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1 EM BUSCA DE UMA ADEQUADA INTERPRETAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO AMBIENTAL

1.5 A contribuição de Dworkin para a adequada interpretação jurídica da questão ambiental no Estado Democrático de Direito brasileiro

Já se evidenciou na introdução desta dissertação que aqui se defende ser a teoria da integridade do direito de Dworkin ajustável – em termos de compatibilidade teórica250 – aos pressupostos adotados da teoria discursiva e procedimental do Direito e da Democracia251, e que ambas são compatíveis e apropriadas para a formulação de uma adequada interpretação jurídico-constitucional do processo decisório estudado.

A teoria jurídica de Dworkin serve de suporte para fundamentar de maneira compatível o paradigma procedimental, sobretudo, a racionalidade das decisões jurisdicionais, na medida em que oferece possibilidades de preencher a função socialmente integradora da ordem jurídica e da pretensão de legitimidade do direito, em que os juízos emitidos devam satisfazer simultaneamente às condições de aceitabilidade racional e da decisão consistente252, ou seja, sua teoria permite uma adequada consideração da tensão entre facticidade e validade, imanente ao direito, e que se manifesta na jurisdição a partir da tensão entre o princípio da segurança jurídica e a pretensão de tomar decisões corretas.253

Segundo Habermas, a teoria de Dworkin e sua dinâmica mostram-se construtivas e capazes de captar a autocompreensão coletiva dos membros de direito254 (compatível à ideia de autolegislação) e de manter a compreensão de complementaridade entre direito e moral de forma suficientemente adequada em termos

250 Com o ajuste de determinados pontos de vista, conforme: HABERMAS, op. cit., 2003a, p. 241-295. 251 Habermas, ao refletir sobre teorias que sejam adequadas a garantir a racionalidade das decisões jurisdicionais, considerando-se, pois, precipuamente, a perspectiva interna do sistema de direitos, entende que falham as concepções providas pela hermenêutica, pelo realismo e pelo positivismo, e indica como adequada e ajustável concepção a teoria jurídica de Dworkin. Id. Ibid., p. 252.

252 HABERMAS, op. cit., 2003a, p. 246. 253 Id. Ibid., p. 245.

procedimentais255, tendo em vista que sua teoria é uma teoria de direito e não uma teoria de justiça256. Assim, “pouco importa o modo como Dworkin entende a relação entre direito e moral: sua teoria dos direitos exige uma compreensão deontológica de pretensões de validade jurídicas” 257, e mostra-se capaz, segundo Habermas, de captar o nível de fundamentação pós-tradicional do qual o direito positivado depende.258 Em suma, Habermas reconhece a possibilidade de manejo dessa teoria em consideração à teoria discursiva e procedimental do Direito e da Democracia, desde que ressalvados alguns ajustes259 que potencializam as condições concretas discursivas e procedimentais do agir comunicativo, conforme a seguinte consideração:

Entretanto, é possível ampliar as condições concretas de reconhecimento através do mecanismo de reflexão do agir comunicativo, ou seja, através da prática de argumentação, que exige de todo o participante a assunção das perspectivas de todos os outros. O próprio Dworkin reconhece esse núcleo procedimental do princípio da integridade garantida judicialmente, quando vê o igual direito às liberdades subjetivas de ação fundadas no direito às mesmas liberdades comunicativas. Isso sugere que se ancorem as exigências ideais feitas à teoria do direito no ideal político de uma “sociedade aberta dos intérpretes da constituição”, ao invés de apiá-la no ideal da personalidade de um juiz, que se distingue pela virtude e pelo acesso privilegiado à verdade.260

255 “Essa premissa não causa nenhuma surpresa para uma teoria discursiva do direito, a qual parte da idéia de que argumentos morais entram no direito através do processo democrático da legislação – e das condições de eqüidade da formação do compromisso.” Id. Ibid., p. 252-253.

256 Id. Ibid., p. 263. E segundo Dworkin: “A integridade é diferente da justiça e da eqüidade, mas está ligada a elas da seguinte maneira: a integridade só faz sentido entre as pessoas que querem também justiça e eqüidade.” DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 314.

257 HABERMAS, op. cit. 2003a, p. 256.

258 “Depois que o direito moderno se emancipou de fundamentos sagrados e se distanciou de contextos religiosos e metafísicos, não se torna simplesmente contingente, como o positivismo defende.” Id. Ibid., p. 259.

259 Os ajustes a que se fazem menção se dirigiam às críticas de Habermas quanto aos seguintes pontos da teoria de Dworkin: (1) o problema da retroatividade quanto à necessidade de reconstrução racional das decisões passadas em face da segurança jurídica, (2) o problema de que a integridade de Dworkin conceberia uma autocompreensão de uma comunidade solidária por demais abstrata, por exemplo, cujas soluções passam por um alargamento do conceito de segurança jurídica e pela abertura da interpretação jurídica a uma sociedade aberta de intérpretes. HABERMAS, op. cit., 2003a, p. 272-280.

260 Id. Ibid., p. 277. Com isso, ressaltamos inclusive a possibilidade de consideração da teoria da

integridade exercida não só pelo juiz, mas por todos os cidadãos, inclusive, acerca da adequada interpretação jurídico-constitucional dos casos do processo decisório aqui estudado.

A contribuição da teoria da integridade261 e a respectiva noção de cadeia do direito de Dworkin pode auxiliar na análise dos casos de liberação de OGMs no meio ambiente em escala comercial, principalmente a partir da consideração estruturada dos argumentos utilizados nos processos judiciais correlacionados aos casos ocorridos no âmbito da Administração, dado que deve haver adequação do processo decisório público, a um só tempo, para guardar coerência com o Direito e com as experiências vividas a partir da Constituição Brasileira, no que tange à concretização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à questão empírica dos OGMs. Segundo Dworkin:

O direito como integridade portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram (às vezes incluindo, como veremos, o que disseram) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado.262

Inclusive, na ótica judicial e administrativa dos embates ocorridos e no levantamento dos argumentos utilizados, a possibilidade de exercício de uma interpretação jurídico-constitucional direcionada à integridade de cada decisão com o sistema de direitos ao qual se integra, de forma a garantir uma continuidade dinâmica de releitura e a compatibilidade das decisões e interpretações futuras com as tomadas no passado.263 Esse exercício pode ser formulado como uma vivência e um aprendizado.

261 Para uma apreensão geral do que seja a teoria da integridade e a sua aplicação ao direito, consultar, sobretudo, os capítulos VI e VII do livro Império do Direito: DWORKIN, op. cit., 2007a. A teoria da integridade é concebida pelo autor como uma terceira via em relação a duas outras perspectivas de interpretação: o Convencionalismo (que considera a melhor interpretação a de que os juízes descobrem e aplicam convenções especiais) e o Pragmatismo (que encontra na história dos juízes vistos como arquitetos de um futuro melhor, livres da exigência inibidora de que, em princípio, devem agir coerentemente uns com os outros). Para maiores detalhes, conferir os capítulos IV e V do livro citado. 262 DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 274.

263 Assim, ela pode contribuir para o confronto de casos do processo decisório relacionado à questão

Em outras palavras, pode ser apreensível a construção de uma cadeia de direito, concebida analogicamente a um romance em cadeia 264, em que se pode considerar que os vários atores do processo decisório estudado são encorajados a concretizar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A vantagem da teoria da integridade é que ela permite o exercício de uma atitude interpretativa autorreflexiva e construtiva e coloca o conceito de coerência 265como um parâmetro fundamental de filtro interpretativo, a fim de que a seletividade da consideração de decisões passadas acerca da questão ambiental não seja tomada de forma repetitiva ou descontrolada na resolução dos casos. A proposição de coerência de princípio266de sua teoria tem significado específico, no sentido de que traduz, como se viu, um exercício interpretativo que começa no presente e se volta para o passado, à medida que seu enfoque contemporâneo assim o determine.

Com Dworkin, pode-se pressupor, a partir da Constituição Federal brasileira, a possibilidade de exercício de um modelo de comunidade política (enquanto modelo de princípios 267) que insiste que os cidadãos se considerem seus membros, na medida em que aceitem que seus destinos estão fortemente ligados por uma associação

sob a análise de casos concretos ocorridos ao longo do ano de 2006 e 2007, que necessitam reconstruir a dinâmica organizacional e decisória envolvida, num resgate seletivo da história institucional do processo decisório, e que exigem uma teoria que leve em conta as vivências jurídico-interpretativas realizadas ao longo do processo decisório estudado e historicamente situado.

264 DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 275-279.

265 Para compreender a semântica e a dinâmica do termo na referida teoria, consultar: DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 263-269.

266 Dworkin cria um duplo conceito: coerência estratégica e coerência de princípios. Refuta a primeira e defende a segunda como adequada. A coerência estratégica deve estar presente à preocupação de qualquer um que crie o direito e deve “cuidar para que as novas regras que estabelece se ajustem suficientemente bem às regras estabelecidas por outros, ou que venham a ser estabelecidas no futuro, de tal modo que todo o conjunto de regras funcione em conjunto e torne a situação melhor, em vez de tomar a direção contrária e piorar as coisas”. E “a coerência de princípio é uma outra questão. Exige que os diversos padrões que regem o uso estatal da coerção contra os cidadãos seja coerente no sentido de expressarem uma visão única e abrangente de justiça. Um juiz que vise à coerência de princípio se preocuparia, de fato, como os juízes de nossos exemplos, com os princípios que seria preciso compreender para justificar leis e precedentes do passado.” DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 162-164.

267 DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 254-255. Esse modelo visa superar outros dois tipos de modelos de comunidade: o modelo de regras e o modelo como uma questão de circunstância, ambos considerados insuficientes, por permitirem a formulação de acordos conciliatórios sobre as questões de direito. Id. Ibid., p. 251-254.

fraternal, que em vez de se pautar em um fundamento ético ou metafísico (que pressupõe a naturalização e a homogeneização de comportamentos e relações sociais), passe a considerar que tais desafios devam ser garantidos artificialmente, a fim de preservar contextos de alta complexidade e pluralismo sociais.

A Constituição Brasileira, assim, pode corresponder a uma personificação abstrata e distinta dos cidadãos e de determinados princípios considerados existentes num determinado momento, enquanto convivência de princípios comuns e não apenas em regras concebidas por um acordo político. Esse intento permite considerar, numa perspectiva cidadã consciente e atuante em relação ao processo decisório de liberação de OGMs no meio ambiente em escala comercial, que os cidadãos são capazes de compreender a política de uma forma distinta. E assim, assumi- la como uma arena de debates sobre quais princípios nossa comunidade deve adotar como sistema de direitos e que concepção de justiça, equidade e justo processo pode ser assumida. E segundo Dworkin:

Os membros de uma sociedade de princípios admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem, em termos mais gerais, dos sistemas de princípios que essas decisões pressupõem e endossam. Assim, cada membro aceita que os outros têm direitos, e que ele tem deveres que decorrem desse sistema, ainda que estes nunca tenham sido formalmente identificados ou declarados. Também não se presume que esses outros direitos e deveres estejam condicionados à sua aprovação integral e sincera de tal sistema; essas obrigações decorrem do fato histórico de sua comunidade ter adotado esse sistema, que é então especial para ela, e não da presunção de que ele o teria escolhido se opção tivesse sido inteiramente sua. Em resumo, cada um aceita a integridade política como um ideal político distinto, e trata a aceitação geral desse ideal, mesmo entre pessoas que de outra forma estariam em desacordo sobre a moral política, como um dos componentes da comunidade política.268

268 DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 255.

O conceito de integridade, assim, direciona-se tanto para a atividade legislativa, quanto para a atividade jurisdicional269. E nesta última, com interesse direto para a análise dos casos do processo decisório estudado, ao permitir o exercício de interpretação jurídico-constitucional da questão, devem os direitos ser considerados enquanto questões de princípio270 e não como questões de política, para evitar que argumentos práticos de economia, de política e de religião, por exemplo, não venham a se sobrepor a argumentos jurídicos, enquanto fundamentos da decisão judicial271.

Para uma interpretação jurídica adequada, faz-se necessária a consideração de que os princípios, assim como as regras, integram o Direito e são capazes de vincular qualquer decisão jurídica, sobretudo a judicial, diversamente de uma atitude positivista extremada. Além disso, eles diferem em qualidade, embora ambos vinculem normativamente. E se as regras funcionam no esquema de tudo ou nada – com o afastamento de uma delas –, os princípios se encontram e se harmonizam na esfera de aplicação, em que, num determinado caso, ele é ou não adequado, em vez de ser ou não revogado por outro princípio. Assim, apreende-se o ordenamento jurídico concebido como sistema aberto de regras e princípios. 272

269 E aqui se entende, também, sobre o exercício interpretativo-constitucional realizado sobre os casos estudados, com desdobramentos judiciais. Dworkin divide as exigências de integridade em dois outros conceitos mais práticos: a integridade na deliberação e a integridade na legislação. Para um entendimento acerca desses pontos, consultar: DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 261-263.

270 “Minha visão é que o Tribunal deve tomar decisões de princípio, não de política – decisões sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional, não decisões sobre como se promove o bem estar geral (...)” DWORKIN, op. cit., 2005, p. 101.

271 Nesse sentido, Dworkin evidencia que “um juiz que segue a concepção do Estado de Direito centrada nos direitos tentará, num caso controverso, estruturar algum princípio que, para ele, capta, no nível adequado de abstração, os direitos morais das partes que são pertinentes às questões levantadas pelo caso.” DWORKIN, op. cit., 2005, p. 15.

272 Para uma apreensão ampla acerca do modelo de regras criticado por Dworkin e do modelo de princípios (convivente com regras) desejado por ele, consultar: DWORKIN, Ronald. Levando os direitos

Os parâmetros interpretativos273 do processo decisório estudado devem ser os princípios constitucionais, evidenciados a partir da perspectiva da cidadania (participação pública, relacionada à publicidade, informação e precaução), enquanto normas de caráter deontológico que exigem a sua consideração a partir de juízos de adequação e que não colocam a tarefa de interpretação como uma posição possivelmente neutra274 de construção do direito, mas como uma decisão política – no sentido da teoria da integridade275, que é possível de ser concebida em termos de uma única decisão correta276 – seja em casos fáceis ou casos difíceis.

“O cidadão é responsável na medida em que deve imaginar quais são os compromissos de sua comunidade com os princípios, e o que tais princípios exigem. O cidadão comparece, neste contexto como parte do processo de interpretação”277. E, com Dworkin, procura-se analisar a aplicação do direito no processo decisório estudado a partir de uma visão construtiva, em que a finalidade jurídica, enquanto conceito interpretativo, “é colocar princípio acima da prática social para mostrar o melhor

273 E para dar conta da complexa tarefa interpretativa criativa vinculada à teoria da integridade, Dworkin vai se valer do conceito metafórico do juiz Hércules, que aceita o direito como integridade e como um conceito interpretativo, dado que os juízes têm a obrigação de fazer cumprir os direitos constitucionais até o ponto em que seu cumprimento deixa de ocorrer nos interesses daqueles que os direitos deveriam proteger. Nesse sentido, consultar: DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 271-332 (cap. VII) e 377-424 (cap. IX). 274 DWORKIN, op. cit., 2007a, p. 305-306.

275 “As decisões judiciais são decisões políticas, pelo menos no sentido mais amplo que remete à doutrina da responsabilidade política.” DWORKIN, op. cit., 2007b, p. 138.

276 Para Dworkin, a unicidade e irrepetibilidade caracterizam todos os eventos históricos. Assim, o julgador deve se confrontar com um esforço hercúleo (metáfora construída por Dworkin) para apreender, diante do complexo normativo, a única decisão correta aplicável ao caso. Dessa forma, diz-se ser todo caso um caso difícil (hard case). O julgador deverá estar atento às peculiaridades do caso concreto, imprimindo uma interpretação racionalmente construída a partir de princípios jurídicos, sem deixar de considerar o ordenamento jurídico como um todo, a história e as práticas constitucionais, para, assim, conseguir encontrar a norma adequada ao caso.

Para maior esclarecimento acerca desse ponto, consultar: DWORKIN, op. cit., 2007b, p. 429 et seq. 277 LAGES, Cíntia Garabini. Processo e jurisdição no marco do modelo constitucional do processo e o caráter jurisdicional democrático do processo de controle de constitucionalidade no Estado democrático de Direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Jurisdição e hermenêutica

caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado, enquanto atitude fraterna”278 de uma comunidade política de princípios.

1.6 Um balanço dos pressupostos teóricos apresentados como norteadores da

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