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2.5 AS SÉRIES DOS ARQUIVOS

2.5.3 Série 3 Zonas de destruição

Figura 12 - A child crying, N.J. 1967

.À beira do Abismo

Daniela foi levada para o Pronto Socorro depois de ter sido agredida por alguns homens nas proximidades do barraco onde estava morando. Suspeitou-se que seus gritos de dor eram uma apendicite e, até que fosse descartado esse diagnóstico, pensou-se em uma internação psiquiátrica para Daniela. Ela estava em situação de rua naquele período e não teria onde aguardar os resultados dos exames aos quais fora submetida.

Daniela foi encaminhada para o Hospital Amarelo a pedido da equipe do CAPS III7; eles disseram que ela não estava frequentando o serviço há bastante tempo. Em poucos dias, foi descartada a hipótese de apendicite. Ela tinha uma dor abdominal persistente que possivelmente levou a equipe a cogitar esse diagnóstico. Mas essa dor de Daniela era um quadro antigo associado aos problemas de estômago que passou a ter depois que tomou veneno para tentar se matar.

Ela sentia muita dificuldade em permanecer no Hospital Amarelo, porque não conseguia ficar sem fumar. Tentava burlar as regras pedindo cigarro para todos que lá passavam. Eu fui uma dessas pessoas.

Anos atrás, havia atendido Daniela quando trabalhava nesse CAPS III. Foi difícil encontrá-la naquela situação. Ela estava muito diferente de quando a conheci. Sua aparência física havia mudado. Lembro-me de como era vaidosa, como gostava de se cuidar e vestir boas roupas. Ela tinha bom gosto, algo que dizia preservar do tempo em que era dona de uma loja de roupas. Nove dias após a internação, foi discutida sua alta. Lembro que fui acionada pela Secretaria de Saúde, que me informou que haviam recebido um pedido de internação compulsória para a ela. Como eu estava trabalhando como Apoiadora de Saúde Mental daquela região, eu fiquei responsável por dar encaminhamento a essa Ordem Judicial.

Quando falei com sua mãe, ela disse que não sabia mais o que fazer e procurou a Justiça. Apesar da fragilidade e da dificuldade para lidar com a filha, lembro que Dona Josefa sempre procurou os serviços tentando tratamento para ela.

“Quando Daniela começou a roubar as coisas dentro de casa para usar drogas ficou impossível deixar ela em casa. Ela foi ficando violenta com a gente... Eu já criava o filho dela

7 CAPS III atende pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, proporcionando serviços de atenção

contínua, com funcionamento vinte e quatro horas, incluindo feriados e finais de semana, ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno a outros serviços de saúde mental, indicado para Municípios ou regiões com população acima de duzentos mil habitantes (12).

e precisava dar bons exemplos para ele. Ele estava ficando muito agitado de ver a mãe naquele estado”, explicou-me Dona Josefa.

Nesse período, Daniela passou a morar com o namorado, preso recentemente. Desde então, perdeu a casa onde viviam e “acabou indo morar na rua com um grupo de amigos do namorado. Tenho medo que alguma coisa pior aconteça para ela na rua, diz a mãe. Não sabemos o que essas pessoas são capazes de fazer né”?

A equipe do CAPS III concordou o pedido de internação compulsória feito pela mãe e propôs que Daniela fosse para o Hospital Azul, onde achavam que Daniela ficaria mais tranquila, pois poderia fumar.

Um corpo em chamas

Quando eu ainda era uma menina, minha mãe me trocou pelas drogas.

Eu e meu irmão fomos morar com uma “tia” que batia muito na gente e nos obrigava a vender as coisas que ela roubava. Um tempo depois, ela foi presa. Outra “tia” nos acolheu. Mas o namorado dela logo implicou comigo. Quis abusar de mim e eu não deixei. Ele começou a ameaçar me matar com uma arma. Eu tive que fugir. Meu irmão ainda era muito pequeno e não tive coragem de tirá-lo de lá.

Fiquei muito revoltada com a vida. Certa vez me “pegaram” na rua. Foi horrível. Até então eu só fumava maconha, mas depois que isso aconteceu resolvi que ia experimentar a pedra. Viciei rápido nela. Se pudesse fumaria até meu pulmão explodir. Mas, para pagar a minha droga, tinha que me prostituir. Quando estava lá, na rua, me vendendo, senti pela primeira vez uma vontade de por fogo em mim mesma. Acho que sentia uma vontade enorme de morrer. Me queimei algumas vezes.

Em uma delas fui parar no Pronto Socorro e chamaram o Conselho Tutelar. Eles me levaram para um abrigo, onde morei por um tempo e até voltei a estudar. Quando a minha “tia” foi solta, me mandaram para a casa dela. Mas nós brigávamos muito e ela me pôs pra fora de casa no dia do Natal.

Eu voltei pra rua. Um tempo depois me prenderam. Estava vendendo uns kits pra levantar uma grana para comprar a minha droga. Mas acho que eu dou muita bandeira e os policiais perceberam rápido. Fiquei um ano e quatro meses na Fundação. Quando me soltaram, fui mandada para outro abrigo, mas não consegui ficar lá. Fugi.

Era como se eu não encontrasse paz em lugar nenhum. Nenhum lugar estava bom para mim. Logo fui presa de novo e voltei para a Fundação. Da segunda vez, eles não puderam com tanta loucura que aprontei e me internaram no Hospital Azul. Eu percebi que, para me darem alta do Hospital, eu precisava dizer que tinha um lugar pra onde voltar. Mas eu sabia que ninguém ia me aceitar em lugar nenhum. Ouvi uma conversa atrás da porta entre a equipe e um pessoal do abrigo onde eu já fiquei. Eles disseram que não podiam ficar comigo porque eles não tinham profissionais vinte quatro horas por dia que pudessem ficar comigo. Diziam que eu peço atenção o tempo todo.

Fora o tempo que eu passava pensando no que eu ia fazer quando saísse de lá, nada que eles me ofereciam me interessava muito. Lembro que algumas vezes pensava na rua e no crack. Outras vezes sentia saudade do meu irmão. Mas tudo isso ia se misturando e se confundindo

na minha cabeça. Até que eu só sentia mesmo vontade de explodir! Nesses momentos, eu procurava algum cara e tentava fazer sexo com ele. Tive algumas relações lá. Algumas vezes eu contei para a equipe e em todas elas assumi que fui eu quem quis, nunca fiz sexo com eles obrigada!

Afinal, já estava subindo nas paredes! Não tinha como me segurar mais! Eles tinham que entender isso.

Problema é que um deles tinha AIDS. Minha mãe e meu irmão já têm esse vírus. Talvez essa tenha sido minha vez de pegar... Vou ter que esperar os exames, mas toda vez que conto que fiz sexo aqui eles fazem um monte de testes em mim.

Ontem me chamaram para conversar sobre a minha alta. Marcaram uma licença para o final de semana. Disseram que estão combinando de eu ir visitar a minha “tia”. De pronto eu aceitei, porque não via a hora de poder sair daqui, mas depois me subiu uma raiva que me deixou cega. Era uma coisa incontrolável, eu queria destruir tudo o que via pela frente. Bati em um monte de pacientes, quebrei vidros e cadeiras. Depois que conseguiram me acalmar, me levaram no Pronto Socorro e tomei uns pontos no braço.

Quando voltei para o Hospital, já estava decidida. Eu não queria ver a minha “tia”. Resolvi fugir antes do dia da licença. Melhor voltar para a rua. Aproveitei o horário do almoço e escapei do Hospital. Fui lá para o Centro. Fiz uns programas para levantar dinheiro e fui fumar pedra. Nesses dois dias fiquei muito louca. Não sei o que me deu na cabeça. Entrei numa loja e roubei. Foi só R$ 20,00. Acho que eu queria mais dinheiro para usar, não sei. Chamaram a polícia e me levaram para a cadeia.

Fui presa por roubo e ameaça. Na cadeia, a minha irritação só piorou. Eu não aguentava ficar aquele tempo todo parada. Não conseguia dormir. Ficava sem ar, sufocada. Às vezes tinha vontade de me quebrar toda até apagar. Deve ser por isso que chamaram o médico para vir aqui.

Quando a equipe do Hospital Azul veio para conversar comigo, senti um arrependimento do que eu fiz. Eu podia estar lá com eles. Pedi para eles tentarem me levar de volta para lá, mas disseram que isso não era possível.

Fiquei presa uns quatro meses. Fui transferida de um lugar para o outro até que me liberaram e voltei para rua. Agora estou aqui, no Hospital Amarelo, há uns três dias. Eles disseram que vou ficar até terminar o tratamento. Eu estou com pneumonia, herpes e sífilis.

Você perguntou o porquê eu tinha tantas marcas de queimadura não foi? Será que consegui te explicar?

Um homem cindido

O que será que faz um homem se atirar na frente de um trem em movimento? Pois bem, essa foi a atitude que levou Irineu para a psiquiatria. Ele nunca tinha passado por nenhum acompanhamento em serviço de saúde mental antes disso. Chegou até a unidade por indicação dos ortopedistas, cheio de parafusos e gesso em razão das várias fraturas que tivera.

“Sinto muita dor”!

Dias depois, a equipe recebe um mandado de busca e apreensão de Irineu. Ele deveria aguardar, na penitenciária, o julgamento das facadas que dera no cunhado. Como ainda não tinha previsão para sua alta da internação psiquiátrica, esta fora judicializada, arquitetou-se, então, uma escolta policial para acompanhar Irineu no decorrer da internação. Desde então, essa escolta permaneceu do seu lado durante as vinte e quatro horas de todos os dias em que ainda esteve internado.

“Ele sempre foi muito agressivo, explicou o filho. Minha mãe disse que se separou dele por isso. A Marlene, sua atual esposa, disse que não quer vê-lo nunca mais! Mas, eu ainda me importo com o meu pai”.

Certo dia viram a expressão rija de Irineu se desfacelar. De súbito, quase assim como em um desabafo, ele chorou dizendo que havia perdido tudo o que tinha. Parecia que alguma coisa ali estava desmoronando...

Depois disso, não se viu mais Irineu derramar uma só lágrima. Parecia ter se conformado de certa forma com o destino que lhe esperava. Ele foi levado pelos policiais uns dias depois para a prisão, com um encaminhamento médico que indicava a necessidade de continuidade do tratamento de depressão.