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Quando o peso do corpo orgânico encontra o peso da mente arrazoada

2. A linha da clínica em território

2.4 Quando o peso do corpo orgânico encontra o peso da mente arrazoada

Assim, essa linha clínica da atenção primária se encontra com a saúde mental descentralizada e pulverizada junto com a cidade. Aparentes liberdades físicas. Outras formas e movimentos. Modos de aprisionamento do corpo e da alma em

identidades isoladas, bipolares, depressivas ou hiperativas, ao tentarem encontrar sentido e expressão para seus sofrimentos e modos de vida. Tentativas de moldar danças e gestos, diante de um contemporâneo veloz que acelera a música, o movimento, traz a cópia como recurso de expansão, anula o tempo das experimentações e diagnostica, simplifica, unifica, tentando reconhecer rapidamente o que ali se passa.

Percebemos que o diagnóstico, apesar de base de indicadores e de ações na atenção básica, nem sempre nos dá saídas, escapes aos movimentos loucos, não sendo suficiente para pautar as ações em um território permeado de múltiplos elementos da vida cotidiana (CUNHA, 2004). No COINMA, e em tantas outras unidades esparramadas, o cenário e o palco se enchem de institucionalização do adoecimento, espelhando gestos medicamentosos, contenções químicas, especialistas-diretores, fragmentando corpo e mente (e demandando da consciência a condução da dança) e nem por isso desacompanhados de intenso sofrimento de usuários e trabalhadores impossibilitados de dançar ou apenas se enrijecendo conforme a música. Dores no corpo-alma, corpos paralisados, perseguindo um significado e um modo de vida distante, padronizado, inatingível, que sufoca e restringe.

Clara-bailarina louca nada espera na sala de espera. Respondemos que precisa de especialistas-diretores-coreógrafos que endireitem seu gesto, idealmente possam ouvi-la com tempo (mas ela não tinha pressa?), apacientem sua mente desarrazoada. Ela resiste em acessar o seu lugar, o dito CAPS, e faz multidão com outras vozes que habitam a sala de espera impaciente.

Seu José. Seu. Nosso. Homem qualquer. Não é dito louco. Atribuem-lhe outro papel? Sentado no cantinho do banco, negro de olhos redondos, caminhada lenta, já carregando alguma idade, um pé de cada vez, contrasta com a pressa de Clara. Cumprimenta baixinho o vigilante do posto, carrega sua barriga sobressalente meio inclinado para trás, como quem deixa passar o futuro na frente. Vem medir a pressão e a glicemia toda semana. Outra vez, seu José? O que é que você quer? Medir, medir. Aquela calmaria dos gestos lentos e densos não parece combinar com a necessidade repetida de ver aqueles números que nada identificam. A técnica de enfermagem, saturada com a demanda imensa, fazendo gestos diferentes por todas as salas da unidade que lhe exigem braços prolongados e ágeis, o recebe e cochicha para a colega ao lado: “Ele não tem nada, é psicológico”. Nada = ausência

de sinais orgânicos medidos = psicológico. Pressão e glicose inalteradas, compassadas, mas em des_com_PA_sso com as sensações que atravessam esse homem comum. A cabeça pesa, dói mantê-la sobre o pescoço. Dores no peito, no corpo, insônias que o mantém vigilante quando todos parecem se aquietar. Dores investigadas, nenhum diagnóstico detectado. Novamente, encontramo-nos com a singularidade qualquer da qual nos fala Pelbart (2003)? Fluxos desconhecidos, nomeados QUEIXAS. Queixas-trabalhadoras, queixas-usuários. Queixa. Queixo. Que ixo? Que é isso? O queixo cai no chão. Ao chegar lá, na base da atenção, não encontra fundamento para seu devido sofrimento. Seu, nosso. Há quem diga que a etimologia da palavra queixa vem de quassare, sacudir, mover.

Queixo caído chacoalha a clínica:

- O senhor, seu, Seu José, não precisa de médicos, não!

A clínica, carregada de um PESO só dela, mantém-se firme e diz:

- O senhor não tem nada não. Saia do chão! Vá logo ver uma psicóloga e dela não abra mão!

Nessa sacudida, sacudidela, saco cheio em que loucuras especializadas se misturam com os psicológicos ausentes de sintomas orgânicos de homens quaisquer, perguntas saltam mesmo com os pesos encontrados. Em que momento separamos a mente do corpo e criamos respostas clínicas diferenciadas para cada uma dessas partes? Cabeças-Clara, cabeças-José me chegam, rolam até a sala lilás da PSICO-LOGIA. Eu, dita profissional da mente, A profissional de saúde mental, com a parte de cima, faço rima. Lugar confortável, estabelecido, minha identidade preservada. Sou avessa às baixuras? Não preciso eu do resto do corpo para dançar? Com o tanto de perguntas que pulam das poltronas, a parte de baixo do pescoço sacode e não mais cabe. Náuseas com as heranças biomédicas que afirmam o corpo como soma articulada de órgãos, todo desalmado, e psicológicas que supõem outro lugar para a mente igualmente descolada do corpo.

Cola, descola, recola. Queremos descolar identidades, sintomas. Recolar mente-corpo. Aqui, a dissociação das articulações, estratégica na dança-clínica para a produção de novos agenciamentos, mostra-nos que algumas separações não são necessariamente desconstruções, mas colamentos enraizados e reprodutores. O tronco ereto, firme, tenta conduzir o movimento guiado pela racionalidade

encabeçada de uma imagem a ser imitada, mesmo com tantas vertigens e ventos batendo. Copia, copia. Não estamos aprisionando o corpo virtual que quer dançar? Gil (2001) afirma que é o corpo virtual que dança. Em um paradoxo que se estabelece entre pesos e levezas, o corpo dança. Quando nos tomamos pelo peso da dissociação mente-corpo, encabeçados por uma racionalidade pronta a imitar, tentamos aprisionar o corpo-mente, dificultando sua dança, seus fluxos potenciais. Chegam cabeças, almas descorporadas encaminhadas ao CAPS (ou à psicóloga) e corpos desalmados a serem avaliados e medicados no posto. Acompanhados de Spinoza (2008), percebemos que tal dissociação se coloca a serviço de uma despotencialização do ser, buscando fragmentá-lo e desapropriá-lo de sua potência, de sua dança, cindindo corpo e mente e imperando um regime da razão soberana ao corpo e seus afectos23.

Neste ponto, a pergunta de Pelbart (1990) se encontra com o movimento da reforma sanitária que também torna importante o questionamento sobre o que buscamos com a descentralização do atendimento e com a aposta nas unidades básicas como recurso prioritário de acolhimento em detrimento da centralidade hospitalar. Por que precisamos falar em saúde mental especificamente na atenção básica? Ela não faz parte da saúde? O que produz a necessidade de um psicólogo, psiquiatra, assistente social nessa equipe que adentramos? Perguntas saltitantes desafiam os pesos contemporâneos e insistem em se movimentar. Estamos, com essa entrada recente desses personagens nas equipes de atenção básica24, simplesmente acoplando mentes arrazoadas com corpos organicistas em um mesmo espaço? São simplesmente novos especialistas com acesso facilitado? Peso sobrecaindo. Perguntas não saltam em relação à relevância de tal aproximação, reafirmando um pouco a naturalização do trabalho em equipe multiprofissional já

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Fazemos uso da palavra "afecto", em português de Portugal, ao invés de afeto, tentando marcar a diferenciação que Deleuze faz ao estudar Spinoza, seguindo a opção de grafia de Luiz Orlandi, estudioso e tradutor de Deleuze. Deste modo, afecção tem a ver com o efeito de um corpo sobre o outro na dinâmica proposta dos encontros de corpos. O afeto, por outro lado, corresponde a uma afecção, não sendo entretanto representativo e não estando ligado diretamente a outro corpo, mas tem a ver com as variações contínuas da nossa potência de agir e de existir. Alegria e tristeza são os dois principais afetos, mas não no modo que os conhecemos, como sentimentos. É em função dessa diferenciação com os sentimentos feita por Deleuze que optamos pelo uso do termo afecto.

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Em 2008, o Ministério da Saúde regulamentou a inserção de outros profissionais na Atenção Básica que já vinha ocorrendo de modo menos uniforme no país, para além da equipe mínima e equipes de saúde bucal. Foram criados os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), equipes multiprofissionais com o objetivo de apoiar as eSF, qualificando a Atenção Básica, ampliando as ofertas de saúde na rede de serviços, assim como a resolutividade e a abrangência. No GHC, profissionais de outras áreas já vinham sendo incorporados anteriormente a essas regulamentações, ampliando as áreas profissionais nas equipes de atenção básica.

instituído apontada por Ceccim (2006). Corpo de baile assumido. Mas nos sentimos, às vezes, mesmo tão diversos entre nós, apenas reforçando identidades diferentes, demarcando nossos territórios profissionais, distribuindo partes do corpo e da mente, e não necessariamente podendo ser outro ali, clínico.

A cabeça fica sempre em cima do pescoço, quando o céu não conseguir alcançar. O tronco, por favor, sempre reto, dando a linha inteira. Pernas sob o tronco, esticadas. Se dobradas, que seja apenas para impulsionarmos para cima. Braços ao vento, aparentemente soltos, desde que não mexam os ombros. Cada coisa em seu lugar. Bailarinos-cuidadores-agarrados chamam novos personagens para habitar lugares antes desconhecidos, agora já aliviadamente reterritorializados. “Será que nós realmente queremos que desapareça de nossa frente a estranheza, a alteridade radical, a transgressão absoluta, a disrupção do humano – tudo isso que por uma série de razões históricas tem sido o encargo simbólico dos loucos?” (PELBART, 1990, p. 134). E o saber do usuário? Onde está? Ajuda-nos o que tem a dizer esse novo personagem convocado a entrar em cena? Podemos produzir encontros potentes, novas relações entre corpo e mente, saúde mental e atenção básica? Diante desses pesos sentidos, inventaremos novas danças?

O encontro com Clara-bailarina-louca e Seu José-homem qualquer sacode nossas certezas, pesos e anuncia que desinstitucionalizar é o mais difícil, pois implica não apenas retirar o sofrimento psíquico dos hospitais psiquiátricos, mas desfazer amarras sociais que demarcam a exclusão, separação como modo de lidar com as diferenças (AMARANTE, 1995), acolhendo a desrazão no seio do próprio pensamento (PELBART, 1990).