• Nenhum resultado encontrado

2. A linha da clínica em território

2.5 O chão se abre: pedem-se desvios

Cuidado! Abre-se o chão. Perdemos bases. A clínica treme, desequilibra. Corpo em vertigem. Desconfortos cavam buraco e abrem brecha no solo que sustenta nossos movimentos pesados. Com medo, tentamos nos manter inabalados nesses encontros com loucas-bailarinas e homens quaisquer. Não conseguimos. Nossos gestos-resposta a essas perguntas saltitantes não dão mais conta da complexidade do encontro. Invadidos por uma linha dançante, as perguntas

provocadoras de Pina Bausch25, em seu método de pergunta-resposta, nos fazem perceber que falas e gestos se misturam a todo tempo, que a palavra não se faz refém dos significados nem o gesto da organicidade. Em uma conversa dançada na qual fala e gesto se colocam como atos de pensamento, percebemos movimentos estranhos, absurdos, que vão abrindo brechas e deixando escapar devires. Devires entram em fuga por uma linha quase imperceptível. Como nos diz Merce Cunningham, sempre resta algo, resíduo que resiste às significações, aquém da representação. Escapes nas respostas prontas, coladas a determinadas perguntas, inventores de novos problemas. Ao trazer a dança como aquela que sempre escapa à semiotização, Gil afirma que: “Se o corpo pode negar o mundo e a representação de si sem se autodestruir, é porque na sua auto-representação alguma coisa lhe escapa.” (GIL, 2001, p. 54).

Na unidade de saúde: Segunda-feira: Seu José. Terça-feira: Seu José. Quarta-feira: Seu José. Clara segue lá, segue cá, segue acolá. Por todo canto, esparramando estranhice. Que tanto insistem esses aí? De portas abertas, sofrimentos e usuários continuam nos acompanhando, entrando. De tão perto que chegamos, deles não conseguimos fugir (LANCETTI, 2007, p. 39), ou seja, a proximidade com a residência dos usuários nos coloca cotidianamente frente a frente com suas chegadas e sofrimentos que, mesmo com os pesos e as burocracias de acesso, fazem-se presentes. Enormes demandas se evidenciam na pequena sala de espera lotada de pacientes, cartazes, folders e trabalhadores em uma equipe aumentada se batendo em briga por um lugar. Usuários aguardando escuta, especialistas, consultórios e respostas, e ruas invadidas pelas dores, inquietudes e sofrimentos. A saúde mental não tem lugar. Dança por toda parte e nos faz estender braços e ouvidos por todos os cantos. Como dar conta de tamanha

25

Pina Bausch (1940-2009) foi bailarina, coreógrafa e diretora de sua companhia alemã Tanztheater Wuppertal. É considerada um ícone da dança-teatro, tendo criado um processo de composição

coreográfica peculiar, transformando singularidades em sensível compartilhado. Diversos autores

estudaram e seguem pesquisando o método de trabalho de Pina através de perguntas-resposta, em

que misturava experiência de vida dos bailarinos e dança, e interessava-se mais por "entender o que move as pessoas, para depois observar como elas se movem" (TRAVI, 2014, p. 9). Gil (2001) dedica um capítulo de seu livro a pesquisar o modo como ela lançava perguntas ou palavras aos bailarinos, respondendo estes através de verbalização ou gestos dançados. Assim, entremeava fala e gesto, fazendo emergir emoções e sentimentos soterrados e produzindo a partir dos paradoxos. Entre fala e silêncio, construía uma camada atmosférica não-verbal ligada ao sentido, gestos do corpo e do pensamento. Acessava com tal método o impensável do pensamento e do gesto, num processo semelhante aos terapêuticos, apesar deste não ser seu objetivo, misturando dança e vida.

demanda? Temos de dar conta? Quais desterritorializações/desinstitucionalizações estão aí implicadas? Estamos instrumentados para operá-las?

Em encontros inevitáveis, quem foge são os devires. Cuidado, estão escapando! Alguns profissionais assustados gritam: Fecha a porta! Fecha a porta! Assustados com a tarefa de coordenar a grande rede de saúde espalhada, atropelados pela demanda de escuta e de respostas constantes, inseguros, sentem- se despreparados e improvisando o tempo todo. A cada novo atendimento, um novo gesto inseguro dá a sensação de uma dança-clínica sem formas, sem tempo de atualização suficiente, misturando precariedades e pequenas invenções. O que é isso? Seria clínica? Deformações, desmanchamentos a cada tentativa de territorializarmos a clínica. Nos encontros com os usuários, a diversidade de sensações e de demandas escorre pelo corpo e o chão vai se abrindo aos nossos pés. Pedem novos movimentos, novas formas. No chão que se abre, intuímos a vida que se atravessa, junto com as dores, intensidades familiares, escolares, do trabalho, moradia, dinheiro, perdas. Sentimos os pesos e a dimensão de uma sociedade de controle, na qual tudo passa a fazer parte dos modos de viver e de clinicar, mas, ao mesmo tempo, nos escapa constantemente pelos buracos que se abrem no chão, pelas portas abertas, pelas frestas entreabertas.

Quando o chão se abre, alguns riscos se aproximam. De um lado, um ímpeto de tapar os buracos e estancar o fluxo assustador. Fecha a porta!! Serviços esparramados pelos bairros, proximidade com os usuários, novas estratégias de gestão como a criação dos NASF, metas, indicadores e programas de qualificação como o PMAQ26 compõem um cenário que tenta garantir e organizar a produção da saúde, preparando a chegada e estabelecendo fluxos aos bailarinos-usuários. Sentimos a dimensão generalizada e pulverizada dessas transformações no modo de fazer saúde. Mesmo com os pesos, dá-nos certo conforto provisório, chão possível de se firmar. Mas se chegam novos acontecimentos, pautas de reunião, informações, capacitações, usuários descontrolados, ditos não aderentes e resistentes, tirando-nos do eixo e abrindo novos buracos no chão. Do outro lado, o risco e o medo de cair em um buraco sem fundo, indiferenciado e sucumbir. Paramos de dançar ao cair? O sentimento do fracasso, de ser atropelado pela demanda e consumido pela burocracia de programas, boletins e protocolos, nos faz

26

Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), criado em 2011, que avalia o trabalho e a infraestrutura de equipes em todo Brasil.

optar, algumas vezes, por nos isolarmos, aquietarmos, tentarmos nos distanciar dos usuários que parecem tão próximos, entrar no buraco e nos esconder por lá. Mas o movimento está sempre ali e a intensidade jorra junto como vulcão que nos devolve à superfície.