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3. A linha dos corpos dançantes

3.1 Entrando pelo meio

Ela vai se chegando, aproximando-se dos nossos movimentos clínicos e nos convida a dançar. Uma linha dançante. Tem como tarefa se movimentar dando forma aos seus encontros singulares, ao mesmo tempo liberando afectos. Sedutora, encantadora, essa linha artística nos coloca a remexer. Clínica, queres dançar? Aceitamos o convite, encantados com a beleza das curvas, retas e arabescos que se formam no ar, no chão, nos corpos. Conseguiremos dançar? Entramos pelo meio de uma linha que já vem se movimentando, traçando seus gestos autônomos.

Sempre há movimento, lembra-nos ela. Se a dança, desde sempre, é movimento,

que se passa com a nossa chegada? Que movimentos se dão, se é que ocorrem, também na dança quando a clínica dela se aproxima? A chegada seria dela? Quem se mexe em direção a quem? Seguimos os movimentos em curso, buscando nos adaptar e tentamos representar? Mas nossos corpos clínicos já vêm tão pesados... mais padrões temos de carregar? Há outras formas de dançar?

Uma linha dançante se atravessa com uma dança que não conhecemos ao certo. Que dança é essa? O que pode uma linha dançante que se atravessa na clínica? Apesar da familiaridade do corpo com a dança, perguntas saltitantes nos colocam a girar, não nos dando a chance de movimentar o pensamento sem o corpo a piruetar. Em um instante, pegamo-nos ensaiando sequências, carregando o peso dos movimentos já apreendidos e buscando abrir brechas para um presente porvir que nos faça movimentar junto a esses pesos sentidos. Tomados pela delicadeza e pela violência de uma linha dançante que alterna pesos e levezas, nossos corpos clínicos se sentem forçados a novos gestos, sem possibilidade de bloquear os movimentos ensaiados. Como se deixar levar pelo movimento, aceitar essa linha que se atravessa? Corpos clínicos em desassossego, como nos lembra Rolnik (1996) em seu encontro arte/clínica, que não conseguem mais se expressar com a

atual figura, abrem o chão, tentando acolher forças e novas formas que vão se movimentando.

Em um encontro que nos toma em corpo e pensamento, a própria linha dançante se abre, entrando em outros ritmos, variando suas velocidades e lentidões, produzindo desvios clínicos que misturam dentro e fora, clínica e dança. Outro em nós que faz variar simultaneamente as duas linhas, abrindo um campo de intensidades que nos força a transformar pesos e nos coloca em encontro com as diferenciações no outro, em nós.

Percebemos, com os primeiros passos ensaiados, que cada linha compõe um cenário de diversidades, individualizadas ou não, identificadas ou nos fazendo variar e singularizar. No encontro com essa linha dançante que se atravessa como estrangeira à linha clínica, deparamo-nos com diversos corpos dançantes e possíveis. Corpos-bebê, que se movem empolgados ainda nas barrigas gestantes, impregnadas de possíveis, testando gestos na água e abertos ao som das vozes e músicas que os rodeiam. Variam e se deformam em corpos-criança, saltitantes nas aulas de dança, nas garagens, salas e ruas que viram palcos, na companhia dos amigos travestidos de artistas e familiares como espectadores. Corpos estes tomados de experimentação e leveza infantil, apreciados por seus giros desengonçados e as pequenas quedas frente às tentativas de equilíbrio nas pequeninas pontas dos pés. Corpos cantantes e músicos, fazendo dos pés percussão, testando os sons emitidos.

Entretanto, adentrando essa linha, vamos nos fazendo corpos dançantes e sentimos os pesos que tais formas assumem ao se enrijecerem em uma linha dura evolucionista que designa a experimentação apenas à infância, nos momentos e espaços demarcados. Encontramo-nos com corpos-jovens-atléticos, uniformes, musculosos e fortes. Em alguns momentos, veem-se impregnados pelo cor-de-rosa, cabelos lambidos e bem puxados, roupas impecáveis, ao som da orquestra clássica harmoniosa e precisa, vida em oito tempos. Tentam constantemente subir aos céus com braços e pernas esticadas. Em outros, assumem formas menos clássicas, mais modernas, mas mantém o virtuosismo dos grandes gestos, da superação física, as hierarquias a serem regidas pelo coreógrafo e o desejo de espetáculos grandiosos. Com tais corpos-jovens-atléticos, nos disciplinamos e queremos atingir o movimento impossível, superar nossos limites anatômicos e físicos. Disciplina dos corpos, do espaço, do tempo.

Corpos arrazoados, tomados por uma consciência que tenta coordenar o movimento e anular a loucura que os deforma, mas sempre escapa às tentativas de imitação dos repertórios pré-fabricados. Sempre resta um pé torto, um braço frouxo, um joelho dobrado, um passo fora do tempo, uma queda desencontrada e um riso solto em meio ao erro. Pequenas falhas muitas vezes disfarçadas, gordurinhas escondidas, fracassos abafados diante das promessas por resultados melhores, com esforço e dedicação, permeiam os endurecimentos que uma linha dançante assume. Linha dura, rígida, morada de conforto (por vezes) que não exige nem permite grandes deslocamentos, mostrando-nos os parâmetros dos gestos a serem seguidos, mas tampouco acomoda corpos-tortos, corpos-loucos inquietos com os quais nos encontramos na clínica-dança quando o chão se abre. Assim como na clínica, onde os pesos se fazem sentir nos corpos orgânicos, nas mentes arrazoadas, nos protocolos endurecidos, nas grandes expectativas de curar, em encontro com essa linha dançante endurecida, sentimos novos pesos, dos corpos disciplinados, atléticos, de sucesso. Os limites das formas atléticas, jovens, espetaculares não dão conta dos corpos bailarinos diversos com os quais perambulamos, tampouco dos corpos quase invisíveis com suas loucuras meio escondidas nas pequenas unidades de saúde esparramadas. Em certo ponto, debatem-se, inquietos com as formas que não lhes servem mais, com os fracassos e impotências que extravasam e transbordam e pedem novos modos.

3.2 Abrindo possíveis

Aceitamos o convite para dançar sem saber ao certo o que isso implica. Mas precisamos movimentar as forças inquietas que não cabem mais nos corpos desejosos de criar, expandindo sua dança. Em um primeiro desvio criativo ao qual somos lançados nesse encontro, trazemos aqui a experiência com o Grupo de Pesquisa em Movimentação Contemporânea N Amostra31. O início do grupo começa pelo meio, pegando um movimento de experimentação e pesquisa ainda embrionário nas aulas de dança contemporânea da professora Letícia Paranhos no

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Integro, como bailarina, desde 2011, o Grupo de Pesquisa em Movimentação Contemporânea N Amostra, coordenado pela professora, coreógrafa e bailarina Letícia Paranhos, inicialmente vinculado à escola de dança Laboratório da Dança, posteriormente, ao Espaço N. O Grupo realizou pesquisas sistemáticas e teve um trabalho mais contínuo de 2011 a 2014, seguindo com atividades pontuais e esporádicas até o momento atual. No vídeo do link a seguir, pode ser conferido um teaser do trabalho do Grupo em 2013: http://youtu.be/Z-xWIiFuxPs?list=UUBHBrHvphdYZj5Q93tN-OsQ