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Uma história para pequenos leitores

No documento 2008MadalenaTeixeiraPaim (páginas 53-56)

2 O PRIMEIRO MOMENTO DO CONHECIMENTO – ORALIDADE

2.9 O Português e o Jacaré

2.9.2 Uma história para pequenos leitores

Cabe um olhar sobre a capa do cordel (Ilustração 3) que apresenta uma xilogravura típica de J. Borges. Emoldurada nos quatro lados por traços retos, intercalados por duas linhas sinuosas e entrelaçadas nos cantos e no meio da página nas margens esquerdas e direita, a capa apresenta, além da xilogravura, na sua parte superior o título, em tipos, impressos, grandes (O Portugués [sic] e o Jacarê [sic]), o subtítulo, que classifica o tipo de cordel (Historinhas de Cordel para Crianças) e o nome do autor (Autor: José Francisco Borges).

Ilustração 3 – O Português e o Jacaré

Os dois primeiros títulos, do cordel e da coleção, estão centralizados em relação à página e entre si. Já o nome do autor está totalmente deslocado para o lado esquerdo, apenas marcado por uma pequena entrada, deixada entre os traços laterais que emolduram a margem e a primeira letra da palavra “autor”. Em relação ao tamanho do tipo usado para o nome do cordel, as outras duas inscrições são bem menores.

Na parte inferior da capa, e fazendo parte da xilogravura, está o nome do autor da obra artística (J. Borges) e, finalmente, junto à margem inferior, em tipos menores que todos os outros que estão na capa, a inscrição Direitos Reservados Sobre No. 578051. Apenas em preto-e-branco, como na maioria das obras do artista, essa xilogravura representa, com simplicidade, no lado esquerdo, a figura de uma silhueta masculina portando uma arma. Certamente, trata-se do irmão do português que veio ao Brasil especialmente para vingar a sua morte, tendo para isso comprado “arma e munição/ metralhadora e fuzil” (p.2). A figura humana não está representada por inteiro, porque as pernas estão cortadas na altura dos joelhos.

Do centro para o lado direito da capa há um animal desenhado sobre um fundo preto que parece ser a pedra onde o irmão de Manoel se encontrou com o monstro que vitimara o

português. Em nenhum detalhe fica claro que o animal desenhado seja, com certeza, um jacaré ou uma lagartixa. Seu tamanho, quase o mesmo da figura humana, também serve para manter indefinida a sua exata classificação: jacaré ou lagartixa, ou como coloca o autor “o bicho e a bicha” (p.3). Excetuando-se o formato da cabeça do animal, que está mais para lagartixa do que para jacaré, o corpo, a cauda e as patas são pouco reveladoras da verdadeira identidade do animal.

Não há qualquer perspectiva ou profundidade entre os elementos desenhados na capa do cordel, mas o jogo das duas únicas cores usadas sugere uma oposição entre a figura do português, desenhada em preto sobre um fundo branco, e a figura do animal, em branco sobre o fundo preto. Novamente faz-se presente a lei da lateralidade, anteriormente mencionada, com os olhos desenhados como se as figuras estivessem de frente, apesar de estar o homem de perfil, e com a figura do português bem maior que a do suposto jacaré, indicando assim a sua importância.

Apesar da falta de proporção entre o tamanho do português e do animal, o tamanho do bicho remete a memória ao dragão de São Jorge, herói de uma história que, no folclore religioso popular, lutara contra dragões. Muitos mitos foram criados em torno das figuras desses monstros fabulosos17. Teria J. Borges conhecimento das lendas místicas envolvendo o santo e o dragão?

A simplicidade dos traços de J. Borges em nada prejudica a beleza de sua xilogravura. Consagrado como um dos maiores artistas do gênero na atualidade, é reconhecido mundialmente por suas obras de arte. Por outro lado, o uso desse tipo de arte lembra os primeiros tempos da imprensa e a dificuldade de usar imagens junto a textos.

Em Uma história da leitura, Carlos Manguel registra que “as imagens da Europa medieval ofereciam uma sintaxe sem palavras, à qual o leitor silenciosamente acrescentava uma narração” (131). Resumindo a narração em uma única gravura estampada na capa do cordel, J. Borges propõe o mesmo jogo para seus apreciadores, muitos deles apenas ouvintes, pois não dominam a leitura. Os poucos dados abrangidos pela gravura sugerem ao leitor sua participação para complementar, ou, mesmo, formar a história contida no cordel. E a história pode ser sempre diferente, pois a ilustração permite que isso aconteça, assim como na oralidade a narrativa modifica-se a cada vez que é contada. Como Manguel

17 Em um dos verbetes do dicionário Houaiss, dragão é: “em linguagem mística (esp. bíblica), um ser que

simboliza o poder do mal, o inimigo do gênero humano; diabo, demônio”. Por isso, é comum a imagem de São Jorge lutando com um dragão.

complementa: “Em uma versão, o protagonista anônimo era o herói, na segunda era o vilão, na terceira tinha meu nome” (p.131).

A contracapa apresenta o mesmo texto citado em relação ao cordel anterior, que parece ser um apelo do escritor ao público consumidor de cordéis, no caso, as crianças. Além da referência ao pouco tempo de estudo, o poeta fala da literatura de cordel e conclama as novas gerações para a tarefa de não deixar morrer a literatura de cordel, símbolo de uma cultura muito antiga. Talvez esse texto funcione como uma espécie de clichê ao ser repetido em diferentes obras, mas, no presente cordel, destinado a um leitor em especial, o jovem, há a clara intencionalidade de levar às novas gerações a riqueza de uma determinada tradição, no caso, a cultura em torno do cordel, da oralidade, dos valores de uma região em particular e de um povo em especifico.

Todo esse esforço porque, para J. Borges, a literatura de cordel: “é um mundo de inteligência, de expressão, uma linguagem matuta, diferente da científica [...]” (O SERTÃO, 2005, p.21) Simples e originais, tanto pela linguagem escrita quanto pela linguagem visual, os cordéis representam, atualmente, um exemplo de literatura na qual as narrativas orais são fixadas pela escrita. A qualidade e a originalidade do texto e também da capa são mantidas pelo trabalho desenvolvido nas mãos desses artistas populares.

No documento 2008MadalenaTeixeiraPaim (páginas 53-56)