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Convergência midiática e “novos” modelos de negócio

Diante das possibilidades de produção, integração e disponibilização de conteúdos, os modelos de negócio próprios do mercado televisivo vêm se reinventando. Por este motivo, apresentamos nesta seção informações sobre como as plataformas de vídeo online tem estabelecido formas de monetizar suas produções, por vezes adotando recursos das emissoras tradicionais de televisão. Mesmo que estejamos falando de um cenário de TV everywhere, é interessante recuperar a discussão, realizada por Wolton (1996), sobre o papel desempenhado por uma TV generalista em um país como o Brasil. Nesse novo cenário, precisamos pensar como essa função de engajamento social e de participação individual e, ao mesmo tempo, coletiva das sociedades com a televisão, identificada pelo autor, é fundamental para as sociedades contemporâneas e precisa ser observada em estudos aprofundados, mas agora a partir do estabelecimento de laços sociais com e via outras plataformas.

Algo que precisa ser considerado é que os usos das tecnologias são sempre determinados pelas práticas sociais e culturais das pessoas. As soluções não brotam das mentes dos homens de negócio, mas, sim, são identificadas nos usos oriundos das necessidades dos próprios públicos. Como exemplo, temos a proposta dos serviços de vídeo sob demanda que, mais do que uma invenção do mercado, atende na verdade a um público que, por conta das dinâmicas desgastantes de vida no âmbito das grandes cidades, passou a ter menos ou nenhum tempo para acompanhar uma programação até então presa a um único aparelho e a uma grade linear de exibição.

Como mencionou Hepp (2014), o uso conjugado de meios é algo próprio de nossa sociedade. Logo, mesmo que os serviços de vídeo sob demanda nasçam de uma proposta de “libertar” as pessoas de um fluxo orientado e limitado às decisões do grupo de mídia, hoje temos conteúdos que só são disponibilizados no âmbito de uma plataforma específica, por exemplo a Netflix, assim como fazem as emissoras que têm suas programações organizadas por grades estrategicamente desenvolvidas.

Ao contrário do que se pensa, o uso de recursos próprios da lógica broadcasting é cada vez mais recorrente nas ambiências digitais, entre as quais podemos destacar o site de rede social Facebook. Rein & Venturini (2018) estudaram de forma detalhada o recurso de exibição de vídeos ao vivo, o Facebook Live, lançado em abril de 2016. Os autores consideram essa como uma estratégia “agressiva” do site de rede social para atrair anunciantes e estabelecer assim num novo formato de disponibilização de vídeos na web, em concorrência especialmente com o YouTube.

Nas palavras de Rein & Venturini (2018, p. 3361), essa foi “uma das mais promissoras inovações na atual paisagem de mídia (do ponto de vista comercial, pelo menos)”36.

Os autores explicam que pelo menos 140 grupos de mídia foram envolvidos diretamente nessa estratégia e, a partir de financiamentos orientados do Facebook, estes tem produzido conteúdo de forma exclusiva para o site de rede social, inclusive a partir da montagem de equipes e estudos de produção unicamente voltados para essa janela de conteúdo. “O Wall Street Journal afirma que ‘os valores dos contratos são baseados na popularidade dos editores no Facebook e no número de transmissões que eles estão dispostos a veicular” (PERLBERG & SEETHARAMAN, 2016 apud REIN & VENTURINI, 2018, p. 3366)37.

Nesse processo, de altos investimentos na produção e distribuição de conteúdos via Facebook Live, incluindo material gravado, os produtores de conteúdo têm destacado que entre as barreiras do funcionamento deste recurso está no fato de que os usuários acabam assistindo as transmissões após estas terem sido iniciadas. Por conta disso e na tentativa de assegurar a atenção dos públicos aos conteúdos exibidos em seu fluxo, o Facebook recentemente introduziu o recurso de “salas de espera e cronograma prévio dos broadcasts” (TEPPER, 2016 apud REIN & VENTURINI, 2018, p. 3374)38 que deve reduzir ou extinguir esse atraso de início de assistência já que a partir desse planejamento, será possível notificar seus usuários antes das transmissões iniciarem.

A partir de entrevistas com os grupos de mídia envolvidos na parceria com o Facebook, os autores identificaram o site de rede social como uma plataforma de publicação. E o Facebook Live como um recurso para alguns dos grupos se reposicionarem no mercado em busca de uma boa parcela da audiência que haviam perdido. Para o grupo Masheble39, por exemplo, o chefe de conteúdos declarou:

Estamos expandindo a equipe de tempo real e adicionando recursos de vídeo e narrativa visual em todas as áreas principais de cobertura. [...] Nossa audiência jovem está recebendo cada vez mais informações assistindo a vídeos, seja no nosso site ou em plataformas como Snapchat, Facebook, YouTube, OTT,

Instagram ou televisão (GITTRICH, 2016 apud REIN; VENTURINI, 2018, p.

3371)40.

36 Tradução nossa do trecho original: “One of the most promising innovations in the current media landscape

(from a commercial viewpoint, at least)” (REIN & VENTURINI, 2018, p. 3361).

37 Tradução nossa de trecho original: “The Wall Street Journal claims that ‘contract values are based on publishers’

popularity on Facebook and the number of broadcasts they are willing to stream’” (PERLBERG & SEETHARAMAN, 2016 apud REIN & VENTURINI, 2018, p. 3366).

38 Tradução nossa de trecho original: [ ] waiting rooms and pre-scheduled broadcasts (TEPPER, 2016 apud

REIN & VENTURINI, 2018, p. 3374).

39 Blog popular de origem norte-americana voltado a notícias relacionadas a internet e mídias sociais – com foco

em entretenimento. Este foi fundado pelo jovem empresário inglês Pete Cashmore, em 2005 (MASHABLE, 2018).

40 Tradução nossa de trecho original: “We’re expanding the real-time team and adding video and visual

Um aspecto que chama atenção no trecho da entrevista, é que a televisão é identificada como apenas mais uma janela de vídeo dentre tantas outras em que o grupo atua produzindo conteúdo. Da mesma forma, chama atenção a referência do empresário ao público jovem, que cada vez mais se informa por meio de vídeos.

Para além da transmissão ao vivo de vídeos por diferentes grupos de mídia e usuários independentes, o Facebook dispõe do recurso de auto-play de vídeos sem som para organização destes no feed de notícias dos usuários e a atual Watchlist (lista de assistência) que congrega vídeos de diferentes fanpages que curte ou segue. Elementos que consideramos uns dos mais significativos na montagem do ininterrupto fluxo de conteúdo disponibilizado pelo Facebook, agora mais do que nunca com marcas do televisivo, da narrativa de suas produções às lógicas de produção e monetização dos mesmos.

Tanto a estratégia de incorporação do auto-play em 2015, quanto a do Facebook Live em 2016, foram bastante comentadas no mercado de tecnologia e consideradas tendências no momento de seus lançamentos. Sunley (2017), por exemplo, destacou que 2016 foi o grande ano para as redes sociais e que a estratégia de incorporar transmissões ao vivo do Facebook deu um grande “empurrão” (a big push) no funcionamento do site. O colunista citou ainda como um incremento, a inserção dos stories “que adicionam mais contexto e rapidez ao que compartilhamos, estão mudando as expectativas do público sobre como comunicamos nossas mensagens” (SUNLEY, 2017, p. 12)41.

A respeito do auto-play de vídeos no feed, anunciou The Wall Street Journal: “Muitas empresas de mídia digital estão observando o exemplo do Facebook, que construiu um grande negócio de vídeo usando sua estratégia de reprodução automática” (SHIELDS, 2015, p. 2)42. Com essa possibilidade de fruição de vídeos de forma automatizada e sem quebrar o fluxo de leitura do usuário no feed, muitos anunciantes foram despertados para o potencial do que Sloane (2015) denominou de meio-vídeo. Especialmente para disponibilização de um formato de anúncio chamado cinemagraphs, tipo de GIF composto por uma foto na qual apenas uma parte da imagem se move, atualmente apropriado por inúmeros anunciantes e usuários independentes para produção de conteúdo.

information by watching video, whether that’s on our site or on platforms such as Snapchat, Facebook, YouTube, OTT, Instagram or television” (GITTRICH, 2016 apud REIN & VENTURINI, 2018, p. 3371).

41 Tradução nossa do trecho original: “Which add more context and immediacy to what we share, are changing

audience expectations on how we communicate our messages” (SUNLEY, 2017, p. 12).

42 Tradução nossa do trecho original: “Many digital media insiders are watching the example of Facebook, which

O foco em todas as estratégias relacionadas à incorporação de vídeos pelo Facebook é disputar e prender a atenção dos usuários no fluxo de conteúdos oferecido pelo site, tal como faziam e seguem fazendo os grandes mercados de produção audiovisual, da televisão ao cinema e agora plataformas de VoD. Segundo Rein & Venturini (2018), por ser um canal atrativo, os grandes produtores de conteúdo têm concentrado sua produção para o Facebook e/ou alternado a publicação entre seus próprios sites e redes sociais. Por isso, estes estão cada vez mais dependentes dos fluxos estabelecidos pelos sites de redes sociais e assim suscetíveis à influência dos mesmos.

No que concerne às estratégias das plataformas de vídeo sob demanda, muitos são os exemplos que marcam os últimos anos e certamente tem permitido novas formas de consumo. No caso do Netflix, por exemplo, destaca-se o recurso de download temporário de conteúdos para assistir offline e surpreende as formas de controle que a plataforma implementou para bloquear a circulação dos conteúdos exclusivos em outras janelas.

Da mesma forma, em mercados onde a Netflix já tem um público consolidado, como México e Brasil, além de oferecer os conteúdos exclusivos, tem investido na produção nacional ou minimamente na língua materna dos consumidores. No Brasil, por exemplo, a primeira série “original Netflix”, intitulada ‘3%’, foi lançada em 2016 e se tornou a mais assistida nos EUA, dentre as produções de língua estrangeira, leia-se, não inglesa (LOPES et al. 2018, p. 132). Além de atender a um anseio do público, esse tipo de produção é também motivada pelo tipo de regulação que as plataformas consolidadas passam a seguir, por conta das legislações locais, que no caso do Brasil, exigem uma cota obrigatória de conteúdo nacional em VoD43.

No que concerne ao YouTube, segundo dados do OBITEL, por conta do aquecimento do mercado e a grande visibilidade que esta rede ganhou no Brasil nos últimos anos, emissoras de TV aberta passaram a disponibilizar alguns conteúdos via canais oficiais. No caso do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), o foco tem sido fazer circular via YouTube obras voltadas ao público infanto-juvenil, também exibidas em sua grade de programação. Já Globo e Record TV disponibilizam conteúdos promocionais, pois as produções que vão ao ar ou circulam apenas nos seus SVoD são de acesso restrito a assinantes. 43 Processo iniciado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) no início de 2017. A regulamentação versa sobre tributos, monitoramento de informações, catálogos de títulos disponíveis, exposição e cotas de conteúdo nacional. Segundo dados do OBITEL, há mais de 40 serviços de VoD registrados pela Ancine, entre os quais estão Netflix, YouTube, HBO Go, os de grupos nacionais como Globo TV+ e R7 Play, entre outros (LOPES et al., 2018, p.128-129).

No caso de todas as emissoras de TV aberta brasileiras, porém, é possível perceber a grande presença de canais amadores que reproduzem de forma ilegal conteúdos exibidos na tela da TV. Entre os mais comuns estão novelas mexicanas, exibidas pelo SBT, mas também as telenovelas do horário nobre da Globo.

No sentido de controlar seus conteúdos e/ou monetizar sua assistência em outras plataformas, as emissoras de TV aberta tem estabelecido novas formas de organização de seu conteúdo, tendo os ambientes online como novas janelas de exibição. E essas estratégias seguem a lógica de mercado de TV, sendo a Globo a emissora que vem delineando a “identidade do nascente VoD no Brasil” (LOPES et al., 2018, p. 128). Entre os exemplos, está o caso da série ‘Carcereiros’, disponibilizada na íntegra no aplicativo Globo Play, posteriormente exibida no canal +Globosat – da própria emissora, mas disponível a cabo –, e só então indo para a TV aberta.

Um aspecto relevante destacado por Lopes et al. (2018), e que possivelmente tem orientado os investimentos das emissoras no Brasil, é que – como veremos nos dados contextuais a serem apresentados adiante –, a banda larga tem hoje maior penetração que os serviços de TV paga no Brasil. Logo, o país está se tornando “um importante mercado para a plataformas VoD. Entre elas, a principal é o Now (América Móvil) – mais de 1,3 milhões de streamings” (LOPES et al., 2018, p. 131). Nesse caso, é interessante observar que o Now é um dos maiores provedores de internet e TV a cabo do país, e que entre os conteúdos mais acessados estão produções nacionais de comédia, como ‘Vai que cola’ e ‘Os homens são de Marte e é para lá que eu vou’, ambas de canais de TV à cabo da Globo, respectivamente Multishow e GNT.

De modo geral na Ibero-América, segundo o OBITEL, o nível de penetração do VoD varia de um país para o outro. Em todos os casos, pode-se afirmar que “as novas modalidades de ver televisão estão a enraizar-se, sobretudo, nas camadas mais jovens, ainda que em diferentes velocidades, contribuindo para a diminuição das audiências dos canais free-to-air” (BURNAY et al., 2018, p. 69). Nesse cenário, vale destacar que o Brasil é, segundo o OBITEL, o país com maior produção de conteúdo para a web.

Ainda com base na pesquisa comparativa realizada em 2017 pelo OBITEL, há dois conjuntos de países atendendo ao desenvolvimento do digital. O primeiro grupo é composto de países como Brasil, Espanha, Estados Unidos e México, que têm uma experiência mais consolidada. Já na Colômbia, Chile, Peru, Portugal, Uruguai e Venezuela, “a produção e o consumo de conteúdos ficcionais no digital emergiram e/ou tornaram-se mais expressivos” nos últimos anos (BURNAY et al., 2018, p. 70).

[...] maior distanciamento para observarmos devidamente como essas dinâmicas atuarão no plano dos formatos industriais e das matrizes culturais. Em contínua expansão, estudos e pesquisas sobre ficção televisiva estão diante de questionamentos que envolvem encaixes e ajustamentos de paradigmas. A questão sobre o que consideramos televisivo – na própria televisão e em outros ambientes – tende a ser uma das mais problematizadas (LOPES et al., 2018, p. 133).

Como reconhecem Rein & Venturini (2018), no cenário de ecologia da mídia, ainda que alguns atores sejam mais poderosos que outros, figuram hoje certamente os sites de redes sociais.

A natureza descentralizada das mídias digitais não deve nos cegar para o fato de que seu desenvolvimento não é de modo algum natural ou sem arte. Certamente, o sistema de mídia compreende um grande número de atores, mas alguns deles são mais poderosos do que outros, e suas estratégias afetam fortemente as direções nas quais o sistema se transforma. O mundo dos sistemas de mídia digital assemelha-se menos a um ecossistema primitivo que evolui livremente sob a mão invisível da sociedade ou do mercado, um pouco mais uma paisagem cultivada em que as tendências naturais interagem com as iniciativas de um grande mas não indefinido número de influentes “jardineiros” ou “agricultores”. Entre esses poderosos atores estão, é claro, as chamadas plataformas de mídia social (REIN & VENTURINI, 2018, p. 3360)44.

Configuração que segundo Jensen (2015) tem tornado os sites de redes sociais cada vez mais ambiências de um grau de comunicação de muitos-para-muitos, tal como os meios massivos de comunicação. Assim, na análise do autor, ainda que nenhum meio de comunicação seja mais ou menos social que outro, como parte integrante da esfera pública, as redes sociais hoje também admitem pressão de todos os setores da sociedade civil.

Ainda nesse sentido, cabe citar a provocação feita por Jost (2011) a respeito do conceito de convergência. O autor reconhece que, mais do que um cenário de pacífica convergência, vivemos atualmente uma “luta intermídia”, permeada por disputas e conflitos, próprias do mercado midiático (JOST, 2011, p. 95).

Esses e outros aspectos evidenciam a necessidade de olhar de forma crítica e atenta para o cenário de convergência midiática, dado o risco de avaliarmos tudo como uma grande sacada de mercado ou resultado da “liberdade” das audiências. Isso não quer dizer que não reconheçamos as potencialidades de transformação deste novo cenário, que inclusive já estamos acompanhando e experienciando. Entretanto,

44 Tradução nossa de trecho original: “The decentralised nature of digital media should not blind us to the fact that

their development is in no way natural or artless. Surely, the media system comprises a large number of actors, but some of them are more powerful than others and their strategies affect heavily the directions in which the system transforms. The world of digital media systems resembles less a pristine ecosystem evolving freely under the invisible hand of society or the market, rather more a cultivated landscape in which natural tendencies interact with the initiatives of a large but not indefinite number of influential ‘gardeners’ or ‘farmers’. Among these powerful actors are, of course, the so-called social media platforms” (REIN & VENTURINI, 2018, p. 3360).

é preciso acionar uma visão crítica que nos proteja de uma leitura que supervalorize a técnica. Em uma crítica, Wolton (2014, p. 25) afirma que o “sonho da Internet nos faz confundir a liberdade individual, quando por trás existe a criminalidade, a perda da liberdade individual, a ‘rastreabilidade’, a droga, a manipulação, as máfias”45. Apesar de a internet não ser apenas isso, o questionamento do autor corrobora um pensamento que expusemos há pouco, relativo ao potencial transformador desse (novo) cenário de consumo de vídeos entre os jovens. Que as audiências produzem sentido, faz tempo que sabemos, mas até que ponto as capacidades de criação e compartilhamento de experiências vivenciadas nas redes e os fluxos interacionais identificados nesta pesquisa têm contribuído para a reconfiguração das realidades comunicacionais de nossa sociedade? Wolton (2014, p. 24) problematiza, por exemplo, que “temos cinco bilhões de rádios, três bilhões e meio de celulares e computadores, mas nada nos fez mais tolerantes. A globalização não assegura a paz”46. Por isso, precisamos refletir sobre como as experiências de consumo das audiências as têm empoderado ou não nesse novo cenário. Isto se constitui, para Padilla et al. (2011), como importante questão de pesquisa no futuro breve.