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PARTE II – LIMITES À SOBERANIA FISCAL: A HARMONIZAÇÃO

Capítulo 2.º HARMONIZAÇÃO FISCAL: LIMITES

2. Cooperação reforçada

Tendo em conta os constrangimentos à harmonização fiscal que advêm da adoção da regra da unanimidade, parece-nos ser o momento adequado para fazer uma breve referência à cooperação reforçada.

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O conceito de diferenciação, surgiu com especial relevância a partir do Ato Único Europeu, que acelerou o processo de integração europeia em direção ao Mercado Interno. De facto, perante a constatação de que nem todos os EM estariam em condições para progredir na integração com o mesmo ritmo e em todas as matérias, sentiu-se a necessidade de prever mecanismos e condições que possibilitassem a alguns EM avançar na integração de forma mais rápida do que outros81.

Esta diferenciação pode assumir duas formas: a de “Europa a várias velocidades”, quando a derrogação é passageira, como é o caso dos períodos de transição acordados nos Tratados de adesão; a de “Europa de geometria variável”, quando a derrogação tende a ser duradoura e depende da vontade dos EM para ingressarem no regime comum, como se verifica pela possibilidade de não participação do Reino Unido e Dinamarca na união monetária82.

Acresce que “No limite, as diferenças resultantes de opções políticas de certos Estados podem conduzir à situação de uma «Europe à la carte», em que os países escolhem as políticas e os regimes que lhes convêm.”83

Os vários alargamentos tornaram notórios os desníveis entre EM e evidenciavam que se tornaria ainda mais difícil obter um consenso na UE sobre determinadas matérias. É neste contexto que o Tratado de Amesterdão vem regular de forma genérica a diferenciação, sob a designação de “cooperação reforçada”84.

A cooperação reforçada surge como tentativa de “compatibilizar dois objetivos necessários e inevitáveis, mas também, à partida, antagónicos, da integração europeia: o do aprofundamento e o do alargamento.”85

Em defesa da introdução da cooperação reforçada, que legitimava uma integração diferenciada, argumentava-se que era a única forma possível de garantir que o processo de integração europeia não fosse prejudicado pela falta de acordo político entre os membros heterogéneos da UE alargada. Por outro lado, surgiam críticas no sentido de

81 FAUSTO DE QUADROS, op. cit., p. 72.

82PAULO DE PITTA E CUNHA, Direito Institucional da União Europeia, op. cit., p. 96. 83 Idem, p. 97.

84 Idem, p. 96.

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que tal integração diferenciada poderia ter um impacto adverso a longo prazo, conduzindo à fragmentação do mercado interno86.

Assim, embora a “heterogeneidade crescente do mosaico de países que compõem a União” justificasse a previsão do recurso à cooperação reforçada, teria de se determinar a forma para evitar a “indesejável fragmentação do quadro da integração europeia.”87

As regras sobre cooperação reforçada constantes do Tratado de Amesterdão refletem precisamente esta dualidade de opiniões, tendo sido redigidas de forma cuidadosa procurando fornecer uma ideia de “igualdade na diversidade”88.

A cooperação reforçada, na redação introduzida pelo Tratado de Amesterdão, afigura-se de utilização bastante restritiva. Razão pela qual se tentou atenuar estas limitações nas revisões efetuadas quer pelo Tratado de Nice, quer pelo Tratado de Lisboa, designadamente, introduzindo alterações quanto ao número de EM necessários para iniciar o procedimento (deixando de ser necessária a maioria para se exigir um número fixo, estabelecido atualmente em de 9 EM, de acordo com o artigo 20.º do TUE).

Contudo, tal como estabelece o citado artigo 20.º “A decisão que autoriza uma cooperação reforçada é adotada como último recurso pelo Conselho, quando este tenha determinado que os objetivos da cooperação em causa não podem ser atingidos num prazo razoável pela União no seu conjunto”, permanecendo por concretizar o que se entende por “prazo razoável”.

Neste contexto é de salientar que continuam a existir bastantes obstáculos para aplicação da cooperação reforçada, alguns deles derivados de imprecisões e pouca densificação de conceitos que é efetuada pelos Tratados, pelo que, também, a cooperação reforçada tem sido objeto de escrutínio pelo TJUE. Como exemplo, refira-se a interpretação do TJUE quanto à determinação de um “prazo razoável”, que ao invés de apresentar um período específico que deveria ser suficiente, afirmou que a condição de

86 ANZHELA CÉDELLE, «Enhanced cooperation: A way forward for tax harmonisation in the EU?», Working

paper series, Oxford University Centre for Business Taxation, october 2015, disponível em

https://www.sbs.ox.ac.uk/sites/default/files/Business_Taxation/Docs/Publications/Working_Papers/Se ries_15/WP1533b.pdf., pp. 2 e ss.

87 PAULO DE PITTA E CUNHA, Direito Institucional da União Europeia, op. cit., p. 97. 88 ANZHELA CÉDELLE, op. cit., pp. 2 e ss.

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"último recurso" se refere a situações em que a adoção de legislação para a União no seu conjunto não é possível "num futuro previsível"89.

Acresce que o n.º 1 do artigo 20.º do TFUE prevê que a cooperação reforçada pode ser estabelecida nos domínios da competência não exclusiva da União.

Daqui resulta que este mecanismo não pode ser utilizado nos domínios da união aduaneira, das regras da concorrência, da política monetária da zona do euro, da conservação dos recursos biológicos marinhos no âmbito da política comum das pescas e da política comercial comum no âmbito da cooperação reforçada, por se tratarem de matérias da competência exclusiva da União, nos termos do artigo 3.º do TFUE.

A primeira autorização de cooperação reforçada foi dada em 2010, mais de uma década após a introdução do mecanismo, e dizia respeito à lei aplicável ao divórcio e separação90. Em março de 2011 é autorizada pelo Conselho a cooperação reforçada no

domínio da criação de patente unitária91.

Também a nível fiscal a cooperação reforçada já foi utilizada. De facto, pela Decisão 2013/52/UE do Conselho, de 22 de janeiro de 201392, é autorizada a cooperação

reforçada no domínio do Imposto sobre as Transações Financeiras (ITF)93. Pese embora

esta autorização, a Diretiva ainda não se encontra aprovada.

De acordo com o artigo 326º do TFUE “As cooperações reforçadas respeitam os Tratados e o direito da União”.

Mais se estabelecendo que “Tais cooperações não podem prejudicar o mercado interno, nem a coesão económica, social e territorial. Não podem constituir uma restrição, nem uma discriminação ao comércio entre os Estados-Membros, nem provocar distorções de concorrência entre eles”.

O que significa que, além de tal procedimento ter de cumprir os requisitos genericamente previstos para todos os atos jurídicos da União, a cooperação reforçada

89 Refira-se, a este propósito os acórdãos Espanha e Itália / Conselho (Processos apensos C-274 e 295/11)

e Reino Unido / Conselho (Processo C-209/13).

90 Decisão do Conselho, de 12 de julho de 2010 (2010/405/UE) – JO L 189 de 22/7/2010. 91 Decisão do Conselho, de 10 de março de 2011 (2011/167/UE) – JO L 76 de 22/03/2011. 92 JO L 22 de 25/01/2013.

93 Para mais desenvolvimentos sobre esta questão ver JOSÉ CASALTA NABAIS E MATILDE LAVOURAS, «O imposto

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está sujeita ao cumprimento das regras substantivas e processuais especificamente previstas nos Tratados para este mecanismo. Ora, o cumprimento da legislação da União Europeia relativamente às cooperações reforçadas pode ser aferido em dois momentos. Desde logo, pode ser requerida uma ação de anulação da decisão de autorização do Conselho, cuja validade será examinada à luz do artigo 20.º do TUE e dos artigos 326.º a 334.º do TFUE. Os atos subsequentemente adotados para dar efeito concreto à autorização, também, podem ser alvo de apreciação a efetuar pelo Tribunal94.

Deste modo, como qualquer outro ato jurídico da UE, a proposta de cooperação reforçada deve respeitar os princípios da atribuição, subsidiariedade e proporcionalidade95.

A possibilidade de utilização da cooperação reforçada no domínio da tributação foi reconhecida em 2001, no âmbito da Comunicação da Comissão intitulada “A política fiscal da União Europeia - prioridades para os próximos anos”96. Nesta Comunicação

realça-se que “A cooperação reforçada poderia ser, designadamente, utilizada nos domínios da política fiscal em que, mesmo a longo prazo, as decisões são tomadas por unanimidade.” Acrescenta, ainda, particularmente quanto à fiscalidade direta que “A cooperação reforçada poderia ser concebida por forma a que os países participantes consigam benefícios que sejam suficientes para incentivar a participação dos países não- participantes.”

As dificuldades de integração europeia ao nível da fiscalidade que decorrem da existência de 28 (por agora) economias heterogéneas são notórias. A estas dificuldades acresce uma outra: a regra da unanimidade.

Daí que a possibilidade de utilização de uma cooperação reforçada seja considerada, por alguns, como uma alternativa viável para essa mesma integração a nível fiscal. Tal alternativa permitiria conjugar a preservação de soberania de um EM da UE, ao mesmo tempo que permitiria que os interessados numa cooperação mais estreita a estabeleçam no âmbito da legislação da União97.

94 ANZHELA CÉDELLE, op. cit., p. 15. 95 ANZHELA CÉDELLE, op. cit., p. 17. 96 COM (2001) 260 final.

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E se esta possibilidade já se afigurava pertinente noutras ocasiões, numa conjuntura de crise financeira como a que atravessaram os EM, em que se torna ainda mais importante a manutenção de autonomia em relação às suas políticas fiscais, o efeito que a cooperação reforçada poderá ter para o avanço das políticas fiscais a nível da UE, torna este mecanismo ainda mais atrativo, uma vez que as assimetrias existentes entre os vários EM e seus interesses conflituantes impedem, muitas das vezes, a obtenção de consensos quanto às medidas fiscais a adotar98.

A cooperação reforçada aparece, portanto, como uma forma de acomodar os interesses nacionais, que não é possível de concretizar através da utilização de instrumentos mais uniformes99.

Um outro argumento que poderá ser utilizado para justificar a cooperação reforçada prende-se com a integração negativa efetuada por via jurisprudencial pelo TJUE. Se esta harmonização negativa permite eliminar as barreiras que impedem a liberdade de circulação transfronteiriça e interferem com o princípio da não discriminação, a capacidade do sistema judiciário para preencher as lacunas legislativas, criadas pela falta de harmonização positiva, permanece limitada, como veremos seguidamente100.

Acresce, ainda, que a crise financeira e económica global gerou novos desafios para a agenda da política fiscal da UE e obrigou a Comissão a rever os seus planos para utilizar uma cooperação reforçada. Na sequência das várias ações introduzidas pela UE recentemente, o relançamento da matéria coletável comum consolidada do imposto sobre as sociedades (MCCCIS) poderá constituir um terreno fértil para a cooperação reforçada, além do já referido ITF 101.

Efetivamente, as expetativas que alguns depositam na cooperação reforçada serão logo sujeitas ao teste que constitui a cooperação reforçada no âmbito do ITF. Se, após um longo período de negociações esta Diretiva falhar, a utilização de um mecanismo de cooperação reforçada para promover uma maior integração fiscal na UE poderá estar condenada ao fracasso102.

98ANZHELA CÉDELLE, op. cit., pp. 34 e 35. 99 ANZHELA CÉDELLE, op. cit., p. 35. 100 ANZHELA CÉDELLE, op. cit., p.35. 101 ANZHELA CÉDELLE, op. cit., p. 37. 102 ANZHELA CÉDELLE, op. cit., p. 38.

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E uma vez que é no campo da tributação direta, que a harmonização fiscal positiva tem sido mais difícil de alcançar, porquanto não tem sido possível obter os consensos necessários por parte dos EM, esta é uma área privilegiada para a aplicação da cooperação reforçada, enquanto solução de “último recurso”, uma vez que a adoção de legislação para a União, no seu todo, parece não ser possível "num futuro previsível"103.

Esta integração fiscal diferenciada deverá, contudo, estar sempre revestida de precaução. Deve ter em consideração a interação entre os países que participam de tais iniciativas e aqueles que permanecem fora delas. Isto porque, além de as disposições dos Tratados que regem a cooperação reforçada estabelecerem mecanismos de defesa limitados para os EM não participantes, também se verifica, da análise da jurisprudência existente sobre a matéria, que não será fácil para os EM não participantes provar a violação da legislação da UE, alegando para o efeito que os seus interesses, ou os do mercado interno, se encontram ameaçados pela cooperação reforçada. Além disso, é, ainda, necessário aferir o impacto a longo prazo que as iniciativas de cooperação reforçadas poderão ter no Mercado Interno104.

Acrescente-se que o processo de cooperação reforçada pode ser considerado “uma via que não vai genuinamente no sentido da efetiva integração europeia, pois, ao permitir a consagração de uma integração europeia diversificada, concretizando uma Europa a várias velocidades, acaba constituindo mais um instrumento de desintegração do que da construção”105.

É, portanto, imperioso ponderar se a utilização deste mecanismo, de forma regular e habitual, não poderá conduzir a uma “União mais estreita dentro de uma União mais diluída”, podendo a cooperação reforçada, num domínio tão relevante para os EM, como o da fiscalidade, constituir um “irreversível fator de desintegração da União.”106

103 ANZHELA CÉDELLE, op. cit., p. 39. 104 ANZHELA CÉDELLE, op. cit., p. 39.

105 Para mais desenvolvimentos sobre esta questão ver JOSÉ CASALTA NABAIS E MATILDE LAVOURAS, «O

imposto sobre as transações financeiras», op. cit., p. 2483, nota 46.

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