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3. A linha dos corpos dançantes

3.5 Em busca de uma nova consciência do corpo

Consciência: com ou sem ciência? Estaríamos cientes? Corpo sim em meio aos entes

Ausentes À procura de novas corpon-ciências

Neste ponto da dança, a loucura toma conta e tira a consciência do comando. Claras-bailarinas-loucas se multiplicam. Começamos a construir linhas dançantes que vão ganhando forma não mais em palcos de teatros e nos aventuramos a produzir em uma escola infantil. Em Parte de Nós43, atravessamo-nos por fluxos

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Assumimos aqui uma perspectiva de realidade inspirada pela multiplicidade rizomática de Deleuze (2011a), que, em sua inspiração espinozista, compreende os corpos como ontologicamente iguais, apesar das diferentes potências e articulações singulares.

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Em 2014, estreamos, com o Grupo N Amostra, o espetáculo Parte de Nós, produzido e coreografado conjuntamente, que buscou investigar o lugar do desejo e de sua expressão em cada um de nós, resultante de uma pesquisa corporal coletiva de dois anos, tendo como cenário a Escola de Educação Infantil Garoto Sapeca remodelada. Foi dirigido por Letícia Paranhos e Gabriela Santos. Foi produzido um vídeo para trabalho interno que pode ser recuperado em: http://youtu.be/Z- xWIiFuxPs?list=UUBHBrHvphdYZj5Q93tN-OsQ

inventivos infantis e vamos ocupando cada sala de aula, o pátio, o banheiro, a sacada, a piscina, as escadas, a pracinha. A plateia, itinerante, sai de sua acomodação habitual para caminhar pela escola-teatro, posicionar-se nos diferentes cômodos, ler nossos escritos expostos pelos corredores e experimentar as sensações de uma atmosfera criada conjuntamente. Em meio aos vazios no espaço e no corpo, em um exercício de corporeizar o espaço e espacializar o corpo, experimentamos um novo processo mais poroso de pesquisa por dois anos, buscando modos de nos agenciarmos a tais elementos estranhos e heterogêneos.

Parte de Nós. Partimos do corpo, de nós. Mas, ao mesmo tempo, partimo-nos,

abrindo vazios, assumindo a condição fragmentária, infinitamente divisível que nos compõe. Os fluxos intensificados circulantes nos mostram novos modos de conduzir os movimentos em meio aos gestos conhecidos, sempre presentes.

Estamos loucos? Deixamos o corpo totalmente abandonado à desrazão? Tiramos a consciência, o corpo perde seu apoio, caímos definitivamente. Cessa a dança. Percebemos que temos de construir outros modos sem abandoná-la totalmente. Colocamos em suspensão a consciência arrazoada, que tenta comandar o corpo, subjugando-o, sem liberdade e autonomia, para efetuar seus movimentos preconcebidos tanto na clínica manicomial quanto nas danças representacionais. Novamente nos vemos provocados pelas dissociações corpo-mente, que fazem com que cabeças descoladas cheguem aos consultórios e às unidades de saúde. Não nos conformamos com o corpo atlético a comandar a dança, tampouco com um corpo orgânico a guiar a clínica. Sentimos, entretanto, o peso do corpo em toda sua objetividade, com suas articulações mecânicas, em encontro com esses novos espaços. Ele segue ali com sua materialidade. Mas, também, estamos tomados de virtualidade, espírito, energia. Reencontramos, nesse ponto, a ideia de Gil (2001) de que é o corpo virtual que dança, em uma associação corpo e espírito. O corpo segue se apoiando na consciência, senão caímos. Mas não é apenas o fato de estar consciente que mantém o corpo em equilíbrio, e sim a “consciência do movimento

que o percorre” (GIL, 2001, p. 25).

A arte do bailarino consiste assim em construir um máximo de instabilidade, em desarticular as articulações, em segmentar os movimentos, em separar os membros e os órgãos a fim de poder reconstruir um sistema de um equilíbrio infinitamente delicado – uma espécie de caixa de ressonância ou de amplificador dos movimentos microscópicos do corpo: esses, nomeadamente cinestésicos, sobre os quais a consciência não pode ter

controlo a não ser concentrando-se neles. (...) o corpo de carne dançando actualiza o virtual, incarna-o e desmaterializa-o ao mesmo tempo. (GIL, 2001, p. 26-27).

A consciência passa a integrar o sistema do corpo de um modo particular que não o governando, não sendo consciência de si ou de um eu. Age sobre ele e sobre si mesma ao mesmo tempo. Diminuindo as razões e o controle da consciência que entravam o movimento, tentamos deixar jorrar a espontaneidade, a vida, a fluência, inconscientes necessários para o surgimento do movimento dançado:

...Paramo-nos atrás de uma escada da escola infantil. Novo cenário desnivelado por entre duas paredes concretadas. Espaço objetivo. Vislumbramos uma cena possível, abrindo possíveis. Esconde-esconde. Corpo e pensamento somem atrás do anteparo concretado. Pequeno silêncio. Ops! Ressurge um dedinho pequenino a dançar, escapando do esconderijo. Um a um, dedinhos se movem e colocam a mão dançante como protagonista. Mão que vai puxando o corpo todo a levantar. Aparece, esconde-aparece, em um jogo corpo-concreto-parede. Vamos ensaiando em meio às invisibilidades. Da ausência nasce um movimento não mais guiado pela cabeça arrazoada. Agora com o corpo levantado, a mão retoma sua funcionalidade e nos faz apoiar no corrimão. Mãos inquietas passam a correr sobre o corrimão. Corre, corre mão!!! Deixam a cabeça para trás que não vê alternativa a não ser se pendurar. Escada que vira palco, que vira apoio, que vira penduricalho. Junto com o movimento, espaço segue sendo modificado. Com as cabeças arrazoadas, agora penduradas, fazemos do corrimão não mais penduricalho e sim escorregador. Escorregamos com o corpo todo escada abaixo, virando também o pensamento de lado. De pernas para o ar, encolhemos novamente. Que difícil esse esconde-esconde virado! Pequeno silêncio. De ponta cabeça, o corpo esconde-se novamente, alternando ausências e presenças. O pé surge lentamente, revesando protagonismos. Um pé e outro tomam a parede como chão, revirando perspectivas. Dançam soltamente, num apoio que agora se inverte para a cabeça (Fragmento de

diário de campo).

Nesse pequeno trecho ensaiado em Parte de Nós, repetimos diversas vezes os gestos, tentando nos diferenciar de nós mesmos. Buscamos dançar movimentos que criam vazios no espaço e ausências no corpo, experimentando novos

protagonismos, fragmentações, inversões. Escondem-se bailarinas loucas em meio à escada, alternando presenças e ausências ao modo Clara de se mover. Por vezes, retiramo-nos, em outros momentos, retornamos, guiados por outra parte do corpo- mente. Dançamos em meio às interrupções e descontinuidades. Viram-se do avesso corpo e pensamento. Mas que consciência é essa que se revira em meio aos giros do corpo? Está dispersa ou esperta? Diluída ou obstruída? Aumentada ou diminuída?

Na verdade, o bailarino ganha cada vez mais consciência do seu corpo (awareness) num duplo movimento paradoxal da consciência: tornando-se porosa, esta deixa de se concentrar exclusivamente sobre um objecto (um músculo, uma postura) para acompanhar o fluxo que atravessa múltiplos «objectos». A consciência do bailarino dissemina-se no corpo, dispersa-se, multiplica-se em inúmeros pontos de contemplação internos e externos; e, ao mesmo tempo, desvanece-se parcialmente enquanto consciência clara de um objecto, deixando-se arrastar pela corrente do movimento. (GIL, 2001, p. 160).

Os movimentos do corpo e da consciência se dão conjuntamente, sem que um subjugue o outro. Assim como o corpo se vê conduzido por seu desfazimento, a consciência se vê subjugada ao inconsciente, não se apagando frente a ele, entretanto. Mas que inconsciente é esse que assume os movimentos diante de um desfazimento do corpo? Experimentamos, nesta cena, um conhecimento que parte do corpo sobre o mundo diante das pequenas percepções. Consciência se descentra, dispersa e obscura, é invadida pelo corpo e entra na zona das pequenas percepções. Será este um corpo-inconsciente? Consciência cria poros em si mesma, deixando o corpo entrar e fazendo surgir o que Gil (2001) chama de consciência do corpo. O movimento dançado suscita uma espécie de consciência inconsciente, em um processo de libertar o corpo, entregando-se a si próprio. (GIL, 2001, p. 28).

Precisamos, então, concentrarmo-nos no movimento puro. Cria-se um vazio, afirmando-se o que ele chama da gramática do corpo, em contraposição à ideia de que a dança seria um modo de linguagem articulada. A dança se coloca como movimento e não remetida a um discurso através de recurso de linguagem outra. Assim, ao rolarmos em cambalhota, corpo e pensamento viram juntos, não tendo como a consciência se destacar e ver de fora. Com o vazio, o movimento invade o pensamento e a consciência, sumindo o hiato pensamento e corpo. Com o pensamento que se move, literalmente, cria-se um espaço virtual, paradoxal que une

corpo e mente, interior e exterior. Consciência porosa, que se abre ao corpo, ao mundo.

As pequenas percepções supõem uma zona de percepções de movimentos ínfimos e de forças poderosas. A percepção dos movimentos visíveis do corpo desencadeia outras percepções, de um outro gênero: «percepções» de movimentos virtuais. A auto-percepção do corpo cinestésico cria um espaço próprio: o facto de um corpo se virar numa cambalhota engendra um espaço virtual onde planos, linhas, curvas «se viram no ar». Porque não se percebe a cambalhota (como se fosse vista do exterior); mas é a cambalhota empírica que induz ou abre um espaço paradoxal virtual onde o baixo se torna o alto sem que a orientação se perca: neste sentido, o baixo pode tornar-se o alto sem deixar de ser ele próprio. E o mesmo acontece com as outras dimensões do corpo. A visão da cambalhota do ponto de vista do interior do corpo, quer dizer da sua profundidade, é o «vivido» do espaço do corpo. Este está para além do vivido da consciência (de um objecto) e, como vivido de um corpo já não é sentido, mas está nas fronteiras entre o sentido e o pensado. (GIL, 2001, p. 164).

Corpo em movimento se torna pensamento do corpo em movimento, transpondo limitações anatômicas, orgânicas, racionais. Pensamento entra em movimento para um lado e outro, vira cambalhotas junto ao corpo. Imbricamo-nos com o espaço do corpo virtualizado, tentando dar consistência as essas danças que se ensaiam com a consciência esburacada. Zona paradoxal, intercessora, que convida a clínica a dançar e com ela se faz clínica-dança. Plano de imanência buscado, necessário para que surja o vazio e se coloque a movimentar pensamento e ações como um só, em um ritmo esburacado.