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2. A linha da clínica em território

2.7 Convidando a clínica a dançar

Pesos sentidos Corpos caídos Chão que se a b r e E um novo impulso que chega com um convite Vamos dançar?

Entre desequilíbrios diante do chão que se abre, um novo impulso se chega convidando a clínica a dançar. Claras-loucas e Seus-Josés-homens-quaisquer fazem dançar o corpo da clínica, diante do encontro com suas estranhezas, provisoriedades, instabilidades. Ao experimentarmos habitar as brechas clínicas abertas, buscamos, como clínicos-bailarinos criar novas formas de equilíbrio, partindo do próprio desequilíbrio. Ao decompor o corpo-clínico formatado em suas partes, evidenciando seus agenciamentos constituintes, produz-se um equilíbrio paradoxal, móvel, cheio de idas e vindas, no qual estão presentes a deformação, a assimetria e a coexistência (GIL, 2001). Múltiplos corpos em um só. Formas estranhas, congregando seres heterogêneos convidados a dançar em um equilíbrio encharcado de paradoxo.

Clara, o filho, os vizinhos, a ACS, a farmacêutica, a auxiliar administrativa e a psicóloga, personagens-bailarinos desses movimentos clínicos na atenção básica, tornam-se outros a cada pedacinho do chão que se desmancha, liberando ventos que nos fazem impulsionar. Sentimos os corpos deformando, assumindo gestos cotidianos, improvisando a partir dos pontos de contato variantes ao modo do Contato-Improvisação (CI) na dança30. Medicamentos, músicos, frases, facas e

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O Contato Improvisação (CI) é um modo de dançar criado pelo bailarino-coreógrafo norte- americano Steve Paxton nos anos 1970. Toma o contato entre dois corpos como ponto de partida para o movimento/improvisação. "O contact envolve dois parceiros: a ideia é moverem-se continuamente, apoiando-se um no outro e mantendo sempre um ponto ou um plano de contato. O

casas se colocam como elementos que vêm compor esses encontros, complexificando os agenciamentos. Múltiplos agentes humanos e inumanos entram em ação, produzindo estranhamento e novas configurações. Com esse corpo-clínico convidado a dançar, dispomos apenas do próprio corpo para tentar criar outra realidade corporal, agenciar, transgredir, como no ensina Souza (2012).

Tal é a característica própria do agenciar, ou seja, a incitação ao estranhamento pela colocação em evidência da diferença na forma do conteúdo e na forma da expressão. Agenciar acaba por consistir no ato de renúncia ao já sabido e de entrega ao estranhamento em si, em termos do agenciamento de enunciação que desarranja modos estabelecidos de dizer e fazer e, em termos de agenciamento maquínico (Deleuze, 1995) de desejo, que cria maneiras outras de ser sujeito desbancando regimes cristalizados de subjetividades. (SOUZA, 2012, p. 31).

Assim, a clínica estranhada, em movimento e buscando criar um equilíbrio paradoxal a partir dessa diversidade de elementos que a compõe, é chamada a bailar. Nesse convite, tentamos colocar o peso sentido não como obstáculo, mas como aquele que nos auxilia a deslizar melhor, como os bailarinos pesquisados por Gil (2001). Buscamos o movimento de menor esforço para transformar nosso espaço clínico, complexificar movimentos, tentando fazer do próprio espaço-corpo-clínico o meio no qual transbordamos e vamos perdendo os pesos, sentindo levezas. Pesos e levezas se entremeiam em meio aos chãos instáveis e às forças do tempo. Tentamos, com esse convite a dançar, construir possibilidades de criar novos modos de ser clínicos, a partir desses encontros, novos modos de ser louco em conexão com o mundo, de ser trabalhador em um território cheio de expectativas, ideais, metas, burocracias, mas, também, de elementos, casas, proximidades.

Queremos estremecer um mundo significado que atribui um lugar ao louco, ao doente, demarcando fronteiras e outro ao trabalhador, sabedor, curador, a ser avaliado para ter seu desempenho melhorado ao máximo. Queremos furar desempenhos atléticos e virtuosos, mentes ressentidas, corpos amornados, identidades fixadas, trazendo, com a dança que se insinua, corpos caídos, passos tortos, encontros assimétricos, corpos esquecidos dos comandos, atravessados por intensidades. Partimos, entretanto, deste mundo. É o que temos, nosso presente. Assim como na dança, que parte do próprio corpo, é por dentro da linguagem,

movimento é inventado, proposto, dado e recebido a partir dessas grandes vagas de apoio recíproco, em uma improvisação em que o sujeito assume toda a iniciativa do deslocamento do seu próprio peso pelo toque gravitacional do corpo do outro." (LOUPPE, 2012, p. 109).

representada e significada, que construímos movimentos de ruptura, de uma espécie de negação dos referentes externos a nos conduzir e tentamos criar outros modos de expressão (GIL, 2001, p. 37). Paradoxalmente, partimos dos lugares instituídos, pelo meio, mas queremos produzir clínica.

Partimos do corpo, tentando algo nele abandonar. Em um desejo de colocar a clínica a dançar, temos de deixar os pertences desnecessários de lado, antigas partituras cansadas, tentando fazer dos pesos impulsos e abrindo o corpo às virtualidades, a um campo de possíveis gestos. Em um chão que se abre, não se trata de retomar alturas protocolares, distanciando-se dos territórios, mas de habitar as brechas do chão, tentando se equilibrar nas fissuras que liberam devires. Clinicar, aqui, implica em justamente atingir o incondicionado, aquilo que ainda não é. Não queremos resgatar a essência de uma Clara saudável que enlouqueceu e nem o ser trabalhador originalmente eficaz perdido em meio ao território novo. Queremos, isto sim, esvaziar e abandonar tais pretensões, mesmo atordoados com elas, e variar:

Deslocar a clínica de sua raiz etimológica grega Klinicos, que tem o sentido de ‘debruçar-se sobre o leito’ de um indivíduo moribundo para restituir-lhe um estado perdido. Encontrar, então, como etimologia potencial o conceito epicurista de clinamen, que designa o desvio que permite que os átomos, ao caírem no vazio em virtude de seu peso e de sua velocidade, se choquem e se articulem na composição de coisas. Esses pequenos movimentos de desvio teriam a potência de geração de mundo. Afirmar esse desvio e essa potência gerativa: é assim que a clínica passa a se fazer. (FONSECA; FARINA, 2012, p. 49)

Convidamos a clínica a dançar, desconstruindo suas centralidades e protagonismos, hierarquias que direcionam gestos. Desejamos desviar, deixar cair no vazio, nos buracos que se abrem no chão, os elementos que a compõem e, ao modo dos átomos, a partir de seu peso, acelerações e lentidões, abrir possibilidades de encontros, agenciamentos, potências de criação.