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Metodologia de aplicação dos princípios de direitos fundamentais

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

1.4. Metodologia de aplicação dos princípios de direitos fundamentais

A aplicação de princípios, máxime quando princípios de direitos fundamentais constitucionalmente referidos, oferece-se dificultada, principalmente no Brasil, por conta da questão terminológica provocada pelo uso do vocábulo “princípio”, em desconformidade com a noção proposta nesta pesquisa e com as distinções nela acatadas quanto à distribuição das normas jurídicas em princípios e regras.90

Não se pode realmente ignorar que a prática jurídica brasileira emprega o termo “princípio” para “conferir importância” a algum conceito, como o da proporcionalidade91,

adiante referido; e isso ocorre por ser da tradição da literatura jurídica pátria definir os princípios como “normas mais fundamentais do sistema”92 e as regras como concretização

desses princípios, por isso que, nestas, há caráter mais instrumental do que fundamental.93 Impõe-se, pois, deixar claro que tal significado não se coaduna com a acepção própria da distinção entre regras e princípios, elaborada por Alexy.94

90Como percebido, no tópico imediatamente anterior, quando da abordagem dos mandamentos de interpretação, chamados por muitos de “princípios”.

91SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 91, n. 798, p. 26, abr. 2002. No mesmo artigo, o autor faz importante distinção histórica e semântica entre os conceitos de proporcionalidade e razoabilidade, tomados, corriqueiramente, como sinônimos, pela doutrina e pela jurisprudência brasileiras.

92Celso Antonio Bandeira de Mello, fiel a essa tradição, tem a seguinte compreensão do que seja princípio: “Princípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2000. p. 747-748). Também Roque Antonio Carrazza, para quem “princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam” (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 17. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2002. p. 33).

93SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino- Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, v. 1, p. 612, 2003. Disponível em: <http://xa.yimg.com/kq/groups/19604888/1457260705/name/Virg%C3%ADlio%20Afonso%20da%20Silv a%20-%20Princ%C3%ADpios.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2011.

94Como explica Virgílio Afonso: “O conceito de princípio, na teoria de Alexy, é um conceito que nada diz sobre a fundamentalidade da norma. Assim, um princípio pode ser um ‘mandamento nuclear do sistema’, mas pode também não o ser, já que uma norma é um princípio apenas em razão de sua estrutura normativa e não de sua fundamentalidade” (SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. p. 613).

Princípios, são, em verdade, mandamentos de otimização, que não guardam hierarquia formal ou material entre si; e disso extraem-se duas conclusões importantes, quais sejam, a inexistência de prevalência absoluta de qualquer deles e sua invariável referência a “ações e situações [a priori] não quantificáveis”95, constatações essas que

conduzem à questão de seu necessário sopesamento ou ponderação96, se aparentarem colidir, bem como da aferição da proporcionalidade97, nas hipóteses de restrição de um princípio por uma regra.

A ponderação se realiza na exigência do exame dos pesos dos princípios acaso colidentes, subjacente à formulação de seu desfecho.98 Se os princípios são definidos como mandamentos de otimização, em face das possibilidades jurídicas e fáticas, à ponderação incumbirá a delimitação das possibilidades jurídicas dessa otimização, pois “quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico”.99

Está a ponderação adstrita à observância da concepção segundo a qual “quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro”.100 Ou, em outras palavras, é a expressiva relevância

da satisfação de um princípio que, no caso, leva à não satisfação de outro.

Submetida a deslindamento, a colisão provocará o estabelecimento de diferença nas intensidades dos efeitos dos princípios colidentes, por conta do final prevalecimento de um

95ALEXY, Robert. op. cit., p. 99.

96A tradução, para o Brasil, da Teoria dos Direitos Fundamentais, de Alexy, faz uso do termo “sopesamento”. Entretanto, aqui será dada preferência para a designação “ponderação”, mais recorrente na doutrina e na jurisprudência brasileiras, ainda que, no mais das vezes, ocorra de forma desalinhada com o sentido empregado naquela teoria.

97Dificuldade terminológica manifesta-se também em torno da noção de proporcionalidade; daí a preferência pela manutenção da expressão “máxima da proporcionalidade”, adotada pela tradução brasileira da obra de Alexy, visando tão somente manter coerência com os pressupostos teóricos da presente pesquisa. Interessante notar que o próprio Alexy classifica, dentro de sua teoria, como regras cada uma das três máximas parciais da proporcionalidade, adiante abordadas: “A máxima da proporcionalidade é com freqüência denominada ‘princípio da proporcionalidade’. Nesse caso, no entanto, não se trata de um princípio no sentido aqui empregado. A adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito não são sopesadas contra algo. Não se pode dizer que elas às vezes tenham precedência, às vezes não. O que se indaga é, na verdade, se as máximas parciais foram satisfeitas ou não e sua não satisfação tem como conseqüência uma ilegalidade. As três máximas parciais devem ser, portanto, consideradas como regras” (Id. Ibid., p. 117).

98“Visto que a aplicação dos princípios válidos — caso sejam aplicáveis — é obrigatória, e visto que para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos” (Id. Ibid., p. 117-118).

99Id. Ibid., p. 117. 100Id. Ibid., p. 593.

deles, nas contingências próprias do conflito tutelado. Fora de outro modo, não teria havido real colisão de princípios, mas, sim, tão só uma harmonização ótima deles, todos em seu ponto máximo.

A extensão dessa prevalência, ou seja, a diferença de intensidades, será fixada conforme as possibilidades fáticas e jurídicas de cada caso, e é por isso que se fala em

precedência condicionada.101

A precedência condicionada pode representar-se pela fórmula “(P¹ P P²) C”, na

qual “P¹” e “P²” representam os princípios colidentes, “P” diz respeito à relação de precedência, e “C” simboliza as condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro.102

A identificação da precedência condicionada, por sua vez, leva a uma consequência jurídica para o caso concreto, conduzindo, em decorrência, à elaboração de uma lei de

colisão. É que o resultado da ponderação entre princípios colidentes acarreta uma regra

(mandamento definitivo), que pode ser representada pela fórmula “C → R”, na qual “C” significa as condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro e “R”, a consequência jurídica decorrente de “C”.103 “C”, assim, constitui o suporte fático da regra

que tem como consequência “R”. Tais condições (“C”), portanto, desempenham dupla função: fundamentam a relação de precedência e, ao mesmo tempo, consubstanciam o suporte fático da regra que, resultante dessa precedência, imputa ao caso certa conseqüência jurídica104e corresponde a uma “norma de direito fundamental atribuída”.105

101“Levando-se em consideração o caso concreto, o estabelecimento das relações de precedências condicionadas consiste na fixação de condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro. Sob outras condições, é possível que a precedência seja resolvida de forma contrária” (ALEXY, Robert. op. cit., p. 96).

102Id. Ibid., p. 96-97.

103“[...] é possível formular a seguinte lei sobre a conexão entre relações de preferências condicionadas e regras: (K) Se o princípio P¹ tem precedência em face do princípio P² sob as condições C: (P¹ P P²) C, e se do princípio P¹, sob as condições C, decorre a consequência jurídica R, então, vale uma regra que tem C como suporte fático e R como consequência jurídica: C → R. Uma formulação menos técnica seria: (K’) As condições sobre as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem precedência” (Id. Ibid., p. 99).

104Id. Ibid., p. 94-99. A noção de suporte fático será retomada e mais detidamente explicitada no Capítulo 4, 4.8, por ocasião do exame da posição do contrato de trabalho dentro da regra pertinente ao problema investigado.

105“[...] como resultado de todo sopesamento que seja correto do ponto de vista dos direitos fundamentais pode ser formulada uma norma de direito fundamental atribuída, que tem estrutura de uma regra e à qual o caso pode ser subsumido.” (Id. Ibid., p. 102).

A lei de colisão é resultado do entendimento dos princípios como mandamentos de otimização106 e intenta dar contornos mais claros à “metáfora do peso”, na forma idealizada por Ronald Dworkin.

Demais disso, as concepções de precedência condicionada e de lei de colisão preservam a ausência de hierarquia a priori entre princípios de direitos fundamentais, sem perquirir a validade jurídica desses princípios. Mantém-se, desse modo, a distinção característica existente entre as modalidades normativas da regra e do princípio, porquanto, diferentemente da decisão do conflito de regras, resolvido no plano da validade, a precedência condicionada estabelece uma preferência à luz de determinadas circunstâncias ou condições.

A partir de conceitos de relação de precedência condicionada e de lei de colisão, que intentam dotar de racionalidade o processo decisório baseado na “pesagem” de princípios colidentes, Alexy pretendeu responder às críticas segundo as quais a teoria dos princípios e a teoria dos valores coincidem107, supostamente abrindo espaço para o “decisionismo”, ou seja, a ausência de quaisquer parâmetros jurídicos para a eleição da solução do caso concreto.

Já a máxima da proporcionalidade é decorrência lógica da natureza dos direitos fundamentais enunciados com a estrutura de princípios108, apresentando-se como técnica de aferição da validade jurídica de uma medida (v.g. uma medida estatal, na forma de lei ou de decisão judicial) que intenta a solução da colisão de princípios. A máxima da proporcionalidade pode ser entendida, pois, como um teste de legalidade a que é submetida a aludida norma de direito fundamental atribuída, resultante do procedimento de ponderação. Tal técnica impõe ao intérprete/aplicador do Direito que aprecie a validade jurídica da medida, investigando as possibilidades fáticas de otimização pelo exame das “máximas parciais” da

adequação e da necessidade, bem como as possibilidades jurídicas de otimização, pela

“máxima parcial” da ponderação ou proporcionalidade em sentido estrito.109

Quanto às finalidades de cada uma das três máximas parciais da proporcionalidade, a tarefa do seu esclarecimento torna-se mais didática quando se tem em mente qualquer medida que, tendo por objetivo a concretização de determinado(s) princípio(s) de direito(s) fundamental(is), restrinja ou intervenha no âmbito de outro(s) princípio(s).

106ALEXY, Robert. op. cit., p. 99. 107Id., loc. cit.

108Id. Ibid., p. 116-117. 109Id. Ibid., p. 118.

Será adequada a aludida medida se for efetivamente apta a, na prática, fomentar ou definitivamente alcançar o objetivo a que se propõe110; será, igualmente, necessária, caso “a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”111;

será, por fim, proporcional em sentido estrito, se ainda prevalecer após a ponderação “entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”.112 Vê-se que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito equivale ao

exercício da ponderação, porquanto repete a concepção segundo a qual quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro, ponderação essa que resultou na medida cuja proporcionalidade se queria examinar.

A observação da máxima da proporcionalidade exige que a análise das três máximas parciais ocorra, necessariamente, de modo sucessivo e na ordem apresentada, com sentido de subsidiariedade, isto é, a aferição da proporcionalidade em sentido estrito da providência interventiva/restritiva só terá lugar após a aceitação da necessidade, que, por sua vez, também só poderá ser perquirida após concluir-se pela sua adequação.113

A máxima da proporcionalidade é igualmente um dos mandamentos de interpretação constitucional, ao lado da supremacia da constituição; da unidade da constituição; da máxima efetividade; da interpretação conforme a constituição; e da concordância prática ou harmonização, sendo de atendimento inarredável quando esteja em causa a aplicação de princípios de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, principalmente quando descobertos em rota de colisão.

Todos esses mandamentos destacam-se de modo igual na técnica da ponderação como método de solução de uma possível colisão de princípios. Entendidos em conjunto, conduzem o intérprete/aplicador a harmonizar princípios colidentes, em busca de sua máxima efetividade, sem perder de vista, ao longo de sua ponderação, as normas e valores que dão à Constituição um perfil, uma unidade significativa.

110SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável, cit., p. 36.

111Id. Ibid., p. 38. “A diferença entre o exame da necessidade e o da adequação é clara: o exame da necessidade é um exame imprescindivelmente comparativo enquanto que o da adequação é um exame absoluto” (Id. Ibid.).

112Id. Ibid., p. 40. 113Id. Ibid., p. 34.

Em síntese, a metodologia da aplicação das normas de direitos fundamentais — toda resultante do conceito de princípios como mandamentos de otimização, na maior medida possível, conforme as possibilidades fáticas e jurídicas — orienta no sentido de que a colisão destas normas estruturadas como princípios deve ser solucionada pela ponderação, cujo resultado (lei de colisão) produzirá uma medida estruturada como regra (norma de direito fundamental atribuída), passível de ter sua validade jurídica aferida pela máxima da proporcionalidade.

Conquanto produzidos por um doutrinador alemão, em interação com a Constituição e com a jurisprudência de seu país, a apresentada distinção entre regras e princípios, e seus demais elementos relacionados com a aplicação destas normas, afigura- se plenamente compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo com a Constituição Federal de 1988, pródiga no que diz respeito à positivação de princípios de direitos fundamentais, com reconhecida eficácia.

Não por outro motivo, a força normativa dos princípios, a ponderação e a máxima da proporcionalidade, ainda que designadas de modos diferentes ou aplicadas de maneira divergente do preconizado pela teoria explicitada, já são, no Brasil, temas difundidos pelos principais manuais de direito constitucional e por obras e pesquisas específicas.114

A complexidade das formulações desse método é simétrica à intenção de evoluir-se na racionalização do processo interpretativo e decisório do texto normativo, em função dos complicados e dinâmicos problemas práticos que envolvem os direitos fundamentais, buscando o equilíbrio entre a segurança jurídica e a força normativa desses direitos, cuja faceta principiológica tem, no referido método de aplicação, o locus vocacionado para o atendimento do anseio pós-positivista e tridimensionalista115 de um Direito compreendido e efetivado a partir da interação entre fato social, valor e norma.

114Cf., entre outros, os autores aqui repetidamente referenciados: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. op. cit., p. 159-209; MARMELSTEIN, George. op. cit., p. 353-450; MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. op. cit., p. 373-440; SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. op. cit., p. 119-126; SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável, cit., p. 23- 50; Id. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção, cit., p. 607-630. Não convém a este espaço posicionar-se acerca da discussão doutrinária brasileira a respeito da natureza da máxima da proporcionalidade, fulcrada no debate entre os que, de um lado, conferem-lhe o status de norma constitucional e, de outro, aqueles que nela enxergam apenas uma técnica de solução de casos. Interessa, apenas, constatar a aceitação de sua compatibilidade com a ordem jurídica nacional, independentemente da natureza que se lhe reconhece.

115Importante destacar a consonância da conclusão de Alexy com os pressupostos teóricos deste trabalho atribuídos a Miguel Reale (teorias abertas dos modelos do Direito e tridimensionalismo jurídico concreto), segundo a qual “a positivação dos direitos fundamentais que vinculam todos os poderes estatais representa uma abertura do sistema jurídico perante o sistema moral, abertura que é razoável e que pode ser levada a cabo por meios racionais” (ALEXY, Robert. op. cit., p. 29).

Por compatíveis com a realidade do ordenamento jurídico brasileiro é que os cânones da interpretação constitucional, a força normativa dos princípios de direitos fundamentais e a metodologia da sua aplicação são importantes pontos de partida e indispensáveis ferramentas para alcançar um modelo hermenêutico peculiar ao problema prático posto à reflexão.

2. O PROBLEMA SOCIAL E JURÍDICO DA MORADIA DO