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A Febem foi criada em 1976 para atender adolescentes em conflito com a lei. Trinta anos depois, durante o Governo José Serra, em dezembro de 2006, ocorreu a transformação do nome de Febem para Fundação Casa – Centro de Atendimento Socioeducativo, quando foram desativados os complexos de Tatuapé, Imigrantes e Franco da Rocha. A Fundação Casa em 2019 tem 143 unidades, atende 7.865 adolescentes, sendo 95,81% homens e 4,19% mulheres. No formulário de autodeclaração, 55,35% são pardos, 13,85% pretos, 29,78% brancos e 0,31% amarelos32.

Na teoria, o principal mérito da mudança para Fundação Casa – Centro de Atendimento Socioeducativo foi a descentralização do atendimento em unidades menores, o número reduzido de adolescentes por instituição de meio fechado e a queda temporária no número de rebeliões. No começo dos anos 2000, complexos como Imigrantes e Tatuapé chegaram a ter mais de 1.800 adolescentes cada.

Entretanto, conforme citamos no capítulo anterior sobre ambiente e infraestrutura das unidades, o relatório feito pelo Conselho Nacional do Ministério Público, Um olhar mais atento nas unidades de internação e semiliberdade para

adolescentes (2015, dados 2014), mostrou que São Paulo é o terceiro pior estado no

cumprimento dos parâmetros do Sinase no que diz respeito ao limite de vagas: 94,7% das 115 unidades abrigam mais de 40 adolescentes.

Conforme reportagem da revista Fórum, em uma entrevista com educadores que ousam denunciar as torturas e incongruências que permanecem, não há critério oficial para definição do que seja rebelião, e tumultos por vários motivos continuam a acontecer, assim como tentativas de fuga na unidade de São Vicente, Encosta Norte, Itaquera e Fazenda do Carmo (FIDELES, 2012).

Outra mudança foi a parceria com ONGs ou instituições que antes faziam a crítica e, após a extinção da Febem, desenvolvem projetos dentro das unidades, como é o caso da Pastoral do Menor. Contudo, outro problema apresentado é a permanência da “tranca”, isolamento por semanas a fio, sem critérios. Segundo os educadores com os quais os jornalistas conversaram, há a medicalização dos 32 Disponível em: <www.brasildefato.com.br/2019/10/11/especial-or-a-febem-nao-morreu/>. Acesso

adolescentes com altas dosagens como forma de contenção bioquímica dos que questionam a estrutura. Inclusive, há o relato do caso de adolescentes que afirmam que não conseguem mais estudar por causa da medicação. Ou, ainda mais frequente, casos de jovens dependentes químicos que cumprem medida por terem roubado por conta disso, precisam de acompanhamento médico e psicossocial e não os obtêm porque não há vagas nos Centros de Atenção Psicossocial, CAPS, ou a unidade não os transporta por receio de fuga (idem, ibidem).

Graças à competência social de agentes di menores, a reforma institucional que começou a se intensificar em meados dos anos 2000 foi um desdobramento da condenação na Corte Interamericana e incluiu a mudança de Febem para Fundação Casa; porém, como exposto no item anterior e neste, trouxe pouca mudança. Simultaneamente, é no momento de crítica ao sistema Febem que setores e instituições33 experts di menores conseguem progressivamente constituir os problemas e expô-los de maneira propositiva. Esse movimento de pressão por mudanças não é isento de falhas ou limitações associadas a certas regras34. Determinadas operações, ou resultados gerados pelos arranjos institucionais existentes, não conseguem implantar integralmente o que os grupos de oposição reivindicavam (BENZ; LIDEC apud LAGROYE; OFFERLÉ, 2010).

Os experts de tais instituições e os intelectuais “di menores” foram chamados para pôr em prática as disposições sociais nas audiências analisadas nesta pesquisa. Também participaram, mesmo após a promulgação da Lei Sinase, de uma variedade de eventos promovidos por eles mesmos, como é o caso da XXV edição do Congresso Nacional da ABMP, em 2014, ou das Assembleias Nacionais da Pastoral do Menor e das Conferências Estaduais dos Conselhos de Direito35. Em tais oportunidades, além da programação com palestras, ocorrem momentos propositivos

33 Citamos aqui como exemplo: a CNBB, a Pastoral do Menor, a Associação Brasileira de Magistrados,

Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP); Instituto Latino- Americano para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud), entre outros.

34 Como o exemplo do isolamento em celas sem luz e sem estrutura alguma, que o PL Sinase tentou

abolir, mas não foi bem-sucedido. Observamos que, na audiência de 7/10/2008, Munir Cury destacou a existência de “adolescentes com transtorno mental e de altíssimo risco para a sociedade” que mereceriam que a medida de isolamento constasse na lei sob a seguinte forma: “salvo expressa e fundamentada autorização judicial, ouvidos previamente o Ministério Público e o defensor”.

35 Como é o caso dos Conselhos Municipais de Direitos de crianças e adolescentes e os Conselhos

e de divulgação da consulta pública sobre documentos oficiais, ou de confecção de moções de repúdio ou solidariedade, em geral a situações de omissão do poder público36.

A pressão para que a Fundação Casa fosse organizada no lugar da Febem veio, portanto, da competência social de tais agentes que se organizaram, como ilustra o exemplo do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Esse conselho, com o Poder Executivo Federal, ofereceu suporte técnico ao governo paulista diante de reiteradas rebeliões seguidas de morte no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, suporte esse que não foi aceito37. Também elaborou cartas38 em que pedia a extinção da Fundação e fazia a denúncia após caravanas de fiscalização.

O Conanda agiu em vários momentos em parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil e suas notas oficiais, que constituíam outra fonte de tensão por agregar a internacionalização das articulações. No auge da crise de 1999 do complexo Imigrantes, o governador Mario Covas anunciou que iria comandar diretamente a Febem, e se reuniu com o bispo Dom Fernando Antonio Figueiredo e outros bispos paulistas da CNBB39, além de representantes do Conselho Regional dos Presbíteros, Conselho Regional de Diáconos, Regional dos Leigos e Conferência dos Religiosos do Brasil.

Depois da Fundação Casa e antes do Sinase, a desativação do maior complexo da Fundação, o Tatuapé, fez parte da política de descentralização e de mudanças para possibilitar que o jovem internado fique mais próximo de sua casa. Todavia, apesar da construção de unidades menores em cidades do interior, os demais complexos da capital como Brás, Vila Maria, Franco da Rocha e Raposo Tavares continuam operando sem qualquer projeto de desativação. O total de

36 Como é o exemplo dos adolescentes desaparecidos e mortos em Luziânia, GO, muito provavelmente

por ação da Polícia Militar. Disponível em:

<http://portal.mj.gov.br/sedh/conanda/Nota_publica_luziania.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2013.

37 As razões são desconhecidas. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ cotidian/ff2008200001.htm>. Acesso em: 5 jul. 2013.

38 A carta mais famosa foi a de 2000, conhecida como Carta de São Paulo, que denunciava os

problemas estruturais da Fundação e sugeria a formação de um grupo de trabalho conjunto entre sociedade civil organizada e Governo Federal. Segundo o Conselho, a reivindicação nunca foi atendida. Disponível em: <http://www.promenino.org.br/noticias/especiais/conselho-nacional-dos-direitos-da- infancia-e-do-adolescente-defende-extincao-da-febem-de-sao-paulo>. Acesso em: 6 maio 2014.

39 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Disponível em:

unidades em 2005, às vésperas da extinção do nome Febem, era de 88 no estado, já em 2011 esse número aumentou para 142 (BARROS; BATISTA, 2011).

O aumento de 30% entre 2011 e 2012 no número de internações, de 6.850 para 9.039 (BURGARELLI; MANSO, 2012), contraria as novas diretrizes políticas para eliminar a superlotação e combater o estigma de “escola do crime”. Essas estatísticas evidenciam a falta de articulação entre o Poder Judiciário, que julga e avalia qual medida deve ser aplicada, e o Executivo, que aplica a sanção determinada pelo Judiciário. Afinal, uma das principais orientações a serem tomadas era restringir a internação para os casos de maior gravidade, conforme texto da súmula do Supremo Tribunal de Justiça, que será discutido no subitem 4.4, a respeito dos impactos da Lei Sinase.

Tais reportagens jornalísticas corroboram os dados do Panorama Nacional de Execução de Medidas Socioeducativas quanto à priorização da internação como resposta à maioria das infrações.

Dessa maneira, podemos afirmar que o breve mapeamento realizado neste capítulo destacou a Corte Interamericana de Direitos Humanos como uma instituição internacional proeminente de coerção e punição contra o Estado brasileiro diante das violações dos direitos dos adolescentes reiteradas por décadas. O Conanda, a Pastoral do Menor e a Ordem dos Advogados do Brasil destacaram-se na luta para a crítica oficial do modelo de atendimento socioeducativo sintetizado pela Febem paulista, colaborando também com relatórios com dados e pesquisas sobre a precariedade do sistema existente.

As rebeliões que ainda acontecem, a despeito das mudanças para Fundação Casa, vêm sendo tratadas de maneira pontual e esporádica pelos jornais desse estado.

Quando o assunto é ato infracional, é dada ênfase nos casos em que as vítimas dos homicídios são de classe média e alta. Ou então a reportagem frisa a necessidade de alteração do ECA, seja pela redução da maioridade penal ou a favor do aumento do tempo máximo de internação, sem qualquer problematização ou contextualização do que seja o sistema socioeducativo como um todo. É uma evidente simplificação de tratamento dada a uma questão tão complexa.

É nesse contexto de avanços e retrocessos no caso emblemático da Febem paulista que no próximo capítulo analisaremos a trajetória dos projetos que debateram o Sinase.

4 TRAJETÓRIA DE PROJETOS QUE DEBATERAM O SINASE

O campo que denominamos di menor teve sua hierarquia interna alterada durante a Constituinte e a promulgação do Estatuto de 1990. Os agentes que participaram desses debates são os mesmos que seguem atuando como intelectuais ou experts di menores até os dias atuais, mas ocupam posições diferentes a cada momento, como se poderá ver. Podemos citar convidados para compor a Comissão Especial do Sinase em 2008, como Rita Camata, ou para opinar em suas audiências, é o caso dos juristas Munir Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva e Olympio de Sá Sotto Maior Neto, que são os mesmos participantes da construção do Estatuto da Criança e do Adolescente, nos anos 1980/1990.

Após a discussão da representatividade da crise da Febem e de sua condenação, e antes de uma breve explanação sobre o caminho percorrido pelo Projeto de Lei n. 1.627/2007, faremos algumas considerações sobre o que denominamos como campo di menor. Esse espaço social foi fortemente estruturado nos últimos 27 anos pela atuação do Conanda e de vários conselhos estaduais e municipais, elaborando regulamentações na forma de marcos regulatórios (BRASIL, 2006), moções, resoluções, portarias (vide ANEXO III) e, finalmente, no Projeto de Lei da Câmara, que após cinco anos tornou-se a Lei Sinase. Assim, o trabalho de construção simbólica que entrou em curso a partir da promulgação do ECA, em 1990, prossegue e reitera a invenção da representação do Estado como lugar de serviço do interesse geral e da universalidade, conforme descrito por Bourdieu (2003, p. 122). Ou seja, a “invenção” de que os agentes envolvidos no campo da juventude em conflito com a lei comungariam de valores de neutralidade e de devotamento desinteressado ao bem público (idem, ibidem) e aos adolescentes e jovens que devem cumprir medidas socioeducativas.

As contradições das visões em disputa, porém, refletiriam no processo de aprovação do Sinase, em suas demoras e embates.