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PARTE III – LIMITES À SOBERANIA FISCAL: GLOBALIZAÇÃO,

Capítulo 2.º CONCORRÊNCIA FISCAL

7. Outros Mecanismos

Uma última nota apenas para fazer referência a outros mecanismos existente no ordenamento jurídico da UE, que também têm a capacidade de atuar sobre a concorrência fiscal prejudicial.

O artigo 116.º do TFUE estabelece a possibilidade de Comissão iniciar um processo de consulta se verificar que existe uma disparidade entre as disposições legislativas, regulamentares ou administrativas dos EM que falseie a concorrência do mercado interno. Se deste processo de consulta não resultar um acordo que elimine a distorção o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, previsto no artigo 294.º do TFUE, adotam as diretivas necessárias para o efeito, ou quaisquer outras medidas adequadas previstas nos Tratados.

O artigo 117.º estabelece, por sua vez, que o EM que pretenda adotar ou alterar uma disposição nacional legislativa, regulamentar ou administrativa, que seja suscetível de provocar uma distorção do mercado interno deverá consultar previamente a Comissão. A Comissão, após consulta aos EM, recomendará as medidas adequadas para evitar a distorção em causa. Se o EM não proceder em conformidade com tal recomendação não se pode pedir aos outros EM que alterem as suas disposições nacionais, por força do artigo 116.º, a fim de que tal distorção seja eliminada.

Estes dois mecanismos constantes dos artigos 116.º e 117.º, relativos às disparidades preexistentes e supervenientes, respetivamente, apesar das suas virtualidades para combater a concorrência fiscal, não têm sido objeto de utilização335.

Outro sistema apto a conter a concorrência fiscal consiste no controlo da política fiscal levado a cabo no quadro dos mecanismos previstos para evitar défices orçamentais excessivos – artigo 126.º do TFUE e do Protocolo n.º 12 sobre o procedimento relativo

334 PAULO DE PITTA E CUNHA, De Maastricht a Amesterdão, op. cit., p. 128.

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aos défices excessivos anexo ao TFUE (PEC) e das Orientações gerais de política económica dos EM e supervisão multilateral, conforme o artigo 121.º do TFUE336.

Ora, o PEC tem a sua principal base jurídica nos artigos 121.º e 126.º do TFUE, bem como no referido Protocolo n.º 12 sobre o procedimento relativo aos défices excessivos. Este mecanismo era na sua forma originária composto por uma Resolução do Conselho Europeu, adotada em 1997 e por dois Regulamentos do Conselho, de 7 de julho de 1997: Regulamento (CE) n.º 1466/97337, numa vertente preventiva, e Regulamento (CE)

1467/97338, numa vertente corretiva.

Desde a crise, houve um reforço das regras de governação económica da UE, tendo na sequência surgido o pacote de legislação sobre governação económica, denominado “Six- Pack”, contendo o Regulamento (UE) n.º 1173/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de novembro de 2011, relativo ao exercício eficaz da supervisão orçamental na área do euro, reformou e alterou as regras do PEC.

De referir ainda o Tratado intergovernamental sobre Estabilidade, Coordenação e Governação, que inclui o Pacto Orçamental de 2012, que introduz disposições de natureza orçamental mais rigorosas que o PEC. Assim, de acordo com este Tratado, que entrou em vigor em 2013, a “regra de ouro” que estabelece um limite mínimo de 0,5 % do PIB, tem de ser consagrada no direito nacional, preferencialmente ao nível constitucional, servindo assim como “travão da dívida”.

É na sequência deste Tratado que surge, em maio de 2013, o denominado pacote “Two- Pack”, contendo dois regulamentos com o objetivo de reforçar a governação económica na área do euro: Regulamento (UE) n.º 473/2013, e o Regulamento (UE) n.º 472/2013, ambos de 21 de maio de 2013.

As medidas supramencionadas integram, atualmente, o mecanismo de coordenação das políticas económicas da UE, o “Semestre Europeu”.

Ora, os mecanismos acima referidos são causa de maiores constrangimentos a nível orçamental para os EM, interferindo diretamente na capacidade dos Estados, em

336 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS E ANDRÉ VENTURA, A reforma do IRC. Do processo de decisão política à revisão

do Código, op. cit., p. 21.

337 Alterado pelo Regulamento (CE) n.º 1055/2005 do Conselho, de 27/06/2005, e pelo Regulamento (UE)

n.º 1175/2011, de 16/11/2011.

338 Alterado pelo Regulamento (CE) n.º 1056/2005 do Conselho, de 27/06/2005, e pelo Regulamento (UE)

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particular os da zona euro, recorrerem livremente à despesa fiscal com o intuito de atrair investimento e empresas339, constituindo uma importante limitação à sua

soberania fiscal.

339 ANTÓNIO CARLOS DOS SANTOS E ANDRÉ VENTURA, A reforma do IRC. Do processo de decisão política à revisão

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CONCLUSÃO

“A Europa não se fará de um só golpe, nem numa construção de conjunto: far-se-á por meio de realizações concretas que criem em primeiro lugar uma solidariedade de facto.” Permanece mais atual do que nunca a célebre frase da Declaração Schuman proferida a 9 de maio de 1950.

Os mais recentes acontecimentos a nível europeu, com expressão máxima na saída do Reino Unido da UE, mas também nas ameaças, expressas ou veladas, por parte de outros EM em seguir tal caminho, fazem soçobrar a ideia subjacente ao processo de integração europeia, de que os graduais avanços obtidos a tornariam irreversível.

A qualidade de EM da União é facilmente colocada no meio de batalhas políticas internas, permitindo, a curto prazo, ganhar eleições para, logo em seguida, redundar em demissões.

A defesa da soberania é sobejamente invocada pelos governos dos EM como forma de legitimação de posições contrárias a uma maior integração.

Uma das faces dessa soberania que suscita uma defesa mais apaixonada é a soberania fiscal, em particular no que concerne à tributação das sociedades.

Se como disse Eça de Queirós “a «crise», é a condição quase regular da Europa”, os acontecimentos recentes vieram, por um lado, reavivar a necessidade de uma ação coordenada a nível mundial – e, em particular, a nível europeu – designadamente no que concerne à concorrência fiscal prejudicial, ao planeamento fiscal agressivo, ou à elisão fiscal; por outro lado, reacenderam a noção de que os EM se encontram despojados de muitos dos mecanismos que anteriormente tinham à disposição para fazer face a adversidades e definir as suas políticas fiscais, económicas e sociais.

Efetivamente, a adesão à UE, implica para os Estados (ou para quase todos) limitações à sua autonomia monetária e orçamental. A estas limitações acrescem as que decorrem da criação da união aduaneira e de um elevado nível de harmonização em sede de IVA. Deste contexto parece resultar que a tributação direta é a última réstia de soberania fiscal nas mãos dos EM e da qual não podem abdicar.

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É neste entendimento que radica parte da justificação para que a regra da unanimidade para tomada de decisões, embora comum a toda a fiscalidade, se revele um sério entrave, particularmente no que concerne a matérias relativas à tributação das sociedades.

Aliás, estes obstáculos afiguram-se de tal modo relevantes que conduzem à utilização dos chamados instrumentos de “soft law”, como é o caso do Código de Conduta no domínio da fiscalidade das empresas, em substituição de outras medidas revestidas de maior força jurídica.

Os múltiplos esforços empreendidos com vista a uma harmonização fiscal positiva revelam-se inúteis e as vitórias alcançadas, além de sectoriais, são fruto de laboriosas negociações, que decorrem durante largos períodos de tempo, com o risco de as soluções alcançadas se revelarem tardias e obsoletas face à realidade.

As possibilidades que existem no âmbito do direito primário da União e que permitiriam conseguir avançar no processo de integração, de entre as quais se salienta a cooperação reforçada, também não se afiguram como solução ideal, despertando os receios, comuns a outros domínios, de uma “Europa a duas velocidades”, que em última instância poderá resvalar na desintegração.

Ademais parece resultar que, caso não exista uma cedência voluntária de soberania, (como sucede, por exemplo, no caso das CDT), o poder tributário dos Estados permanece inatacável, uma vez que da leitura dos Tratados se verifica que nenhuma referência é feita à harmonização da tributação direta.

Contudo, se efetuarmos uma análise mais profunda deparamo-nos com várias limitações e constrangimentos à autonomia tributária dos Estados.

De facto, apesar dos ténues avanços em sede de harmonização fiscal positiva, a soberania fiscal dos EM encontra-se ameaçada por outros fatores.

A tributação das empresas revela-se essencial ao pleno funcionamento do mercado interno e condiciona o exercício das liberdades de circulação de mercadorias, pessoas, bens e serviços, consagradas nos Tratados.

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Os diferendos que, em sede de fiscalidade direta, são submetidos à apreciação do TJUE, transformam a atuação deste órgão, embora relevante para a defesa de tais liberdades, numa harmonização fiscal pela via negativa.

Sucede, porém, que uma tal harmonização não pode ser efetuada à margem dos órgãos políticos e legislativos da União. De facto, só uma harmonização positiva poderá ter em conta os efeitos que produzirá, de uma forma abrangente, não se reduzindo à apreciação casuística do TJUE.

Além deste fator e como provam os recentes escândalos, a soberania fiscal pode, ainda, ser limitada por outros condicionantes.

As consequências que a concorrência fiscal prejudicial, fruto da globalização e da internacionalização das relações económicas, produz nos sistemas fiscais dos Estados, não pode deixar de suscitar dúvidas sobre a verdadeira amplitude do seu poder tributário.

A tentativa de captar investimento estrangeiro, ou, pelo menos, manter o investimento já existente, conduz, muitas vezes, à fixação de níveis de tributação mais baixos, sendo legítimo questionar se a soberania fiscal de que os Estados tanto se arrogam não estará assim a ser relegada para as mãos do mercado.

Acresce que a concorrência fiscal, bem como outros fenómenos a ela associados, designadamente o planeamento fiscal abusivo e a elisão fiscal, mas, também, a erosão das bases tributáveis, têm ainda maior relevância num espaço de integração sem fronteiras como a UE, caracterizado pela existência de um mercado interno .

Também em matérias relativas à concorrência fiscal, a soberania dos Estados já se encontra sujeita a constrangimentos, como se pode constatar pelo controlo efetuado aos auxílios fiscais do Estado, ou pelo funcionamento dos mecanismos previstos para evitar défices orçamentais excessivos.

Mas as consequências nefastas que decorrem da mundialização da economia, só poderão ser combatidas de forma eficaz e eficiente através de uma atuação conjunta.

Não desconsiderando que se trata de um problema mundial, cujas soluções terão de ser encontradas a nível global, junto de organizações como a OCDE, a atuação da UE, terá,

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também, de ser efetuada de forma organizada, podendo neste caso ampliar-se a eficácia de tal combate através da utilização de instrumentos vinculativos.

Ora, esta forma de atuação – por mais antagónica que possa parecer - leva a que uma maior integração ao nível da fiscalidade, traduzida numa eventual partilha ou limitação da soberania, redunde na proteção desse mesmo poder soberano.

Embora, recentemente, tenham sido inúmeras as iniciativas quanto à fiscalidade direta – visando, principalmente, os problemas decorrentes da concorrência fiscal, da erosão das bases tributáveis e do planeamento fiscal agressivo – protagonizadas quer pela OCDE, com expressão máxima no projeto BEPS, quer pela UE, com a adoção de Planos de Ação e Pacotes Fiscais, é necessário que tais medidas tenham continuidade. Designadamente, é necessário que o carácter supostamente temporário da Diretiva Antielisão não se perpetue em virtude de falta de consensos para adotar uma MCCCIS, que, após 15 anos de “maturação”, foi relançada em 2016.

Os constrangimentos resultantes da falta de harmonização fiscal da tributação das sociedades são notórios. No entanto, a sua eliminação dependerá, hoje como sempre, da existência de vontade política para o efeito e de um reforço da integração europeia. Resta saber se tal vontade existe e se os desígnios fundadores da União podem ser perpetuados.

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