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As lições da oralidade: tudo é relativo

No documento 2008MadalenaTeixeiraPaim (páginas 58-61)

2 O PRIMEIRO MOMENTO DO CONHECIMENTO – ORALIDADE

2.10 As lições da oralidade: tudo é relativo

Os cordéis da coleção citada misturam aventuras e histórias fantásticas, preferência de qualquer criança, ao mesmo tempo em que envolvem elementos pertencentes à própria região. Fica o registro das histórias, das lendas, enfim, da cultura do povo da terra. Os cordéis representam, por isso, um forte resgate da cultura popular nordestina. Segundo J. Borges, os cordéis têm a capacidade de divertir ao mesmo tempo em que instruem, mesmo que sua moral não corresponda à de classes mais bem situadas, pelo menos financeiramente.

Outro aspecto explorado pelo autor em seus cordéis infantis é a presença antropomorfa dos animais. Características humanas são atribuídas aos bichos, que também mostram peculiaridades da convivência social por um tom predominantemente lúdico. O cotidiano humano, interpretado pelos animais presentes nas narrativas, leva os leitores em geral (e não só os pequenos como se refere o autor) a refletir e a conhecer melhor o relacionamento partilhado e vivido. No entanto, Borges não empresta aos seus folhetos caráter moralista, como o existente nas tradicionais fábulas, nas quais os animais servem para representar situações que se resolvem num final determinado pela moral.

Os cordéis de Borges mostram um lúdico sem o compromisso moral dominante. Para ele, o mais importante é o verdadeiro prazer literário que o cordel pode proporcionar por meio dos ritmos e dos vôos da fantasia, envolvendo realidade e ficção. Com suas histórias, e segundo seu pensamento, as crianças e também os demais leitores podem entender melhor o espaço social e o cotidiano que compartilham com os adultos.

A identidade entre o popular e o infantil não é privilégio de Borges como também não é inédita. Segundo Nelly Novaes Coelho, “a mentalidade popular e a infantil identificam-se entre si por uma consciência primária na representação do eu interior ou da realidade exterior” (grifos da autora) (p.36). A autora afirma, ainda, que em ambas há o predomínio do sentimento do eu em relação ao outro, ou seja, a relação da criança com o mundo se faz pelos sentimentos. Da mesma forma, o povo, caracterizado, neste caso, por apresentar pouca cultura letrada, também percebe a realidade não pelo viés do racional. Conclui a autora: “Em ambos predomina o pensamento mágico, com sua lógica própria. Daí que o popular e o infantil se sintam atraídos pelas mesmas realidades”. (grifo da autora) (p.36).

No caso dos cordéis, os textos são expressão crítica do cotidiano social no qual o leitor adulto e a criança estão inseridos. As histórias narradas num tom despreocupado e simples carregam a vida da comunidade, com seus valores, aspectos positivos e negativos. No caso dos cordéis nordestinos, os costumes, as crenças e o comportamento do homem da região encontram-se atrelados aos versos dos escritores.

Uma lagartixa, de repente, mostra-se imensa, assim como os pequenos, que podem ser, na realidade, ou muito grandes, ou muito fortes, como as próprias crianças. Se pequenos no tamanho, são dotados de um poder incomensurável, a ponto de transformar o que está a sua volta e, mesmo, mudar destinos já estabelecidos. No momento em que o português se encontrou com uma lagartixa e esta lhe pareceu ameaçadora, acontece a percepção do valor do menor e mais indefeso, porém, ainda assim, pode ser ameaçador.

Encerrando o capítulo, pode-se afirmar que a oralidade não se restringe a uma determinada época ou a um determinado espaço geográfico. Certamente, trata-se da primeira tecnologia desenvolvida pelo homem na busca incessante da preservação do conhecimento. O homem descobriu e aperfeiçoou maneiras para manter determinados dados, alguns tão arduamente conseguidos. O saber, na oralidade, era mantido pelo grupo com o uso de técnicas que se relacionavam com o ritmo e a entoação. A memória era sempre trabalhada no grupo e os conhecimentos pertenciam a um determinado grupo; jamais eram consideradas como posses individuais.

A aproximação da oralidade com uma forma de literatura, no caso, a de cordel, está baseada em alguns aspectos básicos que fazem dessa literatura uma forma original. A ausência ou a confusão no emprego de regras básicas de pontuação e acentuação é uma delas. Assim como a confusa ortografia encontrada nos escritos de J. Borges, esses itens só têm significado para quem aprende a escrita e a leitura como tecnologia de preservação do conhecimento. Não se trata do caso de José Francisco Borges, que escreve como fala, ou melhor, registra na escrita o que fala. Assim é sua literatura – oral.

Os cordéis são escritos para uma comunidade que, como as histórias da oralidade, conhece o cenário onde acontece a ação, bem como os outros elementos presentes no texto. Não há necessidade de construção dessas imagens, que fazem parte do cotidiano de cada leitor ou ouvinte. Importa apenas a ação, e o escritor de cordel identifica-se perfeitamente com o receptor, ou seja, ele sabe o que este está esperando de sua narrativa. O final é importante, sim, mas não há necessidade de que seja dentro de uma moral, segundo os padrões de uma sociedade mais instruída.

O cordel está escrito, mas aspira a ser cantado (a preocupação com as rimas é uma das marcas) ou lido em voz alta. Em algumas regiões do interior nordestino ainda são encontradas comunidades que se reúnem em torno da leitura do cordel, cientes ou não de que tanto servem para divertir quanto para instruir. Se cantado, é repetido pelos que o ouviram, e assim é levado a outras comunidades pela palavra oral e cantada. Caso o repentista ofereça o cordel escrito, o que é comum, pois a cantoria acontece geralmente para a divulgação do folheto, é levado para ser lido e relido em grupos em cujo meio há pessoas com pouca familiaridade com a palavra escrita, mas sabem prestigiar a prática da literatura oral.

Portanto, como os cordéis mantêm sua permanência no grupo social porque são lidos em voz alta ou cantados, regras gramaticais e outras convenções lingüísticas podem ser desconsideradas. Não é possível falar em “erro” quando a pessoa desconhece o que seria considerado como norma padrão da língua escrita. A preocupação do escritor está focada na própria ação da narrativa, não no modo como está sendo fixada no papel.

A simplicidade não exclui, no caso de J. Borges, a forma inteligente de finalizar as histórias. Se, por um lado, é melhor permanecer vivo, apesar de ter fugido de um pretenso jacaré, por outro lado, também é aceitável que o mais humilde ludibrie uma pessoa com mais posses, sem que isso seja motivo para constrangimento. Da mesma forma, o conteúdo dos textos apresenta possibilidades interpretativas significativas. A ilusão de um tamanho inferior, que esconde a grande dimensão física de uma personagem, aponta para uma identificação implícita, mas verificável, entre o leitor e o que apenas parece ser o mais fraco. Certamente, trata-se de uma moral diferente daquela que se costuma encontrar, mas nos dois casos fica claro que houve a vitória da esperteza, da astúcia, não de uma moral da sociedade dominante.

No documento 2008MadalenaTeixeiraPaim (páginas 58-61)