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A controvertida literatura da oralidade

No documento 2008MadalenaTeixeiraPaim (páginas 32-36)

2 O PRIMEIRO MOMENTO DO CONHECIMENTO – ORALIDADE

2.3 A controvertida literatura da oralidade

Apesar de a escrita ter dominado os últimos séculos da história da humanidade, a oralidade persiste em todas as culturas, muitas vezes ainda sendo a única forma utilizada por um povo na garantia da preservação de sua cultura. Por outro lado, determinados povos desenvolveram formas alternativas, como o cordel5, que demonstram uma intersecção entre oralidade e escrita. Em alguns desses casos, sem deixar que a escrita determinasse seus caminhos, a oralidade faz-se presente na escrita, que não passa, portanto, de um instrumento para sua transcrição.

5 Segundo o dicionário Aurélio: “Literatura de Cordel. Bras. Romanceiro popular nordestino, em grande parte contido em folhetos pobremente impressos e expostos à venda pendurados em cordel, nas feiras e

mercados”. (grifo nosso) Fica claro, com essa definição, que o cordel pode ser impresso ou não, podendo existir apenas na oralidade, sem jamais passar para a forma escrita.

Luís Antônio Marcuschi considera equivocada a afirmação de que em muitos escritos há “vestígios” da fala. De acordo com ele, o que ocorre, realmente, é a transcrição da própria fala em um grande número dos documentos escritos, resultado, geralmente, do desconhecimento da forma escrita considerada como padrão (informação verbal).6 Neste caso estariam enquadrados os cordéis nordestinos, cujos autores, em sua maioria, têm pouca educação formal. Como no período inicial da escrita, o encontrado no papel era apenas resultado da tradição oral.

Assim como Marcuschi, Marcela Cristina Evaristo assegura que, “no caso particular do cordel, há praticamente a transposição do oral para o escrito” (1999, p.120). No entanto, adiante ela se refere a “pistas” que são deixadas pela oralidade no texto escrito, sem deixar de considerar os cordéis como um gênero literário:

[...] a narrativa oral, que tem suas origens nos narradores e narrativas medievais, também sofre suas alterações. Com a imprensa e o romance, há uma transfiguração dessa arte popular, que passa a ser literatura, passa a ser impressa. No caso particular do cordel, há praticamente a transposição do oral para o escrito. [...] Constitui-se em um gênero intermediário entre a oralidade e escrita. Faz uma espécie de ponte de passagem entre uma cultura popular e outra, literária. Por isso, mantém algumas pistas da oralidade aos ser transposto para o texto escrito e impresso. (EVARISTO, 1999, p.120)

Trazidos pelos colonizadores portugueses, os cordéis artesanais, no Brasil, constituem uma fixação de narrativas populares ainda existentes em várias comunidades, em regiões situadas especialmente no Nordeste7. No entanto, ainda não foram suficientemente estudadas as causas de esta produção literária ser destaque nessa região brasileira. Mesmo assim, é possível afirmar que o clima favorável à realização de eventos ao ar livre e a origem dos escritores, em sua maioria oriundos da zona rural e com pouca ou nenhuma influência advinda de uma educação escolar, são fatores determinantes para que o cordel garanta sua presença no cotidiano daquele povo.

Em verdade, naquela região a cultura oral permanece muito forte e não foi absorvida pela escrita através da escolarização, pois muitos cordelistas são, dadas as circunstâncias sociais, quase totalmente autodidatas na arte de escrever, com raras exceções. Esse fato é admitido com simplicidade por J. Borges, um dos maiores nomes da literatura de cordel

6 Palestra proferida em 16 de novembro de 2005, Pelotas (RS), durante o IV SENALE. 7 No estudo, as referências feitas ao Nordeste não se limitam à sua divisão geográfica.

brasileira, numa declaração impressa na contracapa de um dos seus inúmeros cordéis, O

homem da tapioca: “Espero que todas as crianças que lerem esta história saibam que ela

foi escrita e ilustrada por um poeta que não estudou além de 10 meses, e a pequena leitura que aprendeu neste pequeno período foi completada lendo livrinhos da literatura de cordel”.

Como conseqüência do pouco estudo, Borges e outros cordelistas parecem não se sentir pressionados pelas normas da língua, mesmo que lhes sejam praticamente desconhecidas. Os cordéis são provas de que seus textos apenas reproduzem ou fixam a fala. Regras de pontuação, de ortografia ou mesmo de concordância, independentemente de sua complexidade ou simplicidade, não são usadas pelos autores dos cordéis, que não demonstram em suas obras nenhuma familiaridade com a gramática da língua escrita. Essa gramática não é relevante para o cordel, que aspira a ser cantado ou lido em voz alta.

Por outro lado, esses cordéis observam rigorosamente regras de uma “gramática” presentes na oralidade e consideradas importantes, como a rima, o número de versos de cada estrofe, o ritmo e a métrica, enfim, elementos que facilitam a memorização dos versos, mesmo com os interlocutores que não são escolarizados. Mantêm, assim, a mais antiga forma de transmissão do conhecimento criada pelo homem, ou seja, a divulgação do saber pelo processo rítmico-mnemônico das palavras. Em seu artigo “Dom Quixote nas artimanhas do cordel”, Maria Lilia Simões de Oliveira escreve: “Esta é uma característica bastante importante para a construção de um texto que se apresenta de forma híbrida: embora escrito, deseja manter as artimanhas da oralidade. O gênero cordel simula na escrita a língua falada”. (2006, p.224).

Com o suporte impresso, as narrativas constantes nos cordéis passam a ser literatura, mesmo mantendo estreitos laços com a oralidade. Isso se deve a diversos fatores como, por exemplo, o fato de serem apresentados oralmente, muitas vezes apenas em parte e outras vezes no todo, ao público com o objetivo de sua divulgação. Acontecem rotineiramente nas feiras e em espaços públicos, onde o próprio autor do cordel deseja promover sua venda. E a platéia, muitas vezes mesmo sem saber ler, adquire o cordel para que seja apreciado em outra comunidade, formada com o objetivo da apreciação da sua leitura em voz alta.

Como no período que se sucedeu aos primeiros livros escritos, a leitura do cordel ainda é uma atividade social ao congregar grupos para sua fruição. Após a leitura, muitas vezes o cordel é recontado ou até mesmo cantarolado pelas pessoas que o ouviram, estando sua existência junto à comunidade diretamente relacionada com essas atitudes, exatamente como acontecia com as narrativas no período da oralidade. Um cordel é sempre impresso

em pequeno número e só o seu sucesso é que determina uma reimpressão, novamente com pequena tiragem. Também as narrativas da oralidade tinham sua sobrevivência garantida pela aceitação e conseqüente memorização.

Um outro aspecto que aproxima o cordel à oralidade refere-se à autoria. Segundo Regina Zilberman, “a cultura popular é coletiva, anônima [...]”(apud GLOCK, 2005, p.19) No momento da oralidade, a noção de autoria era totalmente desconhecida (em verdade, inexistente) e, em relação ao cordel, é bastante confusa. Nesse caso, a autoria não tem os contornos adquiridos pela escrita, sendo de tão pouca importância que o escritor muitas vezes a passa para o vendedor do cordel, sem qualquer problema. Normalmente é o próprio autor que se encarrega de sua impressão, divulgação e venda, mas não são raros os casos em que ele vende o cordel e sua autoria para outra pessoa.

O cordel, portanto, surgiu e permanece para ser cantado e ouvido. Não se constitui numa substituição à forma oral, representando apenas uma modalidade que encontrou um novo suporte, escrito, em razão do advento e da expansão das tipografias. Para Maria Lilia Simões de Oliveira, os cordéis são uma forma híbrida e, segundo Alda Maria Siqueira Campos, “o cordel desde sempre aspira a ser cantado.” (1998, p.81) Tanto é assim que os cordelistas concordam que a forma cantada de seus versos tem maior alcance que a forma impressa, pois facilita a memorização, seja por parte do interlocutor letrado, seja pelo não letrado.

Walter Ong, entretanto, é enfático ao afirmar que não existe nenhuma possibilidade de existir uma “literatura oral”. Apesar de afirmar que “a oralidade precisa e está destinada a produzir a escrita” (ONG,1998, p.23), ele esclarece que o próprio termo “literatura” está atrelado à palavra “litera”, que se refere especificamente à forma escrita da língua e, portanto, não seria possível que compreendesse as formas orais. Também lembra que as narrativas orais sempre existem apenas no momento de sua narração ou em potencial, na mente de seus futuros narradores. Portanto, para ele, o conceito de “literatura oral” é impossível de existir, partindo do pressuposto de que “literatura” só possa ser concebida a partir de documentos escritos, o que se incompatibiliza fundamentalmente com o termo “oral”.

À revelia do pensamento de Ong, no Brasil, assim como em outros países, uma literatura que “já existia desde os tempos dos fenícios, dos saxões e dos conquistadores greco-romanos”, segundo Maria Lilia Simões de Oliveira, representa uma manifestação cultural que carrega elementos da oralidade para a escrita. A literatura de cordel, como é conhecida, tem raízes populares e seu caráter totalmente artesanal foge à padronização dos

impressos modernos. Como será visto a seguir, a originalidade dos cordéis reside justamente em sua forma híbrida.

No documento 2008MadalenaTeixeiraPaim (páginas 32-36)