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CAPÍTULO II: POBREZA, MEIO SOCIAL, COR E CRIME

2. Cor e crime

Como explicitamos anteriormente, chegamos a examinar algumas questões relativas às associações estabelecidas entre cor/raça e crime, mas será neste item que aprofundaremos a discussão sobre o assunto.

As reportagens criminais que tratavam do tema eram publicadas numa época na qual a cidade do Rio de Janeiro continuava sendo, após a abolição da escravidão, a área de maior concentração de negros do Sudeste201 – ainda que também tivesse recebido muitos imigrantes estrangeiros –, e na qual a população “de cor” estava

199 No que se refere a esta perspectiva do crime, por exemplo, o jornal dos tipógrafos O Graphico, analisado pela historiadora Tereza Vitória Alves, mostrava em uma notícia publicada em 1915: “Foi no início da guerra européia, calamitosa quadra de fome e desespero que fomos testemunhas de um fato que bastante nos impressionou, e que passamos a narrar.

Passando um dia pela rua Frei Caneca fomos despertados das nossas cogitações aos gritos de: - Pega ladrão! Pega ladrão!

(...) O guarda dirigiu-se ao delinqüente, o qual ao ser interpelado sobre o motivo que o levara a subtrair a cadeira do estabelecimento de móveis, declarou que fora a fome que o induzira a praticar aquela ação de desespero, pois há muitos dias procurava trabalho por toda a cidade sem encontrar, e naquela manhã saíra de casa deixando sua mulher e filhos sem uma côdea de pão com que mitigar a fome. (...)”. O Graphico, 01/06/1916, apud Alves, Teresa Vitória Fernandes. O Rio de Janeiro do “ Graphico”: visão de uma

cidade e de uma época. XXIV Simpósio Nacional de História, ANPUH, 2007.

200 Sobre as reivindicações dos trabalhadores por seus direitos via imprensa e judiciário, ver os seguintes trabalhos, entre outros: Silva, Eduardo. As queixas do povo.Op.cit, Ribeiro, Gladys. “Cidadania e luta por direitos na Primeira República”. Op.cit. Queiroz, Eneida Quadros. Justiça sanitária. Cidadãos e

judiciário nas reformas urbanas e sanitárias do Rio de Janeiro (1904-1914). Niterói: Dissertação de

Mestrado, História, UFF, 2008.

201 Segundo Raquel Rolnik, após a abolição da escravidão, o Rio de Janeiro continuou sendo a área de maior concentração de negros do Sudeste, pois essa região teve a menor entrada de imigrantes, além de ter sido intensa a migração de libertos da zona rural para a urbana, em função da decadência da cafeicultura na província fluminense de fins do século XIX. Rolnik, Raquel. “Territórios negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e no Rio de Janeiro). In: Estudos Afro-Asiáticos, n.17, 1989, pp. 29-41.

confinada a uma situação de marginalidade ou subemprego após a Abolição.202 Naquele momento, os negros e mestiços passavam por uma série de dificuldades de vida e de trabalho devido às desigualdades sociais e econômicas da sociedade brasileira, fortemente ancoradas no mercado capitalista, na existência da propriedade privada203, e possivelmente nas práticas discriminatórias e racistas existentes no mundo do trabalho e fora dele.

As reportagens e jornalistas policiais, ao relatarem os casos de roubos e furtos perpetrados por negros na cidade carioca, não discutiam como possivelmente tais desigualdades e práticas discriminatórias e racistas existentes na sociedade brasileira poderiam ter provocado a inserção desses populares no crime. Afinal, veicular notícias que apontassem a existência de tais problemas na sociedade brasileira, sobretudo no Rio de Janeiro, capital da República, seria de uma certa forma reconhecer que a cidade – que se queria “moderna” e “civilizada” – era uma capital com fortes tensões raciais e desigualdades de classe e de raça.

Ao silenciar essas questões, a imprensa produzia em suas reportagens policiais três formas distintas de representar as relações entre cor e criminalidade, que serão analisadas no decorrer deste capítulo. Uma delas era destacar explicitamente as razões sociais e raciais da criminalidade dos negros. A outra forma era não associar explicitamente a cor ao crime. Por fim, a ausência do registro da cor dos criminosos, na grande maioria das notícias consultadas, parecia ser outra forma de retratar a criminalidade na época, através do que Hebe de Mattos204 chamou de “ética do silêncio” da cor, como signo de igualdade formal na multiétnica e hierárquica sociedade brasileira do período.

2.1. “Um corpo negro guardando alma ainda mais negra”

No início do século XX, os ladrões “de cor” apareciam nas reportagens policiais através dos seguintes termos: “preto”, “pardo”, “crioulo”, “mulato” e “negro” (quadro 15).

202

Fausto, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). Op.cit., p. 66.

203 Sobre os estudos que discutem as desigualdades econômicas e sociais nas sociedades modernas, ver: Turner, Brian. “ Outline a theory of citizanship”. In: Sociology, vol. 24,n.2, maio de 1990; Marshal, T. H. “Cidadania e classe social”. In: Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1967; Roche, Maurice. “Citizenship, social theory, and social change”. In: Theory and society. Vol. 16, n.3, 1987.

204 Mattos, Hebe & Rios, Ana. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição.

Quanto ao número de reportagens publicadas sobre criminalidade dos negros por jornal consultado, o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil e a Gazeta tiveram entre eles uma representatividade semelhante de publicação de notícias sobre o assunto (ver o quadro abaixo).

Quadro 14 – Número de reportagens (por jornal) que tratavam da criminalidade dos negros (1900-1920)*

Jornais %

Gazeta de Notícias 43 7,2% de um total de 596 reportagens sobre criminalidade

Jornal do Brasil 43 5,6% de um total de 766 reportagens sobre criminalidade

Correio da Manhã 21 5,6% de um total de 371 reportagens sobre criminalidade

Total 107 6,3% de um total de 1.733 reportagens sobre

criminalidade Fontes: Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil e Correio da Manhã.

*Os percentuais foram determinados considerando o total de notícias de crimes consultadas em cada um dos jornais cariocas trabalhados.

Quadro 15 – Número de casos dos gatunos negros publicados nas notícias de jornais, através do registro da cor, 1900-1920*

Cor Número Porcentagem (%)

Pretos 63 45 Pardos 39 27,8 Crioulos 25 17,8 Mulatos 9 6,4 Negros 4 2,8 Total 140 100

Fontes: Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Gazeta de Notícias.

*Numa mesma notícia a cor podia ser mencionada mais de uma vez. Por isso, o número dos registros de cor mostrado neste quadro é maior do que o total de 107 reportagens sobre criminalidade dos negros consultadas na pesquisa.

No que diz respeito aos termos que se referiam à cor dos ladrões não-brancos veiculados pelos três jornais consultados – “pretos”, “negros”, “crioulos”, “pardos” e “mulatos”205 –, estes podiam ser utilizados pelos repórteres para designar não só a cor de pele dos gatunos narrados, mas também a sua condição social. Além disso, todos os termos podiam abarcar a nacionalidade brasileira (“nacionais” ou “brasileiros”) dos ladrões, com o diferencial de que a palavra “preto” podia ainda designar os africanos e descendentes de africanos. Como mostra o quadro 15, o termo “preto” foi mencionado de forma bem mais expressiva pelas reportagens policiais do início do século XX do que os outros termos, talvez pela tentativa dos jornalistas de escurecer a cor dos ladrões, como uma forma sutil de associar negritude ao crime.

Vale notar que nessas notícias não se faziam menções se os negros eram ex- escravos ou libertos. Independente disso, todos os termos em relação aos grupos dos ladrões não-brancos – “preto”, “negro” ,“crioulo”, “pardo” e “mulato” – podiam ter aí um sentido neutro ou uma conotação pejorativa quanto a cor/ condição social/ raça / ou ainda com relação aos aspectos higiênicos e estéticos dos negros/mulatos. Expressões como “crioulos feios”, “ralé de cor preta”, “pardo mal encarado”, “mal encarado de cor preta” e “tipo de pardavasco feio e mal encarado” são exemplos das notícias que atribuíam à cor uma conotação pejorativa.206

Já no caso dos criminosos brancos207, os jornalistas não veiculavam expressões pejorativas em relação aos termos como “cor branca”, “louro”, “olhos azuis”. Assim, a aparência física dos brancos não era depreciada.

Mas há uma semelhança nas imagens produzidas sobre os criminosos brancos e negros. Em ambos os casos – assim como no que tange aos demais criminosos da cidade, independentemente de sua cor/raça e/ou nacionalidade – os jornalistas podiam veicular impressões morais em relação aos referidos personagens criminais, como uma forma de mostrar que as condutas criminosas não deveriam ser seguidas pelos leitores. Por isso, muitas vezes podiam chamar os criminosos de “maus”, “impiedosos”, “feras”

205

Sobre os trabalhos acadêmicos que analisam esses termos, ver entre outros: Guimarães, Antônio Sérgio Alfredo. “ Notas sobre raça, cultura e identidade na imprensa negra de São Paulo e Rio de Janeiro”. Afro-Ásia, n.29, vol 30, 2003,p. 247-269. Almeida, Fernanda Moutinho de. As “cores” do pós-

abolição na zona da mata mineira- resultados de uma pesquisa recente. X Encontro Regional de

História- ANPUH- RJ, História e biografias, 2002, p. 1-7.; Reis, João José. Rebelião escrava no Brasil: o

levante dos malês na Bahia em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

206 “O “Colibri”: Ladrão sanguinário”, Jornal do Brasil, 10/03/1903, 2;Correio da Manhã, 6/03/1911, 3. 207 Estamos considerando brancos os indivíduos que eram apresentados nas notícias como sendo pessoas de “cor branca”. Vale notar que encontramos apenas 28 matérias sobre a criminalidade dos brancos.

e “sanguinários”, como foi o caso do ladrão Damião de “cor branca”, acusado de ter cometido um crime de latrocínio em 1916: “Damião (...) narrou cinicamente o revoltante crime, pormenorizando-o. A confissão cínica de Damião revoltou a todos os que assistiram ao seu depoimento. Tem o facínora 19 anos de idade, é branco e há muito que é conhecido da polícia”.208

Talvez os repórteres quisessem imputar um sentido moral às notícias de crimes como uma forma de disseminar a sua “mensagem civilizadora”, dando corpo à “missão pedagógica” que a imprensa se autoatribuía, como vimos no primeiro capítulo. 209

Contudo, é importante que se diga que esse caráter pedagógico das notícias parecia ter os seus próprios limites na imprensa, pois os jornalistas policiais quase que transformavam alguns personagens criminais da cidade em uma espécie de heróis do crime, uma vez que enalteciam os seus delitos astuciosos, sua inteligência e habilidade criminal.210 Os leitores poderiam, nesse sentido, ler tais histórias de crimes e criminosos não como exemplos negativos de comportamentos, mas sim positivos.

A historiadora Ana Porto chama atenção com muita propriedade para esse aspecto contraditório das notícias de crimes no final do século XIX e começo do XX, ao analisar essas publicações no jornal Estado de São Paulo.211 A autora assinala que, se por um lado, as mensagens veiculadas na imprensa sugeriam que uma das maiores virtudes da nova sociedade idealizada naquelas páginas era o trabalho, por outro lado a opção pelo crime acabava aparecendo aí como uma boa solução de forma de aquisição de dinheiro fácil, já que a riqueza era valorizada mas o trabalho não.

Portanto, segundo Ana Porto, as notícias de crimes não se tornavam necessariamente pedagógicas do modo como provavelmente queriam os seus redatores/repórteres e jornalistas de uma forma geral. Na perspectiva da autora, havia elementos nas matérias que diziam praticamente o contrário daquilo que se tentava transmitir como mensagem principal de uma notícia. Assim, “não se tem um controle sobre a forma pela qual foram lidas determinadas mensagens; na verdade, não se pode nem ao menos controlar os sentidos do texto”212. A historiadora explica que isso ocorre não somente porque a cultura é permeada de conflitos, fazendo com que as

208

“Noticiário policial: o assassinato no Canal do Mangue”, Jornal do Brasil, 3/02/1916, 9.

209 Pereira, Affonso de Miranda. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século

XIX. Campinas, Ed. UNICAMP, 2004, p. 34, apud Dantas, Carolina. “ Café com leite”: história, folclore, mestiçagem e identidade nacional em periódicos.(Rio de Janeiro, 1903-1914). Niterói: PPGH-

UFF, Tese de Doutorado, 2007, p. 76.

210 Sobre esses personagens criminais, ver o próximo capítulo. 211 Porto, Ana. Crime em letra de forma. Op. cit.

212

interpretações sejam ambíguas, mas porque a sociedade é repleta de aparentes contradições.

Acrescentamos à alegação de Porto a ideia de que a própria fabricação da opinião, como bem chama atenção Laborie, “é um lugar de tensões e contradições que se traduzem por atitudes aparentemente contrárias à lógica”, “por ambivalências, pelo

pensamento duplo e suas zonas cinzentas” (grifos do autor).213 O autor salienta que “é uma linguagem difícil de traduzir, em que as incoerências não são percebidas como tais, em que nem tudo se reduz à razão”214. Pode-se dizer nesse sentido que os jornalistas no início do século XX certamente não percebiam as incoerências de querer imputar um sentido pedagógico nos textos de crimes que produziam e ao mesmo tempo apresentar elementos que contrariavam sua “mensagem civilizadora”.

De qualquer forma, havia, no caso da criminalidade dos não-brancos, algumas reportagens (33 ou 30,8% de um total de 107 matérias sobre criminalidade dos negros ) que não só imputavam um sentido moral em relação aos criminosos negros, mas também estabeleciam explicitamente relações intrínsecas entre cor e crime. Tais matérias se baseavam na ideia de que a raça e/ou pobreza constituíam as causas ou a causa do crime. Como mostra o quadro abaixo, o percentual dessas notícias veiculadas pelo Correio da Manhã era mais expressivo do que o do Jornal do Brasil e o da Gazeta

de Notícias. 215

Quadro 16 – Número de reportagens por jornal que consideravam a raça e/ou pobreza como os fatores (ou o fator) da criminalidade dos negros (1900-1920)

Jornais %

Correio da Manhã 11 52,4% de um total de 21 reportagens sobre criminalidade dos negros

Gazeta de Notícias 11 30,2% de um total de 43 reportagens sobre criminalidade dos negros

Jornal do Brasil 9 20,9% de um total de 43 reportagens sobre criminalidade dos negros

Total 33 30,8% de um total de 107 reportagens sobre

213

Laborie, Pierre. “Memória e opinião”. Op. cit., p. 84. 214 Idem, ibidem, p. 84.

215 Vale observar que não há elementos na documentação que nos possa indicar o motivo (ou os motivos) pelo qual o Correio da Manhã tinha uma maior representatividade de notícias acerca do tema ao longo do tempo.

criminalidade dos negros Fontes: Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil e Correio da Manhã.

Apesar dessa diferença percentual entre os jornais, as reportagens dos três impressos consultados convergiam em destacar as razões sociais e raciais da criminalidade dos negros.

No que diz respeito primeiramente às articulações que os repórteres faziam entre cor e pobreza, elas se davam através de expressões como “ralé de cor preta” ou “preto sem ocupação”.216 Os criminosos negros eram retratados aí como se fossem indivíduos quaisquer (“preto Gualberto de tal”217), sem uma identidade definida, à margem da sociedade.218 No caso dos criminosos brancos, os jornalistas podiam também considerá-los como pobres. Mas não associavam de forma depreciativa a cor dos mesmos à pobreza, e nem mesmo estabeleciam relações intrínsecas entre cor branca e pobreza. Já em relação aos criminosos negros, os repórteres, logo depois de associarem a cor à pobreza, faziam questão de reforçar a ideia de que tais populares eram indivíduos perigosos à sociedade, como uma forma de estabelecer uma vinculação intrínseca e depreciativa entre pobreza, cor e criminalidade.

Há, no morro de São Carlos, ali bem detrás da Casa de Correção e bem próximo a delegacia do 9º. distrito, dois grupos que se denominam o “Portugal pequeno” e o “Novo Brasil”.

O primeiro é composto de gente branca, na sua maioria portugueses, e o segundo da ralé de cor preta, que de quando em quando vai ter a polícia. (...)

(...) Clemente, o chefe do bando “Novo Brasil”, é um preto sem ocupação, e por várias vezes foi preso por espancar crianças.219 Os jornalistas também salientavam que os negros ingressavam no crime devido à influência do seu meio social (favelas, ruas e más companhias): “(...) Manoel Theodoro, de cor preta, aliara-se a ladrões e ladrão se tornara, sendo por várias vezes preso e remetido para a Colônia Correcional”.220 De um total de 33 reportagens que

216

“O terror do morro de São Carlos: o famoso bando de “o Brasil Novo”, Correio da Manhã, 12/11/1915, 5.

217 “Um roubo misterioso na rua Thomaz Coelho: a feitiçaria em ação”, Gazeta de Notícias, 1/03/1917, 3. 218

Pesavento, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.

219 “O terror do morro de São Carlos: o famoso bando de “o Brasil Novo”, Correio da Manhã, 12/11/1915, 5.

220

estabeleciam explicitamente as relações entre cor e crime, sete ou 21,2% delas associavam pobreza ou meio social à criminalidade dos negros.

Mas as reportagens e jornalistas policiais podiam também passar a ideia de que os negros ingressavam na vida criminosa por motivos raciais, e não devido a pobreza e meio social . De um total de 33 notícias que estabeleciam explicitamente as relações entre cor e crime, 11 ou 33,3% delas veiculavam essas motivações. Pelo argumento racial, os repórteres salientavam que os negros e mulatos viviam naturalmente num “meio social pobre e vicioso” (botequins, prostíbulos etc.), cometendo diversos roubos e furtos ou auxiliando os ladrões nestes crimes porque eram “pretos/mulatos” “degenerados”. Não havia aí referência à ideia de que o meio social influenciaria esses indivíduos a ingressarem na criminalidade, pois os repórteres pareciam querer sugerir que o simples fato de ser negro ou mulato já os tornava naturalmente propensos ao crime, como sugere a notícia abaixo:

O major Bandeira de Mello, chefe da inspetoria de segurança policial (...) descobriu que no caso (de latrocínio) estava envolvida uma negra degenerada de nome Maria Nair. (...) Depois dos mais árduos trabalhos, o major Bandeira de Mello encontrou no albergue noturno do cais do Porto a perigosa negra, que foi presa. No botequim da rua Visconde de Itaúna n. 573, o espanhol Inocêncio Moinhos encontrou a crioula Maria Nair, vadia conhecida, freqüentadora do albergue noturno do cais do Porto, auxiliar de ladrões perigosos.221

Nesse tipo de notícia, os jornalistas faziam questão de mencionar repetidamente a cor dos larápios como uma forma de associar a cor/raça a ambientes vistos como “viciados” da cidade (prostíbulos, botequins) e à criminalidade:

Arnaldo de tal, mulato alto, punguista terrível e audacioso (...). Xavier de tal, de cor preta, mal encarado e muito grosseiro. É tipo rancoroso e vingativo. Nascimento de tal, mulato escuro. É de uma audácia a toda prova. Diz sempre que a única coisa que nunca o enjoou foi o sangue humano.

(...) Onde moram os membros desta perigosíssima quadrilha de salteadores. (Eles) habitam na hospedaria da rua de S. Pedro n. 301. É um antro perigosíssimo. Habitado por malandros, vagabundos e ladrões, o bordel n. 201 da rua de S. Pedro é também um foco de baixo meretrício. Arnaldo costuma pernoitar com sua amante, uma mulher decaída de cor parda, no bordel da rua dos Arcos. Aí é que Arnaldo ia pernoitar depois de suas rapinagens. 222

221 “Dois ladrões matam um homem vingando-se e roubando”, Correio da Manhã, 2/02/1916, 3; “Esclarecendo um crime”, Jornal do Brasil, 2/02/1916, 11.

222

Havia também a ideia de que a “a própria natureza” dos populares negros explicaria por que eles teriam ingressado na vida criminosa, através de expressões como “pretos de instintos bestiais” e “negros de alma negra”223. Isso parecia indicar que os ‘defeitos’ dos negros podiam ser pensados como insuperáveis, tornando-se eles, assim, membros potencialmente permanentes das classes perigosas224. Um exemplo dessa suposta “periculosidade” do negro foi exposto na reportagem publicada em 1911 pelo

Correio da Manhã, na qual um repórter associou de forma explícita a “cor negra” de um

criminoso chamado Frederico Morais a sua propensão a “criminalidade, perversidade, degeneração”. No próprio título da matéria, o jornal, em tom fortemente racista, buscava passar para os seus leitores a ideia de que Frederico tinha uma “alma perversa” porque ele era negro: “Um corpo negro guardando alma ainda mais negra”.225

Os repórteres, além de fazerem essa vinculação entre cor e violência criminal, podiam reforçar a ideia de que a aparência física (olhos, nariz, formato do rosto) dos criminosos não-brancos de uma forma geral denotava sua “alma violenta”.226

Thomaz Hygino (...) é um pardo, (...) forte, entroncado e (...) beiços grossos e revirados, nariz achatado e olhos mortiços, pequenos, voltados em oblíqua acentuada dos altos da fronte para o nariz. Tipo de pardavasco feio e mal encarado, servido por uma maneira especial de falar, precipitada e calcada num palavreado esquisito, que impressiona e que apavora (...).227

Neste tipo de texto, podia-se veicular um racismo do tipo biológico. Segundo Stuart Hall228, este tipo de racismo privilegia marcadores como a cor da pele. Hall expõe