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O cordel e a ilustração

No documento 2008MadalenaTeixeiraPaim (páginas 36-39)

2 O PRIMEIRO MOMENTO DO CONHECIMENTO – ORALIDADE

2.4 O cordel e a ilustração

No Brasil, o cordel chegou com os portugueses através da figura de seus poetas populares, uma reminiscência dos trovadores medievais, e fixou-se principalmente no Nordeste, sendo divulgado, especialmente, nas feiras livres, ruas e praças, dependurado em barbantes, do que se originou o seu nome. Trechos de seu conteúdo ora são cantados ora são declamados pelo próprio autor ou por um repentista8, a fim de promover sua divulgação. Nas palavras de Marcela Cristina Evaristo, o cordel é

caracterizado pela oralidade e integrante da literatura popular em verso, esse gênero apresenta algumas peculiaridades. Situado entre a oralidade e a escrita, o cordel é uma modalidade com duas vias de chegada ao leitor. Num primeiro momento, o poeta “canta” seus versos para um público específico para, num outro momento, atingir seu objetivo maior: vender seus folhetos impressos, onde figuram propriamente seus poemas. (1999, p. 122)

O cordel, como as narrativas orais, apresenta uma preocupação pedagógica, procurando concluir seu texto com um ensinamento, ao mesmo tempo em que diverte o leitor. O cordelista José Francisco Borges acredita no poder dos cordéis para a ampliação do mundo cultural de seus apreciadores, porque o cordel representa uma forma diferente de entretenimento, relatando e comentando as questões do cotidiano da região e, às vezes, do Brasil e alguns fatos ocorridos em outros países, até o mundo fantástico das histórias infantis. Os textos carregam uma inspiração que vem da realidade, da fantasia e também da história e da cultura do povo nordestino.

Existem cordéis relatando a vida e os feitos de Lampião, ao mesmo tempo em que foram produzidos cordéis relatando o incidente de 11 de Setembro, quando as Torres Gêmeas foram alvo de atos terroristas. J. Borges também escreveu cordéis especialmente

8 Repentista, segundo Houaiss, é “que ou aquele que executa repentes”. Repente: “sextilha/ canto (melodia)

com versos improvisados”. Sextilha, no caso, o cordel, por apresentar estrofes com seis versos e com o segundo, quarto e sexto versos rimados.

dirigidos para o público infantil (Historinhas de cordel para crianças), atendendo ao gosto por aventuras e histórias fantásticas. Em sua opinião, essas histórias poderiam fazer parte da literatura infantil brasileira e, principalmente, escolar, pois, em razão de sua simplicidade, despertam o verdadeiro prazer literário, pelos ritmos conhecidos e de encantadoras fantasias.

Assim, a poesia popular, advinda de uma população com pouca escolaridade e muitas vezes à margem da sociedade letrada, insinua-se junto à literatura brasileira. Ao colocar no papel as histórias vividas e ouvidas no interior nordestino, um universo de experiências originais, os cordelistas trabalham com uma produção culturalmente distinta, pois, como observado anteriormente, mantêm um aspecto quase artesanal. Como os cordéis utilizam materiais simples na sua elaboração, seu custo é extremamente barato, o que torna uma alternativa de leitura viável a um grande público que não dispõe de muitos recursos para financiar sua leitura.

Como nas narrativas do momento da oralidade, os cordéis artesanais são trabalhados para serem divulgados em suas comunidades de origem (só alguns raros foram escritos com o objetivo de serem vendidos em livrarias); por isso, a ilustração do texto não é um elemento fundamental. Se a realidade local é objeto de conhecimento de toda a comunidade, a imagem, também conhecida de todos, será construída pelas palavras e não é necessário que seja representada em forma de desenhos ou de gravuras, muito ou pouco elaboradas. Afinal, o receptor está inserido no mesmo mundo do criador do cordel, por isso, facilmente reconhece o ambiente reproduzido no texto e o seu ouvinte ou leitor constrói mentalmente as imagens provocadas pela narração.

O cordel parece trabalhar com o segundo tipo de imagens na classificação proposta por Cristina Costa (2005, p.28), descrita em capítulo anterior. É a imagem/pensamento, formada inicialmente a partir de estímulos externos e que, depois de passar por diversos e complexos processos mentais, passa a fazer parte de um arquivo pessoal, independente do mundo externo. A realidade trazida pelo cordel é partilhada por uma comunidade cuja memória também é comum.

Decorrente desse fato, na maioria dos cordéis, como os existentes no Nordeste do Brasil, a ilustração encontra-se presente apenas na capa da obra, ocupando toda a página, com espaço deixado para o título e o nome do escritor e, se necessário, do ilustrador. Em poucos cordéis são encontradas ilustrações ao longo do texto, pois neste tipo de obra há o predomínio do texto verbal sobre o não verbal. Na capa do cordel, a ilustração é uma

espécie de resumo da história a ser narrada e tem por objetivo chamar a atenção do consumidor.

Acontece, também, que geralmente o autor do cordel é o autor da gravura, o que simplifica em muito o custo de sua composição. Até mesmo a impressão, muitas vezes, é de responsabilidade do cordelista, como no caso de José Francisco Borges. Nos cordéis em questão, O homem da tapioca9 e O Portugués e o Jacarê10, Borges assina a ilustração da

capa. Trata-se, nos dois casos, de uma xilogravura tradicional, em preto e branco, como tantas outras, pois ele só veio a explorar o uso de outras cores na xilogravura quando se cansou dessa forma e desenvolveu, uma técnica pessoal que encantou os colecionadores, colorizando suas gravuras.

A fama de J. Borges, no entanto, foi alcançada com as xilogravuras em preto e branco. Talvez porque o preto-e-branco estejam mais próximos do próprio sistema inicial de impressão, onde a gravura é esculpida em uma madeira, recebendo, depois, tinta preta nesse relevo. Ao ser reproduzida, forma-se o desenho pelo contraste entre os traços em preto e os espaços em branco, exatamente como os caracteres tipográficos são colocados, em preto, sob o papel geralmente branco da impressão.

Há de se questionar o porquê da xilogravura no cordel. É preciso esclarecer que os cordéis antigos não apresentavam nenhuma ilustração em sua capa e seu uso parece ter acontecido, inicialmente nos cordéis nordestinos, com o objetivo exclusivo de chamar a atenção do público para a história a ser contada. Por outro lado, a xilogravura é resultado de uma técnica bastante simples e barata. O artista pode improvisar suas próprias ferramentas, necessárias para a elaboração da xilogravura, e conseguir efeitos diversos, dependendo de sua criatividade no uso de diferentes materiais. Para isso, na falta de um material mais apropriado, ele pode improvisar, quase sem nenhum ônus, usando um pedaço de madeira qualquer, pregos e até mesmo varetas de um guarda-chuva velho para a confecção de uma matriz, geralmente inutilizada logo após a conclusão do material impresso.

Talvez mais importante ainda seja o fato de que o processo de criação é quase intuitivo (a chamada arte naïf ou primitivista), como no caso de J. Borges e de outros tantos cordelistas nordestinos. A originalidade de seus trabalhos é resultante de uma genuína expressão de criatividade de um artista que não passou por nenhuma escola de

9 Tapioca, segundo a definição encontrada no dicionário Aurélio é “beiju que tem no interior uma camada de

coco ralado”.

arte. São concepções, talvez ingênuas, da realidade, refletidas em traços fortes e incisivos do artista e reconhecidas como uma das grandes contribuições para a arte popular.

O uso de xilogravuras nos cordéis parece reproduzir os primeiros momentos da imprensa, quando a padronização dos textos demandava uma uniformidade para as tabelas, estampas e ilustrações. Elizabeth Eisenstein comenta sobre a relação da imprensa e da xilografia, especificando que o uso da xilografia aconteceu em decorrência da necessidade de elaboração de imagens iguais junto aos textos, cuja cópia idêntica já estava garantida pela imprensa:

As ilustrações feitas à mão foram sendo substituídas gradualmente por xilografias e estampas – inovação que acabou contribuindo para revolucionar a literatura técnica, pela introdução de “mensagens pictóricas que podiam ser repetidas com exatidão” em todos os tipos de obras de referência. [...] a reprodução precisa de detalhes sutis permaneceu fugidia até o advento da xilografia e da gravura. [...] A utilização da tipografia para os textos levou ao uso da xilografia para as ilustrações, com o que foram selados os destinos do escriba e do desenhista de iluminuras. (EISENSTEIN, 1998, p.38-39)

Segundo Houaiss, xilografia refere-se mais especificamente ao “processo e técnica de gravura em relevo sobre a madeira que permite a impressão tipográfica de figura(s) ou texto(s)”, ao passo que xilogravura é “arte e técnica de fazer gravuras em relevo sobre madeira”, bem como “estampa obtida através dessa técnica”. Em relação aos cordéis e suas ilustrações, em todos os textos pesquisados foi encontrada a palavra “xilogravura”; no entanto, também “xilografia” estaria correto, tendo em vista que os cordéis são impressos.

Durante essa seção o nome de José Francisco Borges, ou J. Borges, como é conhecido, tem sido intensivamente mencionado. Uma breve biografia do artista e escritor, ou como ele próprio se nomeia, gravurista e poeta, permitirá conhecê-lo melhor.

No documento 2008MadalenaTeixeiraPaim (páginas 36-39)