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Revitalização da Capoeira Angola: cultura de tradição negra

1 CAPOEIRA É PRA HOMEM, MENINO, MENINA E MULHER

1.4. A Linhagem de Mestre Pastinha

1.4.3. Revitalização da Capoeira Angola: cultura de tradição negra

No final da década de 1970, toma fôlego a discussão sobre a necessidade de revitalização das tradições da capoeira, envolvendo capoeiristas, pesquisadores-capoeiristas, pessoas do Movimento Negro e de outros movimentos culturais, como os blocos afro. De uma perspectiva   mais   ampla,   nesses   anos   de   1970,   a   coincidência   entre   a   “descolonização   da   África e a luta pelos direitos civis dos negros americanos deságua numa consequente onda de pan-africanismo e afrocentrismo que mudará substancialmente o panorama brasileiro. Mas isso  lentamente” (GUIMARÃES, 2002, p.98). No caso do Brasil, desde o final da década de 1970 surgiram inúmeras organizações antirracistas que conformam os movimentos negros atuais, como nos explica Paula Barreto (2005):

As ações destas organizações provocaram alterações nos discursos e práticas acadêmicas, oficiais e populares, no sentido de questionar a democracia racial como um mito, dar visibilidade ao racismo brasileiro e propor políticas públicas que garantissem a ampliação das oportunidades sociais para a população negra. Organizações culturais de diversos tipos, formal e informalmente constituídas, foram, gradativamente, integrando os movimentos negros recentes, o que inclui organizações carnavalescas, religiosas, grupos de capoeira etc. Em alguns Estados, como a Bahia, as ações destas organizações culturais serviram de referência e inspiração para iniciativas que foram surgindo em outros Estados, dando existência ao que se tornou o amplo e diversificado campo que constitui o que, atualmente, é entendido  como  “cultura  negra” (BARRETO, 2005, p.65).

Guimarães   (2002,   p.100)   defende   que   “para   essa   luta,   a   definição   ampla   de   negro   como   descendentes  de  africanos  (e  não  apenas  pessoas  de  cor  ou  fenótipo  negro)  é  imprescindível”.   O mesmo autor diz que, no Brasil, o principal alvo da resistência negra passa a ser “desmascarar   a   ‘democracia   racial’,   em   sua   versão   conservadora,   de   discurso   estatal   que   impedia a organização das lutas antirracistas”.   Ele   destaca   que   “tal   resistência   vai   se   dar primeiro e mais desimpedidamente no terreno cultural que no campo mais propriamente político”  (GUIMARÃES,  2002,  p.158).

Nesse período, alguns acontecimentos que marcaram as lutas do movimento negro na Bahia foram, segundo Guimarães (2002, p.159): a criação da Confederação Baiana dos Cultos Afro- Brasileiros, em 1974; um decreto do governador do Estado da Bahia que põe fim à exigência de licença policial para funcionamento de terreiros de candomblé, em 1976; e a assinatura de um convênio entre a Fundação Pró-Memória do Governo Federal, o CEAO (Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA) e o SECNEB, que permite a implantação do primeiro currículo multicultural, na escola do Axé Opô Afonjá, ligada ao terreiro de mesmo nome. No âmbito das comunidades religiosas (especialmente os terreiros de candomblé), esse período é marcado pelo fenômeno chamado por alguns de africanização e de reafricanização por outros, o qual, segundo Eduardo Oliveira (2007, p.175, 176), apresentou uma diversidade de  “interpretações  que  se  remetem  e  significam  de  maneiras  diferentes  o  mesmo  problema:  o   da  preservação  da  tradição”.  O  autor  explica  que:

A reafricanização analisada sob um ponto de vista simbólico busca pensar a África, não como a realidade efetiva do continente africano atual, mas como um símbolo da tradição africana perpetrada no Brasil. Não como uma referência acadêmica obrigatória, mas como um elemento significativo na construção da identidade do negro brasileiro (OLIVEIRA, 2007, p.176).

Um   dos   marcos   desse   movimento   de   “reafricanização   do   candomblé”   foi   a   realização   da   II   Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, na cidade de Salvador, em 1983, na qual “as  mães-de-santo mais reconhecidas dos terreiros iorubás e jêjes escreveram um documento que expressava as resoluções daquele encontro, bem como (...) a decisão de dessincretizar o candomblé  do  catolicismo” (OLIVEIRA, 2007, p.171).

Na capoeira, buscando  escapar  das  armadilhas  da  “esportização”  e  da  “folclorização”, muitos grupos de capoeira, bem como capoeiristas, mestres e contra mestres passam também a afirmá-la como cultura negra e popular. Esse caminho foi sendo construído ao longo das décadas de 1980 e 1990 e, como diz Paula Barreto (2005, p.66):  “As dificuldades encontradas nessa empreitada não foram poucas e se assemelham àquelas enfrentadas por outras manifestações culturais tradicionais e populares no Brasil”. A autora destaca que:

Tais dificuldades estão relacionadas ao fato de que estas manifestações, por um lado, não foram consideradas como produtos com valor de mercado suficiente para atraírem investimentos do setor privado e, por outro lado, também não foram alvo de políticas públicas desenhadas com a finalidade de valorizá-las enquanto bens culturais de toda a sociedade (BARRETO, 2005, p.66).

Duas figuras importantes no processo de revitalização da Capoeira Angola em Salvador foram Frede Abreu e Mestre Jair Moura, ambos realizando trabalhos tomados como referências em pesquisas históricas sobre a capoeira e, naquele momento, defendem o retorno dos dois “Joãos”  (Mestres João Grande e João Pequeno). Mestre João Pequeno também estava afastado da capoeira, trabalhando como feirante, mas com o apoio recebido, ele volta a ensinar capoeira, no Forte Santo Antônio.

Mestre João Grande só voltaria a se dedicar ao ensino da capoeira um pouco depois, tomando para si a missão de dar continuidade ao trabalho de Mestre Pastinha, assim como Mestre João Pequeno, que deixou o trabalho de feirante e passou a se dedicar exclusivamente à Capoeira Angola, viajando por todo o país.

O mesmo Forte Santo Antônio além do Carmo, no Centro Histórico, hoje conhecido como o Forte da Capoeira, passou então a ser o local que simboliza e abriga a revitalização da Capoeira Angola. Esse movimento deve-se, primordialmente, à resistência de Mestre João Pequeno em manter sua academia no local e ganha forças com o retorno de Mestre Moraes a Salvador, dez anos depois de ter morado no Rio de Janeiro, onde fundou o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), em 1980.

Pedro Moraes Trindade, o Mestre Moraes, nasceu em Ilha de Maré, em 1950. Filho de família de artesãos e pescadores, mudou-se para Salvador no ano seguinte e, aos 8 anos de idade, foi levado  por  “seu”  Augusto,  para  o  CECA,  onde  começou  a  aprender  Capoeira  Angola.  Durante   o tempo em que esteve como aluno na escola de Mestre Pastinha, os Mestres João Grande e João Pequeno eram também responsáveis pelas aulas no Centro. Mestre Moraes pertenceu à corporação dos Fuzileiros Navais e, ao ser transferido para o Rio de Janeiro no início dos anos 70, prossegue na prática da capoeira, dando início à sua fase de mestre (ARAÚJO, 1999, p.67). Seu trabalho teve fundamental importância na disseminação da Capoeira Angola, inicialmente pelo Brasil, a partir da formação dos primeiros mestres do GCAP, no Rio de Janeiro.

Em 1981, ano de morte de Mestre Pastinha, Mestre Moraes retorna para Salvador, sendo pouco tempo depois acompanhado de seu aluno (atual mestre) Cobra Mansa, e estrutura a sede do GCAP no Forte Santo Antônio, com o objetivo, também,  de  “dar  prosseguimento  aos   ensinamentos da escola de  Mestre  Pastinha”  (ARAÚJO, 1997, p.214). Mestre Moraes foi um

dos responsáveis por trazer de volta aquele que considera seu mestre: João Grande, com a ajuda de seus alunos. Mestre Cobra Mansa (conhecido como Cobrinha), esteve atuando junto de Mestre Moraes em todo esse processo, desde o Rio de Janeiro, sua cidade natal, de onde sai em busca de seu mestre em Salvador.

Seguindo as ideias de Pastinha sobre a conduta do capoeirista, Mestre Moraes é contundente na   luta   pela   transformação   do   estereótipo   de   “vagabundo”,   ainda   fortemente   vinculado   aos   capoeiristas, especialmente negros.

O  Mestre  Pastinha  disse  que   “...  a  capoeira  é  espiritualizada  no  eu  de  cada  qual".  É,   justamente, essa individualidade que dá ao capoeirista a condição de jogar na roda, quando jogamos com; e na vida, quando precisarmos jogar contra. Em suas palavras, "A capoeira produz efeitos muito mais amplos do que se pode imaginar... e o melhor capoeirista não é aquele que só sabe cantar, tocar e jogar... para ser bom, é preciso ser completo no fundamento". Na intenção de presentear-nos com a sua visão sociopolítica da capoeira, o mestre afirmou que o capoeirista aprende para defender os seus direitos, e não para "praticar valentia contra a integridade pessoal" do outro. Finalizando, nos encontramos diante de um grande desafio: dar continuidade às ideias do Mestre Pastinha mesmo diante da necessária dinâmica cultural por que passa a capoeira angola, além da sua mundialização desenfreada9.

O projeto de revitalização da capoeira Angola do GCAP, baseado em oficinas com antigos mestres (a partir de 1984), influencia o formato dos eventos de Capoeira Angola que passaram a acontecer posteriormente, incluindo, além de oficinas de movimentos, oficinas de música, palestras e debates sobre temas relacionados à cultura afro-brasileira. Esses passaram a representar momentos de integração e debate entre a comunidade da Capoeira Angola, afirmando a importância da ancestralidade africana, assim como fizera Mestre Pastinha 40 anos antes. Outros mestres, como Virgílio, Paulo dos Anjos, Curió, dentre outros, que continuavam   em   atividade  nesta  época,  mas  como   que  “silenciados”,   começaram   a  “sair  do   esquecimento” com a revitalização iniciada no Forte Santo Antônio.