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Muleekes e muleekas do “núcleo duro”

3. EU JOGO CAPOEIRA NO ALTO DA SEREIA

3.3. Muleeke: “novidade ancestral”

3.3.1. Muleekes e muleekas do “núcleo duro”

Quando comecei a frequentar as atividades realizadas pelo Nzinga, havia um grupo de basicamente nove muleekes(as) que estavam mais frequentemente por lá, sendo sete meninos e duas meninas. Eles(as) fazem parte da primeira turma de crianças que começou a treinar logo que o Nzinga iniciou seu trabalho no Alto da Sereia. Nas rodas do grupo, em geral, a presença – encantadora – deles(as) é   fundamental   para   “segurar   o   ritmo”,   tocando   os   instrumentos da bateria, e assim manter a energia vibrante que conecta os presentes e os ausentes, o axé, como nos explicou Muniz Sodré (1988a, 1988b). Eles chegam a assumir a posição   de   quem   “comanda   o   ritual”,   tocando o berimbau gunga e fazem a diferença na firmeza do toque do atabaque.

Esse grupo de muleekes(as), junto a alguns adultos, formam o   chamado   “núcleo   duro”   do   Nzinga. São aquelas pessoas que assumem um maior grau de responsabilidade para que as atividades aconteçam. Uma das características dos grupos de Capoeira Angola em geral é que as tarefas necessárias para a realização do trabalho do grupo são geralmente de responsabilidade coletiva.

Rodrigo (conhecido como Bebê), de 16 anos, foi o primeiro a entrar no grupo. Quando ficou sabendo das aulas de capoeira no prédio de “Seu Cacareco”, bem perto de sua casa, foi conversar com mestre Poloca, pedindo para treinar. Mas ele gostava mesmo era de tocar. Não era muito de falar. Nem de treinar. Também não costumava puxar o canto. Nos treinos e rodas ficava mais esperando a oportunidade de tocar, de preferência o berimbau viola22. Parecia estar nos céus quando tocava e botava a viola para  “chorar”.

21 O berimbau gunga é o que tem a maior cabaça, portanto o som mais grave entre os três berimbaus. É o

instrumento   que   “comanda”   o   ritual   da   roda   de   capoeira,   geralmente   tocado   pelo   mestre   ou   os   alunos   mais   antigos. Geralmente, nas rodas de capoeira angola em Salvador, o gunga é consideravelmente mais tocado por homens que por mulheres (pois há maior quantidade de mestres, contra-mestres e treineis homens) e raramente por crianças. No Grupo Nzinga há   uma   proporção   mais   “equilibrada” e as crianças e adolescentes são estimulados a tocar os instrumentos quando já apresentam capacidade para tocar.

22 O berimbau viola é o que tem a menor cabaça, portanto o som mais agudo entre os três berimbaus.

Geralmente,  na  bateria,  os  berimbaus  gunga  e  médio  fazem  a  marcação,  enquanto  o  viola  “repica”,  fazendo  as   variações.

Chora viola, chora Chora viola (coro) Chora Oi viola é boa

(coro) Chora

Leo é o irmão mais velho de Rodrigo e é o mais velho entre os meninos, com seus 18 anos de idade. Puxava treinos na ausência do(as) mestre(as), mas diz que não gostava de dar aulas. No jogo, mostra sua habilidade de quebrar o corpo, no contratempo da ginga, de inverter, de cima, pra baixo, da bananeira para o giro de cabeça, queda-de-rins, ponte, rabo-de-arraia, rasteira... Seja mais devagar ou mais veloz. Prontificava-se para cuidar dos berimbaus, antes e durante as rodas e treinos.

Iolanda é prima de Leo e Rodrigo. É a mais velha da turma, já com 22 anos de idade. Ainda guarda um jeito de muleeka, na forma de se comportar, de vestir, nas brincadeiras, convivendo com os(as) mais novos(as). Ao mesmo tempo, ajuda a orientar os outros, assumindo sua condição de mais velha. Iolanda, Leo e Rodrigo moram juntos, na Coréia, um beco bem estreito que fica ao lado do Alto da Sereia. Ali, eles não se consideram tão “sereienses”  como  os  que  moram  no  Alto.  Apenas  algumas  casas  formam  a  Coréia,  com  um   ambiente bem familiar, cheio de crianças, entre as mães, alguns homens e os adolescentes. Como  Leo  disse  “aqui  é  todo  mundo  família”.  

Marcos (15 anos), mais conhecido por Marquito, é a dupla de Leo como Tata Xicarangoma23 no terreiro de Tata Mutá Imê. Em dias de aulas ou rodas, quando havia uma “brecha”, os dois ficavam no atabaque, treinando e falando sobre os toques. Marquito disse que não gostava de treinar, só mesmo de jogar. E, no jogo, soltava seu corpo. Assim como se soltavam, os dois, tocando os atabaques nas festas no terreiro.

Rodrigo, Leo, Iolanda e Marquito, os mais velhos da turma de muleekes, estavam ainda presentes no grupo quando comecei a frequenta-lo e participaram do evento de aniversário de 15 anos do grupo Nzinga, realizado em São Paulo, em 2010. Mas, no final de 2010, eles foram se afastando. Primeiro Iolanda e Rodrigo, depois Leo e Marquito. Atualmente, eles não

23 Aqueles que têm a função de tocadores, no ritual do candomblé da Nação Angola. Corresponde ao Ogan, no

estão treinando, mas veremos adiante que permanecem ligados à comunidade da capoeira, à sua maneira.

Os outros, pouco mais novos de idade, mas da geração mais antiga (que já estão completando cinco ou seis anos de capoeira) que permaneceram assumindo esse núcleo duro foram Vinícius, Bruna e os três irmãos: Antônio, Anderson e Anthony.

Antônio (14 anos) tem um jogo elegante, leve. Gosta de cantar na roda, com sua voz suave e afinada, e uma melodia harmoniosa, para ouvir e responder. É o que afirma, com mais convicção, que quer se tornar mestre um dia. Seu corpo, sua energia, parecem já trazer alguma herança desse tipo. Quando pega o gunga para tocar na roda, passa um ar sereno, de tranquilidade e domínio da situação. Mantendo a levada, o ritmo, a melodia, o axé. Sabe reger a orquestra de berimbaus e faz parte do grupo de dança-afro criado por eles mesmos.

Anderson, (12 anos) o irmão do meio, tem no olhar uma expressão forte, viva. Seduz o(a) camarada com seu sorriso e olhar encantadores, que realçam em sua pele negra. Ele sabe e me contou muitas histórias sobre os Orixás e os mitos do candomblé, com desenvoltura na fala e na expressão de suas opiniões. Não assume o mesmo compromisso que o irmão mais velho com as demandas do grupo. Costuma chegar atrasado ou na hora das aulas e ainda não sabe armar o berimbau com desenvoltura.

Anthony (11 anos), o mais novo dessa turma, gosta de abusar da mandinga, dos negaceios, das cabeçadas e rasteiras, apesar do seu tamanho pequeno, de menino franzino. Toca o berimbau (que ele mesmo sabe armar, apesar do tamanho) com alegria, entusiasmo. Quando olha pra mim e vê que estou observando-o (encantada), abre um sorriso meio tímido, meio moleque, orgulhoso de si. Diz que gosta mesmo do futebol, mas está sempre presente na capoeira.

Vinícius (15 anos) vem assumindo, junto com Antônio, uma maior parte da responsabilidade deixada pelos mais velhos, que não estão frequentando o grupo atualmente. Os dois cuidam do  “axé”  da  casa,  de  oferendas  aos  santos,  limpeza  e  proteção  espiritual  do  espaço e também fazem suas bagunças. Vini traz no olhar certa timidez e doçura. Ele me contou várias lendas sobre os Orixás. No jogo e na dança, seu corpo se movimenta com ritmo, leveza, mas também um pouco contido, parecendo esconder parte de sua beleza.

Bruna (13 anos) era quem estava mais junto de Vinícius e Antônio, antes de começar a participar de um projeto que passou a ocupar praticamente metade de seus dias, além do horário da escola, o que fez com que ficasse um pouco afastada do grupo. Bruna e Vini chegaram a assumir um horário para ensinarem às crianças menores que estavam chegando no grupo (dentre elas o irmão mais novo e alguns primos de Bruna, que ela também ajuda a cuidar). Ela tem jeito, experiência e atitude para cuidar e ensinar os(as) mais novos(as). Durante algum tempo, era a única menina (muleeka guerreira) do  “núcleo  duro”, após a saída de Iolanda e antes do retorno de Janete (outra muleeka que começou junto com Bruna, mas ficou alguns anos afastada). Também expressa certa timidez adolescente, no tom de voz baixo quando fala e canta (aliás, não costuma cantar muito nas rodas) e nos movimentos de seu corpo jogando capoeira. Mostra seu molejo na leveza e suavidade de seus movimentos.