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Muleekes(as) angoleiros(as): construindo autonomia

3. EU JOGO CAPOEIRA NO ALTO DA SEREIA

3.3. Muleeke: “novidade ancestral”

3.3.2. Muleekes(as) angoleiros(as): construindo autonomia

Muito me admirei ao ver a iniciativa daqueles(as) muleekes(as), assumindo funções que são geralmente realizadas pelos alunos mais antigos nos grupos de Capoeira Angola (depois fui perceber que eles estão entre os mais antigos ali). Um exemplo simbólico, a meu ver, está na posse das chaves do espaço da capoeira assumida por alguns deles. Simbólico, pois a posse das  chaves  é  como  ter  a  “posse”  do  espaço,  ou  pelo  menos,  o  direito  de  “ir  e  vir”  neste  lugar   que é onde se reúne a comunidade/grupo Nzinga.

Assim, eles(as) exercitam cotidianamente sua autonomia ao cumprirem obrigações como o cuidado com o espaço (responsabilidade por abrir, limpar e organizar a sede antes das atividades) e o cuidado com os instrumentos. Esses exercícios de liderança acontecem em um processo permeado por situações de conflitos e negociações, entre muleekes(as), adultos e mestres do grupo. Entre os adultos, não há um consenso de que os(as) muleekes(as) estejam realmente assumindo tais responsabilidades, nem mesmo de que seja positiva a união deles(as) nos treinos, com os adultos, apesar de não negarem os aprendizados que todos têm tido com isso. Mesmo quanto à posse das chaves não há um consenso de que seja algo positivo para a construção da autonomia, pois pode significar um grau de responsabilidade que eles(as) não possam assumir, por exemplo, quando algo se perde ou é danificado no espaço.

Em entrevista com o “núcleo  duro”, quando  perguntei  a  eles  o  que  era  “ser  angoleiro”24, eles responderam que não era fácil, pois tinha que ter muito compromisso:

RODRIGO: Pra ser um angoleiro não é fácil. (...) Porque tem que ter responsabilidade, não é só ir pra capoeira treinar. Pra puxar um treino tem que ter responsabilidade enorme. E não é fácil não.

LEO: Pra mim ser angoleiro é como o Bebê [Rodrigo] falou, é ter responsabilidade, chegar no horário certo, não atrasar nas aulas...

ANTHONY: É muito bom ser angoleiro, porque tem que ter responsabilidade, tem que ter as horas de chegar na capoeira, tem que chegar na hora, tem que ser bom na escola.

A mesma pergunta foi feita por Rodrigo para Antônio, na mesma ocasião:

RODRIGO: E você já está captando o que é ser um angoleiro de valor?

ANTÔNIO: Ainda não, eu estou aprendendo ainda. Porque tem várias pessoas que podem ser angoleiros, porque tem vários tipos de angoleiros. Então, eu não posso dizer como, mas eu to aprendendo ainda.

SARA: Tudo bem que você não sabe tudo, mas alguma coisa você já sabe, né? ANTÔNIO: Ser angoleiro, mestra Janja me falou: é ter respeito, é jogar bem, é mandingar, é brincar com o próximo, jogar bem, tocar, cantar, ser feliz.

A resposta de Antônio já envolveu outros aspectos, mais amplos, como o respeito, a mandinga, a brincadeira, a corporeidade e a musicalidade, mostrando que a questão do compromisso e da responsabilidade é uma entre várias características que identifica o ser “angoleiro” para ele, sendo que, no final das contas, o mais importante talvez seja “ser  feliz”. Importante ressaltar como é forte, para eles(as), a identificação que sentem como angoleiros, diferenciando-se do estilo da capoeira regional, como na seguinte resposta de Bruna:

RODRIGO: Fale um pouco do estilo da sua capoeira.

BRUNA: É um estilo tradicional, só angola, sem botar regional, qualquer outro tipo de capoeira.

Dois dos muleekes mais velhos, em uma de nossas conversas, também ressaltaram essa diferenciação:

SARA: Vocês costumam treinar capoeira fora do horário de aula, brincar de capoeira?

MARQUITO: Não, mas... LEO: Não...

MARQUITO: Tem vez que a gente joga na praia lá. LEO:... fica brincando lá... com os meninos lá. MARQUITO: É, com outros os meninos. LEO: Mas os meninos da capoeira regional.

LEO e MARQUITO (juntos!): Mas a gente joga angola!

SARA: E como é que faz pra jogar Angola com quem é da Regional? LEO e MARQUITO: Eles jogam a deles e a gente joga a nossa. SARA: E dá certo?

LEO e MARQUITO: Dá.

LEO: Eles tomam uns... “sapeca iá ia”. (risos) (...)

Eles mostram que se reconhecem e se identificam com a Capoeira Angola, quando reforçam, juntos:  “a  gente  joga  Capoeira  Angola!”.  Mas  isso  não  os  impede   de ter amigos e até jogar capoeira com meninos da capoeira regional, mostrando o aspecto do respeito e abertura às diversidades, característicos da cosmovisão afro-brasileira. Retomo aqui, ainda, a discussão sobre o mar, e a relação dos muleekes com a praia. Esse espaço aponta para a criação de outro território, aberto e apropriado por eles, para além do convencional na tradição angoleira, em que os muleekes vivenciam outros movimentos de aprendizados, diferentes daqueles instituídos pelos mestres e pela obediência ritualística angoleira. São espaços de brincar, de jogar, de dançar e de lutar capoeira. Portanto, estes são espaços-tempo propícios ao exercício da autonomia e libertação, em que eles criam suas “linhas de fugas”, com seus desejos, saberes e sabores, na   presença   da   Mãe   D’água.   Nesse sentido, a praia pode apresentar-se como outro lugar, especial e precioso, de produção de conhecimentos.

Em outra ocasião, quando gravávamos cenas para o vídeo sobre os muleekes25, foi a vez de Bruna, Anderson e Vini darem sua opinião:

SARA: O que é ser angoleiro?

ANDERSON: Assumir um compromisso com a capoeira, é..., respeitar todo mundo...

BRUNA: Mandingar.

VINI: Unir, né. Como diz, a união faz a força. ANDERSON: Nem tudo tem união.

(...)

SARA: E capoeira angola é o quê?

BRUNA: É uma capoeira de mandinga, calma, dança... VINI: Dança, luta, jogo, leotria.

ANDERSON: Brincadeira. SARA: O que é leotria?

VINI: Sei lá (risos). É uma forma de soltar o jogo, é..., de brincar...

Eles destacam o lado da brincadeira e também o lado do compromisso e do respeito, em seu entendimento de Capoeira Angola. Mostram que já percebem a diversidade (que chega a ser contraditória), presente nessa arte, que mistura jogo, luta, dança, mandinga, calma, brincadeira e compromisso.

Fui percebendo, tanto no Grupo Nzinga quanto em minha experiência pessoal na capoeira, como esse compromisso se constrói também pela ética das relações comunitárias, que, por sua vez, é construída nessas mesmas relações, em meio ao seu jogo de diferenças, disputas de poder e sem  prescindir  do  “princípio  de  senioridade”26. A forma como ele é reforçado pelos mestres é oralmente, como parte das “regras do jogo”  necessárias  para  guardar  o  sentido  dos   princípios comunitário e coletivo. “Atrasado!!! Muleeke, você está a-tra-sa-do!” é uma frase recorrente de Mestre Poloca nos inícios de aulas e rodas para aqueles que chegam depois do horário. A frase, já esperada pelos alunos, seja adulto ou criança, chega a ser motivo de graça entre eles. E passa a ser usada pelos(as) próprios(as) muleekes(as) para chamar a atenção dos outros. Isso mostra que esse compromisso não é algo dado. Ao contrário, ele vai sendo incorporado, mas também pode diminuir, para cada um a seu tempo e de acordo com sua

iniciativa própria, como disse uma das muleekas do   grupo:   “Lá no Nzinga ninguém é responsável assim: ah, um faz isso, faz aquilo, não. Quem chegar tem que fazer. O que tiver pra fazer faz”.

Eles(as) mostram, nas falas, que têm clara consciência sobre a importância do compromisso e da responsabilidade com as tarefas coletivas, com a comunidade, sobre o respeito com os(as) mestres(as), etc. Mas, na prática, é um constante jogo de trocas e retribuições, entre mestres e alunos – como o próprio jogo de capoeira bem ensina – que podem ser agradáveis ou não, dependendo do comportamento e da situação. A responsabilidade pelas chaves do espaço, oportunidades para viajar, para participar de apresentações e passeios, são situações que demandam, de alguma forma, o merecimento para tal, de acordo com o julgamento dos(as) mestres(as).

Assim, o jogo de merecimentos vai acontecendo: os(as) muleekes(as), ao guardarem as chaves, ganham o direito de usar o espaço em horários diferentes dos reservados às atividades da capoeira para, por exemplo, fazerem seus ensaios de dança. Por outro lado, eles(as) têm que assumir um maior compromisso e podem ser questionados pelos mestres quando algo de errado acontece no espaço, como sumir ou quebrar alguma coisa, ou quando não cumprem os horários. Esse exemplo nos ajuda a entender o que Mestra Janja nos diz, com a seguinte passagem:

26 Segundo Eduardo  Oliveira  (2007a,  p.183),  “o  princípio  de  senioridade  é  sinônimo  de  ancestralidade”.  Ele  se  

Entre os angoleiros todas as etapas do aprendizado (e suas promoções) são exercícios de lideranças que se iniciam no princípio do comprometimento, independentemente   da   obtenção   de   uma   “autorização”   para   fazê-lo. Ao contrário, esta dedicação é compreendida como resultante do envolvimento e compromisso, e é tida como um fundamento de avaliação permanente sobre o próprio pertencimento de cada um à comunidade (ARAÚJO, 2004, p.133).

É justamente esse tipo de envolvimento e compromisso com as tarefas coletivas que permite a avaliação e auto-avaliação cotidianamente sobre o pertencimento de cada um ao grupo, compreendido nesse sentido como comunidade. Os(as) muleekes(as) vão, assim, aprendendo a administrar os conflitos e a realizar acordos, que nem sempre agradam a todos e nem sempre são  coerentes  com  o  que  eles(as)  mesmos(as)  definem  como  “atitude  de  angoleiro(a)”  .

Esse compromisso, que é cobrado e sentido pelos(as) muleekes(as) em relação à capoeira e ao seu   grupo/comunidade,   necessário   para   que   sejam   “angoleiros(as)”,   pode   ser   relacionado   à   concepção de autonomia, segundo Paulo Freire, quando ressalta o que chama de assunção dos educandos como sujeitos sociais e transformadores. Percebo como o processo de formação da identidade angoleira vem recheado desse aprendizado, propiciando, aos sujeitos, em suas relações uns com os outros e todos com o(a) mestre(a), condições em que “ensaiam   a   experiência profunda de assumir-se, como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante,  transformador,  criador...”  (FREIRE,  1996,  p.41), para a manutenção do trabalho do grupo, em comunidade.

Durante a realização desta pesquisa, muito aprendi com os(as) muleekes(as) e com o grupo Nzinga sobre essa forma de envolvimento. Em minhas experiências de capoeira em Belo Horizonte, pude vivenciar esse tipo de relação e divisão de responsabilidades com os camaradas da FICA-BH e o mestre Jurandir. Mas aqui em Salvador, venho sentindo falta de estabelecer uma relação mais próxima e de contribuir mais com meu próprio grupo. Vendo e refletindo sobre a experiência com os(as) muleekes(as) do Nzinga, quando assumiam as tarefas ou quando não assumiam, quando cobravam dos adultos ou eram por eles cobrados, eu sentia minha cobrança interna em relação ao meu próprio grupo, sabendo da importância do envolvimento de cada um, pela iniciativa e vontade próprias.

Aprendi muito também, com a experiência do Nzinga, sobre a relação entre adultos, crianças e adolescentes. Obviamente que essa relação – como toda relação humana – vem permeada por conflitos. Especialmente quando se convive com grandes diferenças (de idade, classe e história de vida) e se traça a busca por autonomia. Como diz mestre Poloca, esse é um

caminho muito mais longo e difícil, o de educar para a autonomia. Mais fácil seria a educação “autoritária”,  em  que  “manda  quem  pode  e  obedece  quem  tem  juízo”  e  quem não obedece é punido. Dar ordens e punir quem não cumpre é mais fácil que formar sujeitos autônomos, que tomam a iniciativa de agir pelo grupo, em coletivo.