no entanto, uma entrevista situação de intervenção no direito de propriedade do empregador301, à vista do evidente impacto econômico das providências concretas de fornecimento de moradia ideal, capazes de até mesmo comprometer o exercício concreto de seu direito à livre iniciativa, na medida em que se inviabilize o seu próprio negócio. Sendo o direito de propriedade um direito fundamental igualmente enunciado em norma constitucional com estrutura de princípio jurídico, está-se diante de uma colisão de princípios, a ser imprescindivelmente enfrentada quando da análise das possibilidades fáticas e jurídicas da realização do direito à moradia no caso típico proposto.

O fenômeno da colisão de princípios verifica-se sempre que normas com essa mesma estrutura, se isoladamente aplicadas, levam a resultados inconciliáveis entre si.302 Em termos absolutos, a consagração do direito de propriedade do empregador, que o torne invariavelmente protegido contra a adoção de qualquer medida relativa à habitação dos seus empregados, importa na negação radical do direito à moradia do trabalhador, no contexto da relação de emprego. Ao reverso, a prevalência desse direito à moradia, em sua intensidade máxima, deixa ao empregador a responsabilidade integral pela prestação do mais elevado padrão de moradia a todos os seus empregados, comprometendo fatalmente seu direito de propriedade.

A indicação das providências concretas de cumprimento da obrigação patronal ventilada nesta investigação e a verificação da viabilidade de sua execução prática pressupõem, pois, tenha sido suplantada, a favor da precedência do direito à moradia, a colisão acima identificada.