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A noção de juventude e, mais especificamente, de adolescência, como período universal marcado pelas transformações biológicas que determinam inexoravelmente o comportamento de todos os que pertencem a essa faixa etária ainda permeia os meios de comunicação e a comunidade científica.

Porém, como aponta Bourdieu (1983, p. 113): “O que quero lembrar é simplesmente que a juventude e a velhice não são dados, mas construídos socialmente na luta entre os jovens e os velhos. As relações entre a idade social e a idade biológica são muito complexas”. O senso comum e os pensamentos contemporâneos sobre a juventude não são, portanto, naturais, espontâneos ou instintivos.

Lenoir (1996) denomina base social as condições históricas sob as quais uma fração do fato social “humanos” se estabeleceu como categoria de pensamento “jovens”, ou seja, humanos dentro do mesmo intervalo de idade. Uma categoria de

11Tradução nossa: Adulto: “A partir de agora, ao invés de chamarmos vocês de ‘crianças, guris ou

bebês’, os chamaremos de seres humanos em processo de desenvolvimento. De acordo?” Miguelito: “Sim!” Adulto: “Sim, o que?” Miguelito: “Sim, senhor.” Adulto: “Assim soa melhor, certo?” Miguelito: “Sim, senhor!” Adulto: “Isto merece que festejemos. Camareiro! Um whisky para mim e outro para mim. (outro quadrinho) O seu, Miguelito, o bebo por você, seria lamentável que um ser humano em processo de

desenvolvimento começasse a se intoxicar quando ainda não está capacitado para isso. Saúde!”

Miguelito: “Saúde, senhor!” Adulto: “Bem, isso é tudo. Obrigado e felicitações a você e a todos os agora chamados seres humanos em processo de desenvolvimento. Pode retirar-se.” Miguelito: “Obrigado, senhor.” Miguelito para Mafalda: “Ontem a noite sonhei que continuávamos a ser o mosquito do cavalo do bandido, mas que respeito!” As histórias em quadrinhos de Mafalda, criada por Quino, argentino nascido em 1932, retratam uma visão inquietante acerca das transformações dos processos sociais no trato da infância e da adolescência.

pensamento não se estabelece se não tiver base social, logo, elas não podem surgir por imposição.

Nesse sentido, a juventude como categoria de pensamento e fato social diferenciado constituiu-se como problema social principalmente durante o século XX, conforme mencionado no subitem 1.3, e retomado ao longo da tese.

Para analisar a construção das categorias de pensamento relativas à juventude pobre elevada a problema social, analisaremos três bases sociais: o Estado e suas políticas públicas, a mídia e a divulgação de ideias e a comunidade científica e suas pesquisas.

Temos um indício de que a juventude pobre definiu-se como um problema social a partir do momento em que o Estado, após as revoluções burguesas do século XIX e calcado nos princípios do Movimento Higienista, passou a legislar sobre o cotidiano desses indivíduos, e começou a definir concretamente a forma como as instituições jurídicas, abrigos civis e religiosos deveriam tratar o menor.

As políticas públicas relacionadas ao combate à criminalidade expõem a forma contemporânea como o Estado brasileiro age e reitera a juventude pobre como problema social. Essas políticas, cujo objetivo é controlar a relação do tráfico de drogas e seus agentes mais jovens, focam mais em coerção e repressão dos jovens (RAMOS; MUSUMECI, 2005) que na prevenção e investigação de corrupção, lavagem de dinheiro e esquemas de evasão de divisas oriundas do tráfico (MAGALHÃES, 2000).

Segundo José Machado Pais (1990, p. 147), a juventude seria quase um mito que os meios de comunicação ajudam a definir ao veicular notícias sobre aspectos fragmentados dessa cultura (manifestações, modas, delinquência, etc.):

[...] se determinadas características afetam um contingente de indivíduos que fazem parte de uma geração demográfica tais características podem ser incorporadas culturalmente em certos modos de vida. Alguns dos componentes desse mito são vistos como problemas sociais: se essas características, específicas a um determinado período de vida, se apresentam como expressão de certos problemas sociais, esses recebem a atenção do poder público e serão alvo de medidas terapêuticas ou legislativas, que, por via institucional, consigam dar resolução parcial a esses problemas. Estas medidas interferem, por sua vez, na vida quotidiana dos indivíduos, podendo influenciar o timing das transições de uma para outra fase devida. [...]

No caso brasileiro, isso ocorre desde o Governo Imperial, quando jornais baianos oitocentistas, como O Alabama e Correio Mercantil, descreviam a vadiagem infantojuvenil: as algazarras, gritarias, insultos aos “respeitáveis” e peraltices praticadas por moleques vadios e jovens escravos próximos às igrejas e locais de grande movimentação (FRAGA FILHO, 1995, p. 112). Tais cenas urbanas foram descritas também por romancistas e subdelegados que relatavam como pais e mestres de ofício deveriam ser repreendidos por uma atitude “relaxada e relapsa” (idem, p. 118) com os filhos ou jovens escravos.

Ao longo das décadas de 1850 a 1860, médicos, delegados de polícia e juristas jornalistas debruçaram-se sobre os impactos das atitudes irreverentes e irrequietas nas ruas da capital. Escreveram sobre os vadios e peraltas que estavam mais audazes no enfrentamento com a polícia. Tratava-se, pois, de uma forma de pressão sobre os chefes de polícia a fazerem mais patrulhas para disciplinar a presença dessa população na rua e a “[...] desbaratar uma ´quadrilha` de menores que realizava roubos por toda cidade” (ibidem, p. 125).

Em 1880, o governo provincial da Bahia chega a ensaiar a instalação de colônias agrícolas correcionais “[...] onde fossem educados meninos pobres, afastando-os assim da ‘inércia’ e da vagabundagem” (ibidem, p. 133). As elites baianas nesse contexto voltaram a insistir na reclusão dos menores desvalidos:

[...] entre os anos 1880 e 1890, quando a total extinção do trabalho escravo se mostrou inevitável, e a infância se apresentou como a fase da vida estratégica na formação de homens e mulheres laboriosos e morigerados. [...] A infância vagabunda, segundo esses homens, precisava ser moralizada, educada e isolada em internatos para que assim pudessem vir a amar o trabalho, sob o risco de comprometer todo o futuro da sociedade (ibidem, p. 134).

É assim que o menor pivete como novo problema social adquire visibilidade pela imprensa, que, pelo menos desde o século XIX até hoje, somente prioriza notícias que relacionam a juventude pobre à expressão da violência. Apenas na segunda metade do século XX que uma pequena parcela da comunidade acadêmica e da

mídia12 passa a denunciar as instituições13 que abrigam jovens infratores como coprodutoras de mais comportamento delinquente.

A transformação do problema social “menor delinquente” em problema sociológico está relacionada também aos processos de criação de grupos de pesquisa, congressos e revistas científicas que desenvolvem literatura e conceitos sobre o tema. Pode-se verificar que, de forma concomitante à ação estatal de formulação e promulgação do ECA (1990), a sociologia atribui alta relevância ao problema social da juventude. Os sociólogos, os historiadores, os psicólogos, os assistentes sociais, os médicos e advogados nessa postura analítica não pretendem resolver o problema – tarefa das políticas públicas –, mas sim compreendê-lo. Dessa forma, associados ao Estado ou como parte dele, criam conceitos e maneiras de pensar o problema. Emerge e está instituída a “adolescência em conflito com a lei”.

Os assim denominados adolescentes em conflito com a lei tornaram-se um problema para a ciência por causa dos novos enquadramentos científicos e de sensibilidade propostos pelos intelectuais. A reflexão sociológica sobre a juventude pobre brasileira, entretanto, exige pensar na situação mais geral da pobreza no país e na dinâmica dos centros urbanos e nas desigualdades em particular. As ponderações sobre a adolescência em conflito com a lei também consideram que essas duas categorias não são sinônimas, embora sejam frequentemente tratadas como tal. Nem todo jovem que cumpre medida socioeducativa está em situação de vulnerabilidade socioeconômica, e nem todo jovem em vulnerabilidade social se torna infrator. Dentre todos os adolescentes pobres, uma minoria é autora de ato infracional.

A análise da construção sociológica da juventude, para além dos limites biológicos e geracionais ou das divisões de classe social, pode começar a ser realizada (PAIS, 1990) quando nos indagamos se os jovens compartilham os mesmos significados, quais suas crenças e representações. Se os pesquisadores da área têm o propósito de discernir diferentes significados e valores de certos comportamentos

12 Paralelamente, a mesma mídia, com destaque para o grupo Folha de S.Paulo, divulga

periodicamente pesquisas de opinião da população que corroboram projetos de lei de políticos conservadores para a redução da maioridade penal, que voltaram a ocupar lugar de destaque no ano de 2015. O papel ambivalente que a mídia desempenha no campo di menor será mais explorado no quarto capítulo: “Trajetória de projetos de Sinase´s”.

13 A apresentação mais detalhada dessas instituições e demais ações estatais será feita principalmente

juvenis, é preciso que consideremos os sentidos micro e macrossociais de internalização das normas.

Como são os mecanismos dos modos de vida nos centros, nos condomínios fechados, nas periferias, na zona rural? Como são incorporadas e utilizadas as táticas cotidianas dos jovens em territórios da vida social de algumas cidades, que guardam muita semelhança ao apartheid? Como as letras de algumas músicas explicitam processos de rejeição aos estigmas da violência, expondo importantes críticas sociais? Como atuam as redes sociais e o acesso à internet na questão em pauta?

Trata-se de uma dúvida que persiste: se os sociólogos e demais pesquisadores, que alimentam os dados de uma parcela dos formuladores de políticas públicas, consideram os jovens como interlocutores nas perguntas expostas ou como objetos alvos de intervenção.