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4. Desdobrando gestos pesquisantes

4.1 Entre misturas moventes

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito (BARROS, 2016, p. 33).

Misturamos duas linhas que nos atravessam: clínica na atenção básica e dança. Ambas compõem uma série de elementos, emaranhado de linhas em princípio desencontradas. Somos corpos trabalhadores, saturados por queixas, pelo excesso de organismo, de burocracia, de programação que, muitas vezes aprisionam-nos junto aos usuários nas tentativas de apacientamento. Corpos que se veem com os queixos caídos, diante do chão que se abre, criando instabilidades, são forçados a produzir desvios clínicos, inventar fugas potentes, ser porta de entrada e de saída diante dos engessamentos padronizantes e das vidas imprevisíveis que se cruzam. Nesse desequilíbrio, somos convidados a dançar e nos encontramos com corpos dançantes em busca das desconstruções necessárias para colocar o corpo a movimentar mais livremente. O convite não sugere qualquer dança. Corpos buscam criar sentidos, mesmo esvaziando ao máximo possível suas representações.

Nesse encontro, saltitam perguntas e problemas se insinuam. Na clínica, questionamos os padrões de ser saudável, de viver e de cuidar, tomados como forma essencial, doutrinantes e determinantes de condutas imutáveis. Cruzam-se as linhas e as questões pulam de uma para a outra, deixando um pé lá e outro cá. Questionamos as verdades das formas eretas, atléticas, idealizadas e inatingíveis reafirmadas na dança ainda marcada pelo virtuosismo. Excesso de códigos. Sobrecodificação de linhas clínicas e dançantes nos fazem sentir os pesos das reproduções automatizadas. Corpos pesados se inclinam em direção ao chão, desafiando as criações. Medo diante dos perigos que se anunciam. Formas deformadas, amorfas. Desmancharemo-nos diante das desconstruções necessárias? Seguiremos clinicando e dançando? Ou, então, entraremos em reterritorializações, capturando novamente os movimentos clínicos e dançantes a assumirem apenas novas identidades diante do outro campo que se chega? Cuidado! Podem se indiferenciar ou se acabar?

Apesar dos desejos de aproximar, por vezes, mantêm-se as distâncias entre as linhas entrecruzadas. Que relações estabelecem? Encostam uma na outra? Têm pontos comuns? Divergem para lados opostos? Diante do convite para a clínica dançar, percebemos os abismos e as proximidades que se instauram nesse encontro de vivências, autores. Rodrigues (2009) nos fala da incomunicabilidade entre uma vivência e outra na modernidade, que reforça subjetividades privatizadas: "Fragmentação e desorientação porque, entre uma vivência e outra, entre uma geração e outra, há um abismo. Uma incomunicabilidade." (p. 240). Cada vivência se individualiza e se endurece, erguendo muros que tentam demarcar fronteiras, impedir ou regular transmissões e trânsitos entre elas. Formam-se linhas rígidas, segmentarizadas, que buscam manter separações, sem se deixarem penetrar pelas outras.

Em uma compreensão de mundo múltiplo, heterogêneo, cheio de segmentaridades e também atravessado por linhas e fluxos diversos, conforme Deleuze e Guattari (1996) nos apontam, a segmentaridade se faz presente em toda parte, por todos os lados e em todas as direções.

A segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarizado espacial e socialmente. A casa é segmentarizada conforme a destinação de seus cômodos; as ruas, conforme a ordem da cidade; a fábrica, conforme a natureza dos trabalhos e das operações. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 83-84).

Estas segmentaridades podem ser binárias, já que se organizam através de grandes oposições duais; circulares, com diferentes círculos sobrepostos; ou lineares, nas quais cada segmento pode representar um episódio ou um processo do viver. Em alguns momentos, remetem a indivíduos, em outros, a grupos, ou aos dois ao mesmo tempo. Também podem se dar de modos distintos. Por vezes, um tipo de segmentaridade mais “moderna”44

e dura, na qual a binaridade vale por si mesma e coloca-se como biunívoca, a circularidade se torna concêntrica e as linhas se sobrecodificam e se homogeneízam. Neste caso, “Não só cada um tem sua unidade de medida, mas há equivalência e traduzibilidade das unidades entre si.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 88). De outro lado, um modo mais “primitivo” e

44 “Moderna” e “primitiva” estão entre aspas aqui, seguindo a escrita dos autores, no sentido de não

delimitar cada tipo de segmentaridade com uma época, considerando que, apesar de suas características de modos de vida em cada período histórico, ambas convivem e estabelecem relações mais complexas não tão demarcadas apenas por diferentes tempos cronológicos.

flexível, em que as binaridades resultam de multiplicidades com n dimensões e as circularidades têm arredondamentos, mas não centros convergindo a ressoarem juntos, em um mesmo ponto. Distinguem-se, assim, pela natureza de seus sistemas de referência, processos, mas também são inseparáveis, embaralhadas.

Toda sociedade, mas também todo indivíduo, são pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular. Se elas se distinguem, é porque não têm os mesmos termos, nem as mesmas correlações, nem a mesma natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se são inseparáveis, é porque coexistem, passam uma para a outra, segundo diferentes figuras como nos primitivos ou em nós – mas sempre uma pressupondo a outra. Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 90).

E, por isso, Deleuze e Guattari (1996) optaram por nomear as linhas e os segmentos, quando se trata de um âmbito mais molar, e os fluxos, quando se refere à molecularidade. Linhas e fluxos compõem todos os seres, processos. Linhas de segmentaridade dura, que substituem códigos desgastados por uma sobrecodificação, e que reterritorializam territórios perdidos. Linhas mais flexíveis, com códigos e territorialidades entrelaçadas, segmentaridade mais primitiva, com territórios e linhagens compondo o espaço social. E linhas de fuga, fluxos de quanta, marcadas pela descodificação e desterritorialização, mutantes e que tendem a escapar aos processos de captura.

Deste modo, nesta tese, diante do chão que se abre e das perguntas que dessas fissuras saltam, somos convocados a misturar linhas. Percebemos que, para além das durezas de cada linha, atravessam-se questões, inquietações, nos deixando atônitos. Somos convocados a entremear sem subordinar, tentando não estabelecer novas durezas, inspirados pela ética da coexistência, de Deleuze e Guattari (1996), onde as linhas são imanentes umas às outras. Criam um plano relacional que não subordina uma à outra e tampouco recorre às formas deterministas e interacionistas (ESCÓSSIA, 2014). Linhas se cruzam e se transformam, já que “(...) é com a linearização e a segmentarização que um fluxo se esgota, e é delas também que parte uma nova criação.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 96).

Desafiados a criar misturas que comportem minimamente nossas agonias, percebemos que uma das questões colocadas nesse encontro de linhas não são exatamente as formas assumidas: forma de um espetáculo artístico ou do bailarino

atlético, de um paciente dito saudável, de um trabalhador dito competente ou de uma clínica eficaz. Obviamente, as formas têm seu lugar, importância e são efeitos de modos de produção. Mas, o ponto aqui parece ser outro. Não queremos perseguir tais formas pré-moldadas. Desejamos afirmar não “o” modo de dançar, mas movimentos possíveis aos corpos singulares; apostamos em uma clínica que não apenas quer ampliar potências de vida do outro, mas, também, quer-se ampliada. Por entre as formas, suspensas em um instante em que o chão se abre e deixamos os pesos pesarem, atravessam-se fluxos, devires transversais que parecem perpassar durezas. Intuímos fluxos por entre as linhas que movimentam, desestabilizando. Para onde nos levam os fluxos em encontro com as loucuras, feiuras, estranhices clinicadas e dançadas? Que movimentos fazem nossos corpos convocados ao improviso de aliançar clínica e dança? Que composições e disposições são possíveis?

4.2 Novas dobras problemáticas: como criar possibilidades de expansão de