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3. EU JOGO CAPOEIRA NO ALTO DA SEREIA

3.2. Por cima do mar eu vim: Comunidades e pertencimento

3.2.2. O Grupo Nzinga de Capoeira Angola

Os relatos dos(as) muleekes(as) sobre sua comunidade mostram a importância que a capoeira tem para eles(as), graças ao trabalho realizado pelo Nzinga, o único grupo de Capoeira Angola do Alto da Sereia. O grupo nasceu em São Paulo, em 1995, durante o período em que as mestras Janja e Paulinha e o mestre Poloca residiram nessa cidade, e teve início em Salvador entre 2001 e 2002, quando mestre Poloca e mestra Paulinha voltaram para a capital baiana. Mestra Janja também retornou para Salvador, poucos anos depois e foi em 2005 que a sede do grupo passou para o espaço onde se encontra até hoje, no Alto da Sereia.

O nome do grupo faz uma homenagem à Rainha Nzinga Ngola Kiluanji, conhecida e enaltecida nas congadas brasileiras como Rainha Ginga.

Nzinga Mbandi Ngola, rainha de Matamba e Angola, viveu de 1581 a 1663 e representa resistência à ocupação do território africano pelos portugueses que lá aportaram para o tráfico de escravos. A ocupação portuguesa naquela região começou em 1578 com a fundação da, hoje, Luanda, capital de Angola. O rei Ngola Kiluanji, pai de Nzinga, resistiu por muitos anos à invasão de seu território. Foi sucedido por seu filho Ngola Mbandi que, inicialmente, também impediu o avanço do comércio escravagista para o interior. Nzinga auxiliou seu irmão negociando a devolução de territórios já ocupados pelos invasores. Mas depois não concordou com a submissão aos portugueses de vários chefes africanos, incluindo seu irmão, e, ordenando suas mortes, chegou ao comando de grupos de resistência à ocupação das terras de Ngola e Matamba. Aliou-se a guerreiros jagas passando a atuar em quilombos, com espaços e táticas de guerra semelhantes aos utilizados por seu contemporâneo Zumbi dos Palmares em terras brasileiras. Obteve vitórias e uma relativa paz até morrer aos 82 anos de idade.10

Segundo Luz (2000, p.298), era comum em sua região a participação das mulheres nas tropas. Nzinga foi criada no ambiente de guerra, acompanhando seu pai. Seu poder se caracterizaria, porém, “por sua capacidade de mandar chuva e garantir a fertilidade da terra, de lutar pela tradição dos valores religiosos, assentado no culto a Nziambi Mpungo, as forças cósmicas que regem o universo”. O   autor   ainda   ressalta   que   “a rainha se dedicava com grande amor às crianças, mandando distribuir farta alimentação para elas”. (LUZ, 2000, p.307). A ligação

forte do grupo Nzinga com o trabalho educativo com crianças e contra as desigualdades de gênero aparece no próprio nome do grupo, em homenagem a esta rainha africana.

O grupo Nzinga define seus objetivos da seguinte maneira:

O Grupo Nzinga volta-se para a preservação dos valores e fundamentos da Capoeira Angola, segundo a linhagem do seu maior expoente: Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha, 1889-1981). A Capoeira Angola é pautada por elementos como Oralidade, Comunidade, Brincadeira, Jogo, Espiritualidade e Ancestralidade. Toda a sua prática carrega em si significados e simbologias para o crescimento e transformação do indivíduo. Em seu ritual, todos participam e cada um é fundamental e único11.

A referência  às  bases  filosóficas/educacionais  de  mestre  Pastinha,  bem  como  as  “bandeiras”   sociais defendidas pelo grupo, como o antirracismo e o anti-sexismo são trabalhadas de diversas formas, incluindo ações de reflexão e divulgação, como a Revista Toques D’Angola,   produzida pelo próprio grupo. A publicação mostra o esforço coletivo na produção de um material informativo, em que os próprios alunos e mestres trabalham na elaboração do conteúdo ali exposto, além de ser um material que pode ser trabalhado com os demais alunos e com a comunidade maior da capoeira, das religiões e de outras manifestações culturais de matrizes africanas e interessados. Mostra também como o grupo reúne pessoas que tiveram formação universitária em diversas áreas e apresentam um domínio da palavra escrita.

A Capoeira Angola é apresentada como tema central da publicação, por ser de onde partem todas as reflexões, saberes e fazeres da jornada do grupo. A partir dela, são discutidas temáticas como as relações étnico-raciais, relações de gênero, a cultura afro-brasileira, relações entre a capoeira e o candomblé, além da temática da Educação, abordando as bases da filosofia de mestre Pastinha, como fundamento educacional e existencial de suas práticas. As crianças do grupo também participam, com suas produções artísticas, poemas e desenhos. Inclui ainda entrevistas com mestres da capoeira e militantes da cultura negra. Ou seja, na própria estrutura da revista, estão as escolhas metodológicas do grupo, nos temas trabalhados, no espaço aberto às crianças e às mulheres, na referência às ideias de mestre Pastinha, na valorização da cultura negra e das mulheres e assim por diante.

O Projeto Ginga Muleeke nasceu na região da Vila Sônia e do Jardim Colombo, bairros com altos índices de pobreza e exclusão social, na periferia oeste de São Paulo, em 2003. Mestra

Janja, ao relatar12 o início do projeto Ginga Muleeke, chama a atenção para o fato de que as crianças da Vila Sônia chegaram para mudar tanto o perfil do grupo Nzinga, como de seus mestres, incluindo o dela. Ou seja, as experiências que haviam tido anteriormente de ensinar a capoeira para crianças (em locais como o Projeto Axé e a Associação de Moradores da Mangueira, em Salvador) estavam relacionadas a projetos que atendiam crianças e adolescentes, sendo a capoeira uma de suas atividades, enquanto o trabalho em Vila Sônia passou a ter o diferencial de que as crianças inseriam-se, pela primeira vez, dentro de um grupo de Capoeira Angola. Mestra Janja conta que no início não sabiam como as crianças estariam inseridas, como seria organizado o trabalho pedagógico com elas, tendo sido um processo de aprendizagem mútua, em que os mestres e educadores do grupo também tiveram que aprender com as crianças.

Em 2007, com o retorno dos(as) mestres(as) do grupo para Salvador, o Projeto Ginga

Muleeke teve início também na comunidade Alto da Sereia. Desde então, o grupo participa de

ações junto à comunidade, como o  “Abraço  no  morro”,  evento  que  busca  unir  os  moradores  e amigos, formando uma corrente humana em volta do morro, junto a atrações culturais; o dia das crianças, dia de São Cosme e Damião, festa de São João, entre outros. São ocasiões em que a comunidade se mobiliza para celebrar suas datas comemorativas, reunindo as crianças, jovens e as famílias em geral. O Nzinga, que já se tornou uma das importantes referências como espaço educativo no local, busca participar dos eventos da comunidade, seja realizando uma roda de capoeira no morro, seja pela participação dos integrantes do grupo, ou ajudando na divulgação, fortalecendo assim esses movimentos. Mestre Poloca relatou: “um dos ditos que eu mais valorizo da filosofia de mestre Pastinha é o vínculo com a comunidade, a capoeira  angola  em  comunidade” 13, o que nos mostra como o mestre valoriza e se apoia nos ensinamentos dos velhos mestres, de sua linhagem, (re)significando os relatos desses anciãos para atuar no cotidiano de seu espaço e tempo atuais. A relação comunitária é, portanto, uma importante missão que o grupo Nzinga tomou para si.

No dia de Iemanjá, em 02 de fevereiro, há uma tradicional festa no bairro Rio Vermelho, nas praias próximas ao Alto da Sereia, aonde muitas pessoas vão levar suas oferendas e fazem rituais religiosos. Esta é uma data especial para o grupo Nzinga, diante de sua proximidade com o mar e com Iemanjá, e com o local da festa. Nesse dia, pela manhã, o grupo leva uma

12 Registro em caderno de campo durante o evento de 15 anos do grupo Nzinga. São Paulo, ago. 2010. 13 Retirado do vídeo  “Eu  jogo  capoeira no  Alto  da  Sereia”.

cesta de oferendas a Iemanjá para ser deixada no mar e realiza uma roda de capoeira em sua sede. Após a roda, é servida a tradicional feijoada da Dona Nalva, moradora da comunidade. Esta é mais uma ocasião em que o grupo conta com a participação da comunidade do Alto da Sereia (e também recebe a comunidade da capoeira em geral), além de ampliar sua ação comunitária e educacional, com a realização de uma campanha de conscientização contra a deposição de materiais não biodegradáveis no mar,  cujo  slogan  nos  últimos  anos  foi:  “Iemanjá   protege  quem  protege  o  mar”.

Assim, o Nzinga chegou ao local com esse objetivo de integrar-se com a comunidade e receber as crianças, em um trabalho educativo com a Capoeira Angola. O trabalho vem acontecendo desde então, com a dedicação dos mestres e dos alunos adultos, que basicamente mantêm financeiramente o grupo, com o pagamento das mensalidades. Uma peculiaridade desse grupo é a presença considerável de crianças e adolescentes, em praticamente todas as suas atividades. O espaço de sua sede – pintado de laranja14,  localizado  no  “pé”  do  morro,  em   um terraço de um pequeno prédio – está sempre ocupado pelos(as) muleekes(as) “sereienses”15. Eles(as) trazem uma energia de alegria – que pode se transformar em caos –, que ora é estimulada pelos mestres, com brincadeiras, gargalhadas e afetos que despertam sorrisos nos presentes, ora   ultrapassa   os   limites   e   “tira   os   mestres   do   sério”,   ou   melhor, os deixa muito sérios, lembrando seu lugar de autoridade que deve ser respeitado pelos mais novos.

Quando o grupo Nzinga chegou ao Alto da Sereia, foi feito um trabalho de divulgação na escola municipal localizada na comunidade, para chamar as crianças para participarem da capoeira. Nos primeiros anos, Mestre Poloca, junto a alguns(mas) alunos(as) adultos(as) faziam um trabalho específico com as crianças da comunidade, em horário separado, antes das aulas dos adultos. Uma das alunas que ficou responsável por esse trabalho contou que eram momentos que aconteciam de forma muito orgânica, em grande medida graças ao vasto repertório de estórias, músicas, jogos e brincadeiras que mestre Poloca trazia, relacionados à capoeira e à cultura africana. Um dos objetivos era ensinar sobre a história e a filosofia da capoeira,   incluindo   as   “regras”   do   ritual e da comunidade angoleira e “nzingueira”16. Essa aluna   trabalhava   mais   especificamente   com   “leituras   e   escritas”,   incluindo   a   criação   de  

14 A decoração do espaço do Nzinga é renovada geralmente nas viradas do ano, com a realização de mutirões

envolvendo os membros do grupo e as famílias dos muleekes, moradores do Alto da Sereia.

15 Expressão usada no grupo para se referir aos moradores do Alto da Sereia.

ladainhas, o estímulo à leitura, a produção de desenhos, leitura e produção de mapas, sempre relacionados à capoeira, como ela mesma contou:

[...] [as crianças] produziam, nós fazíamos várias dinâmicas, de construção, de análise de ladainhas, jogos e brincadeiras da cultura popular, contação de estórias, pra trabalhar a oralidade. Porque o objetivo era que eles entendessem que capoeira não é só o jogo. Não é só tocar, jogar e cantar. (...) Eles tinham muita vontade e tinha uma coisa bacana que os mais novos eram instruídos pelos mais velhos. Então, nesses encontros, que não eram treinos específicos de capoeira, eles aprendiam como se comportar em uma roda, a gente trabalhava por que não pode trocar dois instrumentos ao mesmo tempo, como se comportar quando chega um mestre   na   roda,   visitante...   Essas   “etiquetas”, vamos dizer, da capoeira, as regrinhas de comportamento. A gente trabalhava em simulações, também no plano da teoria, a conversa, o diálogo.17