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Observa-se que, na sociedade brasileira atual, os meios de comunicação criminalizam os jovens das camadas populares, denominando-os “menores”, e perpetuam a estigmatização das classes subalternas com o adjetivo de “carentes”, segundo apontamentos feitos por Mello (1999).

A associação naturalizada da juventude como perpetradora de atos de violência e crime contra a vida pode ser rapidamente desconstruída com análises como a do Mapa da Violência 201419 – Os jovens do Brasil, realizada por Waiselfisz (2014). A equipe coordenada pelo sociólogo, com o apoio da Faculdade Latino- Americana de Ciências Sociais (Flacso) e do Centro Brasileiro de Estudos Latino- Americanos (Cebela), avaliou dados sobre homicídios do período entre 2002 e 2012, advindos do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, e comparou-os com censos demográficos do IBGE e estimativas intercensitárias disponibilizadas pelo Departamento de Informática do SUS (Datasus). O mapa também incorpora estatísticas sobre outras causas externas de mortes: acidentes de transporte, suicídios e outros acidentes.

O primeiro gráfico que destacamos é o de taxas de homicídio (por 100 mil habitantes) segundo faixa etária em 2012 (Gráfico 3). Nele podemos observar que a cada 100 mil jovens entre 20 e 24 anos, 66,9 morrem assassinados; na faixa etária anterior, entre 15 e 19 anos, são 53,8 a cada 100 mil. E na faixa etária seguinte, entre 25 e 29 anos, um número ainda estarrecedor: são 55,5 jovens vítimas (e não autores) de homicídio.

19 Disponível em: <http://mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf>. Acesso em:

Gráfico 3 − Taxas de homicídio (por 100 mil) segundo faixa etária − Brasil, 2012. Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

No Gráfico 4, temos o ordenamento anual mais recente, 2012, sobre os estados em que a taxa de homicídio de jovens é mais alta a cada 100 mil habitantes.

Gráfico 4 − Ordenamento das UFs segundo taxas de homicídio juvenil – Brasil, 2012. Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

Poderíamos imaginar que se trata de uma situação excepcional, que 2012 foi um ano atípico e tais números não compõem nenhuma tendência especial sobre a vulnerabilidade a qual os jovens estão expostos, ou mesmo que as capitais são os únicos locais de produção de violência.

Não é o que demonstra o conjunto dessa pesquisa que acontece desde 2005, infelizmente divulgada de forma rarefeita nos meios de comunicação e debatida nos espaços legislativos. Segundo Waiselfisz (2014), os 52,2 milhões de jovens que o IBGE estima que existiam no Brasil em 2012 representavam 26,9% do total da população. Porém, o Datasus registrou 30.072 assassinatos de jovens nesse ano, o que significa 53,4% do total de homicídios do país. Ou seja, se no conjunto da população a magnitude de tais crimes pode ser considerada muito elevada, conclui- se que aquela relativa ao grupo jovem tem caráter de inegável pandemia. O Gráfico 5 mostra o crescimento com pequenas quedas da participação em porcentagem dos homicídios juvenis no total de homicídios entre 1980 e 2012.

Gráfico 5 − Taxas de participação em porcentagem dos homicídios juvenis no total de homicídios entre 1980 e 2012.

Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

O crescimento das taxas de homicídio durante os anos de 2002 a 2012 na população entre 15 e 29 anos mostra que, nessa década (Gráfico 6), só sete estados conseguiram diminuir suas taxas juvenis, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro,

e também destacam-se casos extremos como do Rio Grande do Norte e da Bahia, onde os índices mais que triplicam.

Gráfico 6 − Crescimento das taxas de homicídio. População jovem por UF entre 2002 e 2012. Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

Sobre a localização espacial desses homicídios, Waiselfisz (2014) esclarece que entre 1998 e 2003 as taxas de homicídio das capitais ficam relativamente estáveis, em torno de 46 homicídios por 100 mil habitantes, já as taxas

dos estados como um todo continuam a crescer, indicando que os polos dinâmicos da violência foram deslocados. Por essa razão, a participação das capitais cai de 41,3% para 38,0% nos homicídios globais.

A participação das capitais continua a minguar: de 38,0% para 34,6% entre 2003 e 2007, o que se traduz em taxas que eram 46,1 para 36,6 homicídios por 100 mil. No período entre 2007 e 2012, principalmente fora das capitais, retoma-se moderadamente o fôlego de crescimento, ao mesmo tempo em que a participação dessas mesmas capitais continua a cair: de 34,6% para 31,6%.

A emergência de polos de crescimento econômico em municípios do interior de diversos estados do país torna-se atrativa para investimentos e migrações pela expansão do emprego e da renda, e pode ser um dos possíveis fatores determinantes dessa mudança (idem, ibidem). Pelos mesmos motivos, convertem-se também em polos atrativos para a criminalidade, o que é agravado pela ausência de esquemas de proteção dos aparelhos do Estado.

Além desse contexto de crescimento do interior, as capitais e grandes regiões metropolitanas, que foram declaradas prioritárias no novo Plano Nacional de Segurança Pública de 1999 e no Fundo Nacional de Segurança instituído em janeiro de 2001, receberam investimentos de recursos federais e estaduais, principalmente para aparelhamento dos sistemas de segurança pública. Assim, dificultou-se a ação da criminalidade organizada, que migra para áreas com menor capacidade das estruturas de segurança. Também, a subnotificação nas áreas do interior regrediu graças à melhor cobertura dos sistemas de coleta dos dados de mortalidade nessas regiões do país (idem, ibidem).

Gráfico 7 – Ordenamento das capitais por taxas de homicídio juvenis – Brasil, 2012. Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

Tabela 1 − Taxas de homicídio (por 100 mil) na população jovem, por capital e região 2002/2012.

Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

As estatísticas apresentadas por tais pesquisas recebem relativa notoriedade midiática durante uma ou duas semanas após seu lançamento. Após esse prazo, os números chocantes que demonstram a brutalidade a que estão

expostos os jovens da periferia voltam ao ostracismo. Da mesma forma, a imagem do adolescente infrator amolda-se de tal forma às questões étnico-raciais que a imagem do adolescente negro, pardo ou mulato se transforma em sinônimo de tráfico de drogas, autoria de ato infracional e internação socioeducativa. Raramente a juventude negra é apresentada como vítima preponderante de assassinatos, como se demonstrará a seguir.

A naturalização dessa perspectiva é ratificada por uma visão de que uma determinada dose de violência, que varia de acordo com a época, o grupo social e o local, deve ser aceita e torna-se até necessária, inclusive por aquelas pessoas e instituições que teriam a obrigação e a responsabilidade de proteger a sociedade e os jovens da violência. Tal aceitação social da violência opera por meio de diversos mecanismos de culpabilização da vítima.

Dessa forma, setores vulneráveis ou historicamente subalternos demandam proteção específica por meio de legislação. Um exemplo frequente é o da mulher que sofre o estupro e é responsabilizada pelo crime por trajar roupas consideradas inadequadas ou por não ter dado sinais claros de que não desejava a relação sexual (CARDOSO; VIEIRA, 2014; IPEA, 2014).

No caso de jovens e adultos, ocorre a criminalização da pobreza: todo morador da periferia e das favelas e que se traja sob códigos específicos que não são os de classe média branca e “bem-nutrida” é bandido em potencial. Os episódios ocorridos entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014 dos “rolezinhos” (SEVERI; FRIZZARIM; BORGES, 2015) nos shoppings paulistas ilustram tal esquema perverso. Essa temática foi objeto de quase uma centena de artigos científicos desde 2014, além de dois dossiês em revistas de sociologia:

Os rolezinhos escancararam três importantes tensões e preconceitos presentes na sociedade brasileira: de classe, de raça/cor e de idade/geração. Eles foram perseguidos e duramente reprimidos em primeiro lugar porque eram jovens pobres, como pode ser visto nos vídeos que já estão circulando na internet, mostrando jovens brancos de classe média a fazer algazarra em shoppings e sem sofrer nenhum tipo de constrangimento da equipe de segurança. Para uns o rótulo de flash mob ou brincadeira, para outros de arruaça e/ou arrastão. É, portanto, também uma questão de raça/cor, eleita como um dos critérios para se expulsar os jovens de dentro desses espaços, como observei pessoalmente. Além disso, foram estigmatizados pelo seu gosto de classe, por apreciarem um gênero musical, criado, performatizado e ouvido, não só, mas principalmente, por jovens pobres. E é, dessa forma, também um conflito de idade/geração, porque são adolescentes. Há, na atualidade, uma crise de autoridade na relação entre adultos e adolescentes, ou entre os mais

velhos e mais novos, evidenciada nos muitos problemas que acontecem na relação professor/aluno em escolas de ensino médio das classes mais ricas às classes populares, sem distinção. A única distinção deve-se ao fato de que no último caso os conflitos são publicizados e criminalizados. Os limites educativos da juventude pobre no Brasil hoje são quase sempre dados pela polícia (PEREIRA, 2014).

As tensões mencionadas pelo antropólogo em sua etnografia desdobram- se nos dados a respeito do adolescente como vítima da violência.

De acordo com o Mapa da Violência 2014 (WAISELFISZ, 2014), com exceção do deslocamento geográfico e da consistente vitimização juvenil, não aconteceram grandes mudanças nas taxas nacionais de homicídio: em 2002, a taxa nacional foi de 28,9 por 100 mil, quase idêntica à taxa de 29,0 em 2012.

A desconsideração das informações étnico-raciais advindas do Sistema de Informação de Mortalidade (SVS-MS, 2014) e essa aparente estabilidade dos índices de homicídio nos dois extremos da década pode colaborar para o ocultamento das transformações profundas da lógica interna da violência: a seletividade social dos que serão assassinados é crescente e previsível.

Negros morrem mais do que brancos no Brasil. Negros são pessoas mais “assassináveis” do que brancos. Seja no conjunto da população ou entre a faixa etária dos 15 aos 29 anos (idem). O número de homicídios da população branca apresenta tendência de queda de 24,8%: no conjunto da população o número de vítimas diminui de 19.846 em 2002 para 14.928 em 2012. Já o crescimento dos assassinatos entre os negros foi de 38,7%: as vítimas aumentaram de 29.656 para 41.127 nesse mesmo período (Tabela 2).

Em 2002, o índice de vitimização20 negra na população total foi de 73: morreram proporcionalmente 73% mais negros que brancos. Em 2012, esse índice mais do que duplica: 146,5, o que significa um crescimento de 100,7%, conforme Tabela 2 a seguir.

20 Tal índice é calculado da seguinte forma: no início do período analisado, a taxa de homicídios dos

brancos era de 21,7 por 100 mil brancos. A dos negros era de 37,5 por 100 mil negros. A ideia é saber quão maior é o índice de negros assassinados com relação ao de brancos proporcionalmente ao tamanho de suas respectivas populações.

Tabela 2 − Homicídios, taxas (por 100 mil) e vitimização segundo raça/cor. População total do Brasil entre 2002 e 2012.

Legenda: *soma das categorias preta e parda. Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

Os mesmos índices de homicídio entre os jovens foram bem elevados, e a evolução muito semelhante. Na década analisada na Tabela 3, o declínio de homicídios de brancos na população total é de 23,8%, e entre os jovens brancos é ainda maior: queda de 28,6%, enquanto entre os negros o aumento é de 7,1% na população total e 6% entre os jovens.

Tabela 3 − Síntese da evolução das taxas brancas e negras; totais e juvenis no Brasil entre 2002 e 2012.

Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

Em 2002, os índices de vitimização negra na população total e jovem são semelhantes: 73% e 79,9%, respectivamente (morrem proporcionalmente ao tamanho de suas populações 79,9% mais jovens negros que brancos). Entretanto, no final da

década analisada no Gráfico 8, o índice de vitimização de jovens negros em 2012 aumenta 111% (contra o aumento de 100,7% na população total) e atinge 168,6%.

Gráfico 8 − Taxa de homicídio branco e negro e índice de vitimização negra. População jovem do Brasil entre 2002 e 2012.

Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

Já a Tabela 4 refere-se aos anos de 2010 a 2012 e demonstra nas capitais a distribuição das taxas de homicídio por 100 mil habitantes na população de brancos e negros. De forma geral, a população negra é mais assassinada quando comparada à população branca. Ou seja, é mais provável que um negro seja morto do que um branco.

No quadro mais dramático a respeito das relações entre racismo e homicídio, destacamos duas capitais nordestinas: em Maceió o índice de vitimização foi de 1.215% no período de 2010 a 2012, e em João Pessoa o índice foi de 2.319%.

Constatamos que, em São Paulo, apesar de ser a capital com o menor índice (22,5) de homicídios de negros na população geral em 2012, seu mesmo indicador na população branca é de quase metade (11,5). O mesmo ocorre com a população jovem paulistana: 19,5 de jovens brancos mortos contra 42,8, mais do que o dobro.

A única capital em que o índice de vitimização é negativo, ou seja, a população branca foi assassinada proporcionalmente em maior escala que a população negra foi Curitiba.

Tabela 4 – Número e taxas de homicídio (por 100 mil) de brancos e negros e vitimização negra nas capitais. População total do Brasil entre 2010 e 2012.

Fonte: SIM-SVS-MS apud Waiselfisz (2014).

A publicação do Atlas da Violência21 pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas (IPEA) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2017 e 2018 (com dados de 2015 e 2016, respectivamente) corrobora as tendências observadas pelo Mapa da Violência discutido anteriormente. A população jovem masculina permanece como a principal vítima: mais de 92% de todos os homicídios acometeram essa parcela da população em 2015, aumentando para 94,6% em 2016. Foi um total de 31.264 homicídios em 2015 e 33.590 em 2016, um aumento de 7,4%, que contraria o período anterior de queda de 3,6%. O total de jovens mortos em 2016 também pode ser expresso por 2.799 por mês, ou 93 jovens por dia.

Ainda em 2015, no estado de Alagoas a taxa de homicídios de homens jovens foi de 233 por 100 mil e em Sergipe de 230,4. No período entre 2005 e 2015, 318 mil jovens foram assassinados no país. Contudo, os pesquisadores perceberam uma disparidade entre as unidades da federação: enquanto São Paulo teve uma redução de 49,4% do número de homicídios nessa população, no Rio Grande do Norte o aumento foi de 292,3% de jovens entre 15 e 29 anos mortos nesses 11 anos.

Também de acordo com o Atlas da Violência 2017, os dados sobre mortes resultantes de intervenção policial divergem de acordo com a fonte: para o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) organizado pelo Datasus, as mortes categorizadas como “intervenções legais e operações de guerra” foram 942 no ano de 2015 em todo o país, com destaque para o Rio de Janeiro (281), São Paulo (277) e Bahia (225). Tais estatísticas seriam suficientes para uma crise institucional nacional que levasse a uma reformulação profunda das políticas públicas dessa área, mas os números reunidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública são ainda mais alarmantes: eles apontam o total de 3.320 mortes no país em um ano, ou seja, 3,5 vezes os números da saúde. A Bahia apresenta um valor próximo ao SIM: 299 assassinatos; mas a atuação policial em São Paulo, que resultou em 848 homicídios de jovens, e no Rio de Janeiro, em 645, confere um caráter grotesco e seletivo à questão, como se confirmará a seguir.

A cada 100 pessoas mortas no país, 71 são negras. Isso se traduz na chance 23,5% maior de uma pessoa negra ser assassinada quando comparada às outras raças, descontando o efeito da idade, bairro de residência, escolaridade, sexo e estado civil.

A visibilidade política e o impacto de tais mortes na opinião pública são totalmente distintos. A reação diferenciada da mídia, de acordo com o status social das vítimas, prioriza os bairros centrais e da zona sul de São Paulo, por exemplo. Simplificando um processo que é multideterminado e já foi alvo de análises mais minuciosas, poderíamos afirmar que às periferias, na divulgação de chacinas ou mortes causadas por policiais ou traficantes, resta a frieza dos números e estatísticas. Aos bairros centrais, a cobertura midiática primará pelo calor dos nomes e histórias de vida que os aproximem de seu público consumidor.

Ao publicar Casa grande e senzala em 1933, Gilberto Freyre defendeu o argumento de que no Brasil não existiria racismo, de que viveríamos em uma democracia racial e que isso conferiria força e não degeneração ao futuro do país. Durante a década de 1960, a assim chamada Escola de Sociologia de São Paulo, encabeçada por Florestan Fernandes, começa a fazer críticas às teses freyrianas e a denunciar o racismo escamoteado, fazendo um paralelo com a tese do homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda. A democracia racial começa a ser compreendida pela academia como um mito e a discriminação embutida no racismo cordial passa a ser identificada.

Mas, anterior a essas discussões e influenciando profundamente a formação de médicos, antropólogos, psicólogos, advogados e professores, grassou livre por décadas o racismo científico, como demonstra Stancik (2006, p. 33):

Nos tempos iniciais da República, a intelectualidade brasileira manifestava sérias dúvidas em relação ao futuro do país. Segundo as teses raciais vigentes no período, a miscigenação entre brancos, negros e índios aqui verificada teria gerado uma raça inferior, degenerada, incapaz para o progresso e de se fazer adaptar à civilização. Tal realidade, concluíam, condenava o país a uma condição de atraso em relação às nações industrializadas, ricas, “civilizadas”.

Diferentemente do racismo – que no início da idade moderna justificou a escravidão de negros africanos para atender às necessidades econômicas dos mercadores e produtores de açúcar e que se justificava com base empírica na superioridade do homem branco sobre o negro –, a transposição da teoria de Charles Darwin dos fenômenos biológicos para fenômenos sociais deu origem ao darwinismo social, que estabeleceu a superioridade branca europeia entre as raças humanas e acabou por fornecer um dos pilares da legitimação ideológica para a expansão imperialista do século XIX.

Uemori (2008) problematiza a apropriação por diversas tendências intelectuais das ideias de “luta pela existência” de Darwin: constituía-se assim um caminho para a legitimação do capitalismo monopolista e do neoimperialismo nas colônias africanas. Tais tendências desdobraram-se em ações que incluíam desde o militarismo (apresentado como uma necessidade biológica das nações); passando pelas iniciativas de controle populacional, o que incluía a eliminação dos alcoólatras, mendigos e dos loucos; até a tentativa de controlar as reivindicações dos

trabalhadores nos movimentos grevistas europeus do século XIX e na América Latina da primeira metade do século XX.

Ou seja, em meados do século XIX, teóricos como Herbert Spencer, Georges Couvier e Le Bon desenvolveram bases pseudocientíficas que foram incorporadas no início do século XX por políticas nos Estados Unidos e no Brasil, entre outros. Segundo tais autores, a miscigenação causa a degeneração progressiva da humanidade rumo à esterilidade, porque assim como espécies animais distintas, cada raça humana teria características morais e comportamentais diferentes.

As ideias de Spencer (1820-1903) desempenharam um papel fundamental para a elaboração da teoria da herança do britânico Sir Francis Galton (1822-1911), um dos pais da eugenia e que será tratado mais adiante neste texto. Spencer enuncia que existe na humanidade um processo evolutivo teleológico: “no sentido de uma direção progressiva a que tudo no universo estaria submetido, e de existência de unidades fisiológicas que registrariam as modificações, transmitindo-as às próximas gerações” (cf. HOMES, 2000, p. 6-7 apud DEL CONT, 2008).

Arthur de Gobineau, ou Conde de Gobineau, amigo íntimo de Dom Pedro II, afirmou após visita de 15 meses ao país: “Trata-se de uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia” (RAEDERS, 1988, p. 96 apud SCHWARCZ, 1994). Assim, para a construção de uma nova sociedade republicana, os descendentes de angolanos, moçambicanos e do Congo, entre outros países da África, escravizados e trazidos para o país entre os séculos XVI e XIX, representariam um risco inerente, dada sua suposta tendência ao crime, à pobreza e à concupiscência, que teria sido potencializada graças à mistura entre as raças negra, indígena e branca.

Munareto (2013) discute que, para Gobineau, essa miscigenação entre conquistadores e conquistados é inevitável, pois, conforme uma civilização originalmente pura em termos raciais cresce e se fortalece, tende a dominar outros povos e é a causa da queda de todas as grandes civilizações:

Penso, pois, que a palavra degenerado, ao aplicar-se a um povo, deve significar e significa que este povo já não possui o valor que antigamente possuía, porque não circula em suas veias o mesmo sangue, gradualmente depauperado com as sucessivas misturas. Dito de outra forma, que com o mesmo nome não conservam a mesma raça que seus fundadores; enfim, que o homem da descendência, o qual chamamos de degenerado, produto