2. CAPOEIRA ANGOLA: CULTURA NEGRA DE LIBERTAÇÃO
2.1. Corpo Angoleiro, corpo ancestral: por uma Educação Libertadora
Mais que um jogo de identidades, a Capoeira Angola é um jogo de alteridades, de diferenças, ou jogo entre identidades e diferenças. Jogo de desafios e inversões, mais que certezas. “Que só existe por causa do mistério. Lógica diferencial porque inventiva” (Oliveira, 2007a, p.181). A Capoeira Angola tem também totalidade e estrutura, mas que, ao invés de limitar, deve ter o sentido de libertar, como nos diz Eduardo Oliveira (2007a, p.182): “A capoeira angola é uma totalidade aberta (alteridade) e tem como estrutura a ancestralidade (sagrado). A ancestralidade não é um conjunto rígido de sansões morais, mas um modo de vida”. A capoeira angola é um modo de vida, que valoriza e se fundamenta na ancestralidade.
Aprender os movimentos da capoeira não se limita a aprender a jogar em uma roda de capoeira. Movimentar o corpo de forma “ancestral” volta-se, por exemplo, às possibilidades de movimentos mais voltados à nossa condição de seres da natureza, como os movimentos dos animais. Como se fosse uma redescoberta de nossas possibilidades quase esquecidas no curso da história da humanidade e da dita civilização – ereta, racional, social, sedentária, urbana. Movimentar o corpo, na vida, com a capoeira, é fugir do plano cartesiano e explorar a diversidade das formas naturais, ancestrais, onde a floresta, o mar, o rio, as montanhas, os animais, o ar, estamos todos conectados, como partes de um ser vivo maior, que é o Planeta Terra e, mais ainda, o Universo.
Esse seria o sentido maior do que compreendo, aqui, como os princípios da cosmovisão afro- brasileira que fundamentam a Capoeira Angola. Interessa-me saber como eles são praticados e constantemente (re)construídos nas práticas educativas cotidianas de grupos que se identificam como herdeiros de uma tradição negra e de resistência em nossa sociedade.
A palavra “educação” não existia nas línguas tradicionais africanas, como explica Petronilha Gonçalves e Silva (2003) ao dizer que, para os africanos e afro-descendentes, o termo educar- se tem um sentido mais amplo: tornar-se pessoa, traduzido como aprender a própria vida. Em sua dimensão educativa, o jogo da capoeira ensina e reflete as formas de se relacionar com o outro e consigo mesmo. Assim, os ensinamentos da capoeira estão intimamente ligados ao processo de formação humana dos sujeitos, estimulando a constante auto-reflexão e auto- avaliação sobre, por exemplo, a relação com nossa família, com a(s) comunidade(s) a que pertencemos (de capoeiristas ou não), com nossa sociedade, com a humanidade, com o planeta, consigo mesmo. O compromisso que aprendemos a ter com nosso(a) camarada de grupo, ou com os(a) mais velhos(as), precisamos aprender a ter conosco, em primeiro lugar. Aprendemos a ampliar nosso olhar sobre as coisas, sobre cada situação, sobre a vida e o mundo.
Para aprofundar a reflexão sobre o tipo de ensinamentos trabalhados na capoeira e suas singularidades, características e contradições, presentes nas formas culturais de matriz africana no Brasil, chamo para esta “roda” as propostas da “Ética da Libertação” de Enrique Dussel (2000), que defende a liberdade de pensamento em relação ao pensamento dominante, eurocêntrico, egocêntrico, individualista e opressor. O que defendo aqui com este autor e
encontro de alguma forma nesses elementos da chamada “cosmovisão afro-brasileira” são valores de respeito às singularidades e às diferenças, que prezam pela igualdade de direitos e por relações mais humanas e solidárias. Assim, localizo nosso esforço dentro do que o autor defende quando diz que:
O reconhecimento da dignidade de outros discursos da modernidade fora da Europa é um fato prático que a ética da libertação tenta tornar inevitável, visível, peremptório. Esse reconhecimento do discurso do outro, das vítimas oprimidas e excluídas, já é o primeiro momento do processo ético de libertação “da filosofia” (DUSSEL, 2000, p.77).
Faço a ressalva de não “vitimizar” essas pessoas que o autor identifica como “oprimidas e excluídas”, mas sim reconhecer os processos de opressão, preconceitos e discriminações contra os quais precisamos, todos, lutar. A proposta da “Ética da Libertação” é de que a filosofia e a ética em especial precisam libertar-se do “eurocentrismo”,
a partir da afirmação de sua alteridade excluída, para analisar agora desconstrutivamente seu “ser-periférico”. A filosofia hegemônica foi fruto do pensamento do mundo como dominação. Não tentou ser a expressão de uma experiência mundial, e muito menos dos excluídos do “sistema-mundo”, mas exclusivamente regional, porém com pretensão de universalidade (quer dizer, negar a particularidade de outras culturas) (DUSSEL, 2000, p.76).
Essa luta passa pelo corpo, que traz as marcas da cultura, nas formas como se mostra e se movimenta no mundo, como afirma o autor: a “expressão [eu danço, portanto vivo] poderia resumir perfeitamente toda a Ética da libertação: ética da corporalidade e da vida” (DUSSEL, 2000, p.75). Passa também pela educação e pelo sentido da ética na relação entre as pessoas, como nos diz Oliveira (2007a).
As comunidades quilombolas, assim como a comunidade da Capoeira Angola, do candomblé e das diversas expressões culturais africanas no Brasil comporiam esta parcela não- hegemônica (ou contra-hegemônica) nesse “sistema-mundo” e atuam no sentido de desconstruir esse cenário, saindo da posição de “vítimas, oprimidas”. A Filosofia da Libertação propõe-se, no mesmo sentido, a partir do que o autor identifica como “razão ético- crítica”, a adotar a posição das “vítimas” para transformar normas, ações, instituições, sistemas de eticidade, etc. (DUSSEL, 2000, p.321). Isto não significa que se deva abandonar toda filosofia, mas sim que se deve “superar a mera posição teórico-cúmplice da filosofia como um sistema que gera vítimas e comprometer-se praticamente com essas vítimas, a fim de colocar o caudal analítico da filosofia ético-crítica (que é a plena “realização da filosofia”)”. Isso deve ser feito por meio da “análise das causas da negatividade das vítimas e das lutas transformadoras (libertadoras) dos oprimidos ou excluídos” (DUSSEL, 2000, p.321).
Alguns aspectos da ética da libertação que destaco como importantes para nosso estudo são: (a) Sua filosofia parte da singularidade dos sujeitos sócio-históricos – considerando o corpo, a história, a memória, o contexto e a cultura – e pretende ser uma teoria universal – não excludente nem dominadora; (b) Defende a transformação da realidade social e das subjetividades dos sujeitos, que acontecem em comunidades, a partir da auto-libertação dos próprios sujeitos (que o autor identifica como vítimas), em suas ações práticas cotidianas; (c) Enfatiza a crítica ao sistema excludente e opressor, defendendo a necessidade de que as “vítimas” desse sistema, para agirem em direção à libertação, precisam ter consciência crítica diante das causas de sua opressão, para negar o que as negam e as excluem, nesse sistema. Esse processo parte das próprias vítimas, em comunidade, junto àqueles que se solidarizam e se co-responsabilizam por sua causa.
Novamente destaco que o autor refere-se aos sujeitos que sofrem exclusões materiais ou discursivas como “vítimas”. Mas, apesar de usar esse termo, ele enfatiza a singularidade desses sujeitos e seu poder de ação transformadora diante de sua realidade. Outra ressalva é que o autor não explicita, em sua ética e razão libertadoras, a dimensão espiritual da vida, a qual, segundo a cosmovisão africana no Brasil, não está separada das dimensões materiais, como veremos a seguir.