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PARTE III – LIMITES À SOBERANIA FISCAL: GLOBALIZAÇÃO,

Capítulo 2.º CONCORRÊNCIA FISCAL

4. O Código de Conduta

A primeira abordagem ao tema da concorrência fiscal, surge numa altura em que o objetivo de harmonização da tributação direta era abandonado em detrimento de formas de coordenação mais flexíveis e em que se consolidava o princípio da subsidiariedade no que concerne à distribuição de competências entre a UE e os EM, e foi efetuada no Relatório Ruding de 1992.

Nas conclusões de tal relatório evidenciavam-se as diferenças significativas que ocorriam a nível dos diversos EM quanto à tributação das empresas, quer no que diz respeito às taxas, quer quanto à base tributável, “com incidência significativa sobre as decisões quanto à localização externa de empresas multinacionais (…) em especial na área das atividades financeiras”. Resulta também deste Relatório que apesar de não existirem indícios de competição fiscal generalizada, se verificava uma tendência para a introdução de “regimes fiscais especiais para atrair, a nível internacional, atividades económicas de grande mobilidade” com consideráveis “perdas fiscais para o país do qual o investimento é retirado”, pelo que seria necessário uma maior transparência nos incentivos fiscais ao investimento, bem como ponderação da sua eficácia291.

Também das conclusões do Conselho do Ecofin de 23 de novembro 1992 se retira a crescente preocupação com os problemas da evasão e da fraude fiscais e bem assim dos regimes fiscais especiais destinados a atrair o capital caracterizado por grande mobilidade internacional292.

Apesar destas referências, só a partir do Tratado de Maastricht e da concretização plena do princípio da liberdade de circulação de capitais é que a questão da concorrência fiscal se tornou uma preocupação efetiva para a União. É a partir daqui que as medidas de concorrência fiscal ativa e agressivas desencadeadas por alguns EM levantam a questão do seu efeito, quer quanto à forte limitação da soberania fiscal e o financiamento regular e previsível por parte dos EM afetados, nomeadamente das suas funções sociais, mas também das consequências que daí poderiam advir, nomeadamente a deslocação sa tributação dos fatores móveis, como o capital, para os não móveis, como o trabalho e a

291 FERNANDO ROCHA ANDRADE, «Concorrência fiscal internacional na tributação dos lucros das empresas»,

op. cit., pp. 229 e 230.

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propriedade imobiliária, abalando assim a autorrepresentação da UE como “economia social de mercado”293.

No primeiro Relatório Monti, apresentado em março de 1996, já se encontram bem patentes as preocupação da União relativamente à concorrência fiscal e as consequências que dela poderão advir, designadamente a erosão das bases tributáveis e a deslocação da carga fiscal para fatores com menos mobilidade294.

Neste Relatório é referida a necessidade de aumentar a coordenação da União ao nível da fiscalidade e faz-se uma referência expressa à perda de soberania resultante da concorrência fiscal. Refere o Relatório que a recusa dos EM em partilhar, deliberadamente e de forma limitada, a sua soberania fiscal “em favor de um processo de decisão coletivo teria evitado uma perda de soberania inconsciente por cada um deles [EM] para as forças do mercado, num domínio que devia permanecer prerrogativa da atuação pública”295.

Em novembro de 1996, a Comissão emite o segundo Relatório Monti. Neste Relatório, propõe-se, com o propósito de combater a concorrência fiscal, a publicação de um “código de boa conduta” relativamente a incentivos fiscais permitidos e proibidos, a clarificação do alcance e desenvolvimento das regras comunitárias sobre auxílios de Estados e, também, a promoção da troca de informações e reforço da cooperação entre as autoridades fiscais dos EM296.

Refira-se que a atuação comunitária ao nível da concorrência fiscal tinha como principal objetivo evitar que a concorrência, no âmbito do mercado interno, seja prejudicada pelo facto de os agentes económicos serem influenciados por medidas fiscais dos EM que lhes concedem vantagens fiscais297.

Em dezembro de 1997, o Conselho aprova o “Código de Conduta no Domínio da Fiscalidade das Empresas” (Código de Conduta)298.

293 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS E ANDRÉ VENTURA, A reforma do IRC. Do processo de decisão política à revisão

do Código, op. cit., p. 23.

294 PAULA ROSADO PEREIRA, A tributação das sociedades na União Europeia, op. cit., p. 96.

295 Comissão das Comunidades Europeias, “Taxation in the European Union” (Discussion Paper for the

Informal Meeting of ECOFIN Ministers, SEC (96) 487 final, Bruxelas, 1996), p. 10-11.

296 PAULA ROSADO PEREIRA, A tributação das sociedades na União Europeia, op. cit., p. 97. 297 Idem, p. 100.

298 Publicado no Jornal Oficial da Comunidade 2/2 de 6 de janeiro de 1998, sob o Anexo 1 à Comunicação

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Ora, o objetivo deste Código de Conduta é a luta contra a concorrência prejudicial, incidindo sobre as medidas que tenham ou sejam suscetíveis de ter uma incidência sensível na localização das atividades económicas na Comunidade (atual União), e abrangendo quer as disposições legislativas ou regulamentares como as práticas administrativas.

Quanto à natureza deste instrumento o próprio preâmbulo do Código de Conduta é esclarecedor, quando o define como “um compromisso político e que, portanto, não afeta os direitos e as obrigações dos Estados-membros nem as competências respetivas dos Estados-membros e da Comunidade tal como decorrem do Tratado”299. Ou seja, é um

instrumento de natureza política, de “soft law”, desprovido de vinculatividade jurídica. Por esta razão, a interpretação e aplicação do Código de Conduta não está sujeita ao controlo do TJUE. Ou seja, o controlo do seu cumprimento é um ato meramente político, o que conduz a uma série de limitações, de que podemos destacar a falta de garantias de imparcialidade, que pode conduzir a que as sanções políticas sejam mais facilmente utilizadas contra os países pequenos do que contra os grandes300.

Daí que, embora se trate de um instrumento do género “soft law”, característico daquelas situações em que o consenso entre os Estados não é suficiente para assumir um compromisso jurídico, possa na verdade constituir um “hard law” para os EM mais fracos301.

Além disso, embora o Código de Conduta não seja suscetível de invocação autónoma perante o TJUE, o “facto de os princípios relativos a tal instrumento terem sido erigidos em condição da adesão dos Estados candidatos [o que obriga os novos Estados-Membros ao cumprimento dos princípios nele previstos] dá-lhe um estatuto equívoco, pois passa, de direito ou facto, a integrar o acervo comunitário (um acervo comunitário político).”302

Quanto ao âmbito de aplicação territorial do Código de Conduta, o ponto M expressamente refere que os EM comprometem-se a promover a sua adoção e dos seus princípios nos países terceiros e nos territórios dependentes ou associados.

299 JO C 2 de 06/01/1998.

300 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS, A Europa perante a concorrência fiscal: guerra e paz?, op. cit., p. 272. 301 JOSÉ CASALTA NABAIS, Introdução ao Direito Fiscal das Empresas, op. cit., p. 123.

302 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS, «A Fiscalidade das “praças internacionais de negócios” na ótica da União

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Embora o Código de Conduta não forneça uma definição do que deve ser considerado uma prática fiscal prejudicial, estabelece critérios para a sua qualificação. Assim, deverão ser consideradas potencialmente prejudiciais “as medidas fiscais que prevejam um nível de tributação efetivo, incluindo a taxa zero, significativamente inferior ao normalmente aplicado no Estado-membro em causa”.

O Código de Conduta prevê também critérios de avaliação estabelecidos para aferir se uma medida é prejudicial ou potencialmente prejudicial, critérios estes que não são taxativos ou cumulativos. Assim podemos elencar: critério do ring-fencing, ou seja, concessão da vantagem exclusivamente para não residentes ou transações com estes, ou ainda isolamento da economia interna do país em causa; critério de ausência de atividade económica substancial como contrapartida da vantagem fiscal concedida; critério das regras de determinação dos lucros internos de um grupo multinacional substancialmente diferentes dos princípios geralmente aceites; critério da falta de transparência das medidas fiscais em causa, ou seja, falta de certeza na aplicação das normas fiscais; e, finalmente, uma cláusula de exclusão da prejudicialidade, estabelecida no ponto G, e baseada nos “efeitos das medidas fiscais sobre os outros estados-membros”, ressalvando-se as medidas aplicáveis a regiões ultraperiféricas e a pequenas ilhas, desde que as medidas se revelem “proporcionais e orientadas para os objetivos [de desenvolvimento] pretendidos”303.

As obrigações que decorrem para os EM da aplicação do Código de Conduta podem resumir-se no compromisso político de congelamento (standstill, ponto C) – ou seja, na não introdução pelos EM de novas medidas fiscais prejudiciais – e desmantelamento (ponto D) – que se traduz na eliminação das medidas prejudiciais existentes. Por forma a atingir este objetivo foi, também, criado um Grupo do Código de Conduta, a quem incumbiu a análise das medidas fiscais vigentes ou projetadas nos EM e de elaborar relatórios periódicos sobre as mesmas, sendo ainda assumido pelos EM o compromisso de consulta recíproca sobre medidas vigentes e futuras.

O Código de Conduta utiliza uma técnica de neutralização das medidas fiscais consideradas nefastas, em virtude de puderem influenciar a localização das atividades económicas dentro da União, presumindo-se o carácter prejudicial da medida quando

303 FERNANDO ROCHA ANDRADE, «Concorrência fiscal internacional na tributação dos lucros das empresas»,

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ela conduza a um nível de tributação efetivo significativamente mais baixo do que o normalmente aplicado no EM em causa. Acresce que o Código, ao mesmo tempo que estabelece limites à concorrência fiscal, eliminando aquela que é considerada prejudicial, pretende salvaguardar o princípio da subsidiariedade e, logo, a possibilidade de os Estados disporem de uma política fiscal própria304.

Finalmente, o Código faz um convite aos EM para cooperarem plenamente na luta contra a evasão e a fraude fiscais, nomeadamente no âmbito do intercâmbio de informações. Para supervisionar o fenómeno da concorrência estabelece-se, portanto, além da existência de um “direito” de informação e análise por parte de cada EM relativamente às medidas fiscais dos outros Estados, o reforço da cooperação administrativa. Um mecanismo cuja eficácia relativamente à cláusula de “stand still” parece ser cumprido, verificando-se, contudo, mais dificuldade e controversa na implementação do “roll back”305.

No Código de Conduta é reconhecido que parte das medidas fiscais abrangidas pelo código é suscetível de cair dentro do âmbito de aplicação das disposições relativas a auxílios estatais306. Assim, foi assumido pela Comissão o compromisso de publicar, até

meados de 1998, as diretrizes para a aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às medidas que respeitam à fiscalidade direta das empresas, bem como de analisar ou reanalisar caso a caso os regimes fiscais em vigor e os novos projetos dos EM.

De facto, o recurso ao controlo, por via administrativa e judicial, dos auxílios de Estados, era, até aos anos noventa, o único instrumento existente de combate à concorrência fiscal.

Contudo, a forma como o regime de controlo de auxílios estatais foi regulado não possibilitava que fosse um instrumento valioso na regulação da concorrência, nem foi aliás esse o motivo que levou à sua instituição. O regime dos auxílios estatais foi instituído por forma a permitir a construção do mercado interno, pretendendo-se que a concorrência entre empresas não fosse falseada por novas formas de protecionismo às empresas “nacionais”. De facto, o carácter casuístico de tal regime impede uma visão

304 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS, A Europa perante a concorrência fiscal: guerra e paz?, op. cit., p. 268. 305 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS, A Europa perante a concorrência fiscal: guerra e paz?, op. cit., p. 268.

306 Para mais desenvolvimentos sobre a questão dos auxílios Estatais vide ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS,

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global do problema, pelo que poderia constituir um instrumento auxiliar ou complementar, mas não o instrumento central de regulação da concorrência fiscal. É portanto, nesta sequência que surge a proposta de autorregulação, por via política, concretizada no Código de Conduta307.

O princípio da proibição dos auxílios de Estado resulta do artigo 107.º do TFUE, contudo não consta dos Tratados qualquer definição de auxílio de Estado, tarefa que foi cometida quer à doutrina quer à abundante jurisprudência do TJUE.

A sujeição a este princípio da incompatibilidade dos auxílios de Estados, impenderá sobre qualquer vantagem de natureza fiscal (à qual estão subjacentes recursos financeiros públicos) auferida por empresas, em sentido amplo, independentemente da sua forma (podendo consistir num desagravamento ou redução do montante de imposto, redução da matéria coletável, deferimento n tempo ou reescalonamento da dívida, práticas administrativas discricionárias, etc.), imutável, direta ou indiretamente ao Estado (abrangendo as entidades a nível do Estado central, regional ou local) e, de forma mais ampla, direta ou indiretamente aos poderes públicos que, tendo natureza seletiva, simultânea e cumulativamente tenham a suscetibilidade de afetar o comércio intracomunitário e de falsear ou ameaçar falsear a concorrência308.

Verificamos, portanto, que embora os EM gozem de autonomia fiscal na conceção dos seus sistemas de tributação direta, qualquer medida fiscal que adotem deve cumprir as regras da UE em matéria de auxílios estatais. Estas regras vinculam os EM e gozam de primado sobre a sua legislação nacional309, sendo que a competência da Comissão no

que concerne ao controlo dos auxílios estatais também abrange a tributação direta das empresas.

Uma vez que a proibição de auxílios de Estados prevista no artigo 107.º do TFUE também inclui os auxílios concedidos sob a forma fiscal, configuraria uma sólida base procedimental para a Comissão atuar na repressão dos regimes fiscais que configurem práticas fiscais prejudiciais, quando estes forem abrangidos pelo referido normativo310.

307 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS, A Europa perante a concorrência fiscal: guerra e paz?, op. cit., pp. 264-265.. 308 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS, A Europa perante a concorrência fiscal: guerra e paz?, op. cit., p. 269. 309 A este propósito veja-se, entre outros, o processo T-538/11, Reino da Bélgica/ Comissão Europeia. 310 FERNANDO ROCHA ANDRADE, «Concorrência fiscal internacional na tributação dos lucros das empresas»,

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Cumprindo o compromisso a que se tinha vinculado a Comissão publica a Comunicação sobre a aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às medidas que respeitam à fiscalidade direta das empresas, datada de 10 de dezembro de 1998 que estabeleceu critérios a ter em consideração aquando da classificação de uma medida como auxílio estatal311.

Esta comunicação refere no que concerne à relação do Código de Conduta e dos auxílios de Estado que “A qualificação enquanto medida fiscal prejudicial a título do código de conduta no domínio da fiscalidade das empresas não afeta a eventual qualificação da medida como auxílio estatal. Em contrapartida, a compatibilidade dos auxílios fiscais com o mercado comum deverá ser examinada tendo em conta, nomeadamente, os efeitos destes auxílios que a aplicação do código de conduta colocará em evidência”312.

Assim, tendo presente a diferente natureza jurídica entre os auxílios de Estado e as medidas disciplinadas pelo Código de Conduta pode dizer-se que a delimitação do campo de aplicação autónoma do Código depende da aplicação do regime dos auxílios de Estado de natureza fiscal313.

Acresce, ainda, que quando as medidas forem avaliadas previamente pelo Código de Conduta e, posteriormente, em sede de auxílios de Estado, a primeira avaliação contamina os resultados da segunda, sendo a principal consequência deste facto a forma, muito ampla, como o critério da seletividade, passou a ser aplicado em matéria tributária314.

Mas outras críticas podem ser feitas a esta aplicação do regime dos auxílios de Estado à concorrência fiscal. Desde logo, um primeiro constrangimento resulta do facto de o

311 JO C 384, de 10/12/1998.

312 A Comissão emitiu a Comunicação sobre a noção de auxílio estatal nos termos do artigo 107.º, n.º 1, do

TFUE (2016/C 262/01), publicada no JO C 262 de 19/07/2016, através da qual se pretende prestar esclarecimentos adicionais sobre os conceitos fundamentais respeitantes à noção de auxílio estatal. Assim, e tendo por base a jurisprudência da União sobre a matéria esta Comunicação esclarece os diferentes elementos que constituem a noção de auxílio estatal: a existência de uma empresa, a imputabilidade da medida ao Estado, o seu financiamento através de recursos estatais, a concessão de uma vantagem, a seletividade da medida e os seus efeitos sobre a concorrência e as trocas comerciais entre EM. Esta Comunicação substitui a Comunicação publicada em 1998.

313 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS, A Europa perante a concorrência fiscal: guerra e paz?, op. cit., p. 269. 314 Idem, p. 271.

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regime de auxílios fiscais ter na sua base a concorrência entre empresas ao passo que a concorrência fiscal opera entre Estados315.

Além disso, o alargamento do critério da seletividade em sede de auxílios de Estados que ganhou enorme importância veio permitir que muitas medidas fiscais, que não eram até então consideradas auxílios de Estado, por não satisfazerem tal critério passaram a ser consideradas como (potencialmente) seletivas e outras medidas que já haviam sido autorizadas pela Comissão passaram a poder ser objeto de reavaliação e de propostas de medidas adequadas. Isto conduziu a um enorme alargamento da esfera do controlo da Comissão sobre as medidas fiscais, em especial, sobre as que implicassem despesas fiscais acrescidas ou falta de transparência316. Controlo este não sujeito à regra da

unanimidade prevista para as decisões fiscais.